1 de nov. de 2011

João Guimarães Gomes Rosa

Na Cataguases de 1956, tinha eu meus 12 pra 13 anos e morávamos na Rua da Padaria Cabral, já na descida pra Rua do Pomba. Naquela época, ninguém respeitava os nomes das eméritas figuras que denominavam as ruas de Cataguases, mesmo porque não sabíamos de quem se tratava. Assim, era a Rua da Maria do Carmo, a do Fulano de Tal, a do Chico Rossi, a da Estação, a do Sobe-e-desce e a que Descia pra Cima, a Rua do Seu Milton da Farmácia Peixoto e por aí vai, como delas já tratou em crônica memorável aqui mesmo no Cataguases o não menos memorável Manuel das Neves – que ainda não é nome de rua ninguém sabe bem o por quê.


Em frente à nossa casa, havia o Beco do Boticário, quer dizer, o beco do João Guimarães (o Seu João, como também o tratava com todo o respeito sua mulher, a “Dona Maria do Seu João”). Aquele mesmo Beco onde mais tarde iriam morar por longos anos minhas tias Cacai e Lilila e meu tio Chiquito. Pois é, o Beco do Seu João, nem bem farmacêutico, nem bem dentista, mas que – prático – manipulava com mão férrea o seu boticão. Na rua vizinha, aquela ali do Seu Milton da Farmácia Peixoto, clinicava o médico da família, Walter Gomes Rosa, o “Doutor Walter da Mimi”, sua mulher; ou a “Mimi do Walter”, se você assim o quer. Ora pois.


Papai era motorista do ônibus que ia pro Rio (acho que na época já era a Citran, com aquela logomarca inesperadamente gaiata do Zé Carioca). Lembro ainda agora do microônibus do papai parado na descida do morro, as rodas dianteiras jogadas pro meio-fio. Das viagens, o velho-novo Hisbelo, o impossível “Garotinho” – cujo apelido só vim a saber bem mais tarde –, trazia sempre caramelos do D´Angelo de Petrópolis, e maçãs, ah!, aquelas maçãs embrulhadas em papel de seda azul, e com um cheiro de nunca mais. E jornais: o “Diário da Noite”, da véspera; e a “Última Hora”, daquele mesmo dia. Foi ali – acho que espremida entre “A vida como ela é”, do Nelson Rodrigues, e “O Jornal de Antônio Maria”, do próprio, meio que timidamente entre aquelas colunas dos dois figurões da “Última Hora” –, foi ali que li a notícia do lançamento no Rio de Grande Sertão: Veredas, “romance de João Guimarães Rosa, um médico mineiro”, como completava a nota.


Sabedor do que era “Grande” e do que era “Sertão”, mas desconhecedor por completo das tais ‘Veredas”, pensei de imediato em alguma associação por onde se enveredassem os nomes do Seu João Guimarães com o do Doutor Walter, que abandonara o Gomes, deixando apenas o Rosa do sobrenome (“sub-Rosa?”) para despistar a freguezia, melhor, a clientela cataguasense. Só podia ser, mas quem diria? Os dois sizudos conterrâneos embrenhando-se por essas tais veredas daquele grande sertão... Sei não. Controvérsias as há. Ou não? Podia ser também que o Seu João Guimarães tivesse tomado da Rosa, minha irmã, o seu sobrenome literário. Podia ser, afinal a Rosa estivera tratando dos dentes com o Seu João no ano anterior, daí, é lógico, João Guimarães Rosa. Podia ser, mas Rosa mal chegara aos 11 anos e era impossível que ela soubesse o que eram as tais “veredas” – e que fosse a co-autora do livro. Não. Aquilo era mesmo coisa do Seu João com o Doutor Walter: o jornal não dissera tratar-se de “um médico mineiro”? Pois é, João Guimarães (Gomes) Rosa.


Pensei, mas não disse. Isso porque já bastava a gozação recebida quando me espantei – havia eu recém-completado exatas e apenas oito voltas em torno do sol – por ninguém saber que o cara que descobriu o Brasil morava na minha rua. Era o Seu Pedro da Padaria Cabral, pai do Chiquinho Cabral, gente!, o Seu Pedro Álvares Cabral, aquele senhor distintíssimo e sempre sorridente, alto e de bochechas rosadas, exato como eu mesmo o via na gravura de meu livro do Grupo Escolar Coronel Vieira: sabe?, aquele que está lá ainda hoje, o Coronel Vieira, ali na Avenida do avô do Astolfinho, do pai do Pedro Dutra, em frente à Cima – e de banda pra rua que desce pra própria: a rua do meu amigo Cassé Bittencourt.


A notícia passou em branco. Nem mesmo o Juaquincas White disse nada de nada. Nonada. Será que desconhecia a “famisgerada” dupla de novos escritores dos sertões citadinos? E as veredas foram assim temporariamente esquecidas, enquanto o Seu João Guimarães arrancava um dente aqui e o Doutor Gomes Rosa cuidava de seus doentes acolá. Foi então, por-depois, já na virada da década, que vi o livro na biblioteca do Chico Peixoto (que eu ainda chamava de Doutor Francisco, pois era o diretor do Colégio), o pai de minhas colegas Mabel e Maria Cristina, nossa atual “primeira-dama”, em cuja casa costumava às vezes estudar para as provas do Colégio – e quase sempre levar livros emprestados da bibilioteca, a maioria autografados e todos devidamente devolvidos. Juro por meu São João Guimarães (Gomes) Rosa.


E lá foi comigo o Grande Sertão do Chico Peixoto, lido atentamente durante os três meses de férias do verão daquele ano – e, não me lembro bem porquê, no banheiro (o hábito começou aí e vem até hoje) da casa da Vovó Cota, que ficava na esquina da nossa rua com a Rua do Pomba. Uma casa que pertencia à Força e Luz (minha tia Dalila era funcionária da Companhia) e que está lá até hoje a me lembrar onde nasci: naquele quarto ali, cuja janela se debruça em diagonal à Rua do Pomba. E exatamente pelas mãos da afamadíssima parteira Dona Alzira, mãe de Dona Jandira, por sua vez mãe do Chiquinho Cabral, aquele poeta que era filho do Seu Pedro Álvares Cabral, o emérito descobridor destas plagas, como já bem vos disse. Brasil, Portugal, Seu Pedro, Chiquinho, Dr. Sobral. Eis a rua e a estória. Todas as histórias são borgianamente labirínticas e circulares e tudo vai dar no mesmo lugar. Vida, paixão e morte: quem não tem pressa chega lá.

Então, com o Grande Sertão foi assim, meu senhor, leitura de banheiro: onde até hoje leio com mais atenção. Um pouco depois e era sessenta e dois. Li “Primeiras Estórias” em primeiríssima edição, livro comprado em férias no Rio e que tenho comigo aqui e ainda agora, inacreditavelmente conservado até hoje pelas mãos de mamãe, a crédula & bravíssima Dona Zeca (que apelido “mais Guimarães” pra Dona Maria José Werneck Silva, né mesmo?), que tratou de encapá-lo – como fez com a maioria de meus livros da juventude – em papel celofane da Brasitânia. Sabe a Brasitânia? Aquela loja da Dona Mariazinha, que havia ali na Rua da Estação. Pois é, quem diria: celofane – que coisa mais mamãe, que palavra-mais-palavra, que coisa mais precisa que nem de papel precisa. Basta o cheiro da memória: este.


Sagarana, cujos contos antecedem o romance-marco do sertão rosiano, foi lido bem depois, quando já morava no Rio, já de volta da Bahia, onde em 1964 conheci e conversei longamente com o diretor de cinema Roberto Santos num almoço que se estendeu noite adentro na casa do crítico Walter da Silveira. Roberto me contava entusiasmado que gostaria de filmar “O Homem da Cabeça de Papelão”, um conto de João do Rio. Tinha as cenas já quase decupadas na cabeça, que não era nada de papelão. Mas não havia câmera na mão – e nunca fez o filme. Acabou logo depois filmando “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, pra mim, e até hoje, o melhor Guimarães Rosa de todos aqueles a que já assisti no cinema brasileiro. Filmado em 1984 por meu amigo mineiro de andanças e bebelanças no Rio dos anos 70 – tempo de preparação e rodagem de seu filme “Perdida” –, até hoje não vi o “Noites do Sertão”, do meu caro Carlos Alberto Prates Correia, esse sumidão. Então, pra mim, ”Matraga” ainda é o melhor. E foi “A Hora e a Vez” que me levou a ler Sagarana, onde se encontra o conto que deu origem ao filme de Roberto Santos.


Um dia, sem dizer o que a quem, montei a cavalo e saí, a vão, escapado. Arte que eu caçava outra gente, diferente. E marchei duas léguas. O mundo estava vazio. Boi e boi. Boi e boi e campo. “Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago...” – foi o que pensei, na ocasião. E que ocasião era essa, meu senhor? Ora, dirão vocês. Era aí por sessenta e cinco, sessenta e seis. Eu sozinho na velha Rodoviária do Rio, aquela da Praça Mauá, e ele lá, aquele senhor, meu senhor. Ele lá no ponto de embarque pra Cataguases, muito do elegante com seu terno cinza-claro, gravatinha borboleta, óculos de aros pretos-grossos, rosa, rosácea, rósea-face-rosa, rosada, alto, bonachão em sua opulência a palrar com aquela moça muito branca que nem aquele moço de suas Primeiras Estórias.


Não era o Seu João nem o Doutor Walter, mas sim o Guimarães; sim, o “Doutor” Rosa, como o chamava meu amigo e compadre-poeta Francisco Marcelo Cabral, que com ele trabalhou no Itamaraty. Sabe? O Chiquinho (da Padaria) Cabral. Pois é. Ali estava o Grande Rosa, em meio aos ruídos dos ônibus, à parafernália de freadas a ar comprimido e buzinas daquela tarde carioca. Longe, muito longe do seu sertão. Mas o sertão é dentro da gente, você sabe; não, meu senhor? Apresentei-me, naquele mineirês, naquele conterranês de quem vai chegando assim, meu senhor, com toda a desfaçatez: “De Cataguases; li todo o Grande Sertão; também Primeiras Estórias, é uma grande honra... o senhor também vai para lá?” (Se fosse pra Cataguases, certamente, não haveria controvérsias: era mesmo o João Guimarães Gomes Rosa: eu não disse?).


“Não”, disse Rosa, “vim trazer esta minha amiga que embarca agora para Cataguases”. O ônibus já estava saindo, entramos eu e a moça muito branca, que sentou-se lá atrás e nunca mais nos vimos. Nem ela a mim, nem eu a ela ou a ele, o Doutor João Guimarães Rosa do Grande Sertão cujas Veredas completam agora 50 anos. Ano seguinte, vida que não segue: ele morto (perdão, “encantado”) logo depois da posse na Academia. Mas eu disse, não disse, meu senhor? – e não é só questão de pão, pães, opinião, opiniães –, esse tal de João Guimarães tinha mesmo alguma coisa a ver com Cataguases. Aliás, quem não tem?