21 de set. de 2015

6 - Bia, Helena, Elza: Afonso na batera é coisa louca


 Show Elza Soares na Guaycurus







“Foi-se dormir eternamente meu ídolo, meu pai, meu amigo, irmão e querido Padim. Espero te encontrar um dia novamente, porque essa esperança é o que está me sustentando!”. Comoventes, essas palavras são de Beatriz Peixoto, a Bia, filha da Renata, por sua vez filha da Helena – a mulher que Afonsinho amou e que com ele viveu durante os últimos 30 anos. Estivemos sempre juntos nos longos anos em que eu morei no Posto 4, em Copacabana, e eles nos Posto 6. Quase todos os domingos eu ia almoçar aquela comida mineira e “de casa”, que Helena fazia como ninguém; às vezes, era o Afonsinho quem assumia a cozinha, de onde saía sempre com um spaghetti carbonara que me deixa até hoje com água na boca. E, como sobremesa, um longo papo, música e amenidades a se estenderem tarde afora, de Roma a Cataguases. É quando via o amor dos dois, aquele olhar do Afonsinho para Helena: sua mais fiel companheira, esteio da vida inteira.

Encontrei-me recentemente com a Bia, que conheci menina e hoje já é uma mocinha de seus 18 anos. Afonsinho adorava Bia que adorava o Afonsinho, que poderia ter sido seu avô, mas era seu eterno “Padim”, como ela o chamava. Eu e a Bia não nos víamos desde a morte de meu amigo. Nós nos abraçamos fortemente e nada falamos, mesmo porque as lágrimas não deixaram. Dias depois, ela me enviou este pequeno e emotivo escrito – flor singela a brotar do mais fundo de uma menina-moça: “Há amores de irmão, de amigo e até dos pais,/ mas não chegue a nenhuma conclusão,/ o amor de que vim falar vai além da sua compreensão./ Raciocínio não decifra essa cifra.// Desculpe a sinceridade, mas este caso é raridade!/ Ele não era meu pai, nem irmão, nem namorado./ Padim era como eu o chamava e ele foi o homem mais amado!/ A bateria foi seu refúgio e não adianta achar subterfúgio,// dava claramente pra ver que ele sabia onde bater./ Inspiração pra minha vida, que cura qualquer ferida,/ menos a da saudade que vai me acompanhar pela eternidade”. 
“Afonso na batera é coisa louca”. A voz de Elza Soares tomou de assalto o gravador de meu carro nas últimas semanas em que andei escrevendo essas coisas sobre o Afonsinho – e ainda agora não me sai da cabeça. Ouvi e ouvi várias vezes “Carioca da Gema”, o maravilhoso disco que ela gravou ao vivo no Rio em 1999, com Afonsinho na bateria, Jimmy Santa Cruz no baixo e o saudoso Alberto Farah no piano. Eu assisti a alguns belos shows desse trio, com e sem a Elza, inclusive aqui em Cataguases. Às vezes, os teclados eram comandados pelo admirável pianista Chiquinho Neto. Shows que quem viu não se esquece.
Na faixa “Quatro loucos num samba” (Cyro & Mary Monteiro), Elza homenageia o trio um a um, que com ela vira um quarteto: “Oba! O samba vai começar/ Quatro loucos fazendo miséria/ Na bossa legal sem parar/ Maestro Alberto senta logo ao piano pra começar/ O Jimmy afinando o contrabaixo pra esquentar/ Afonso na batera é coisa louca/ E grita que também está nessa boca”.  E sai de baixo, minha gente, que é uma pauleira só, com direito a um “Ouviram do Ipiranga” à base de solfejos, de velozes be-bops de Elza, dialogando com o baixo de Jimmy e a bateria velocíssima de Afonsinho. Uma coisa.

Mas há também um “Antonico” de emocionar, um “Trem das Onze” que vou te contar e um “Desde que o samba é samba” cool, tristíssimo e bem traduzido, como bem o deveria querer Caetano Veloso: “A tristeza é senhora/ desde que o samba é samba é assim./ O samba ainda vai nascer/ o samba ainda não chegou/ o samba não vai morrer”. Sim, Afonsim, agora a tristeza é senhora. Mas o samba não vai morrer. O samba é pai do prazer. O grande prazer transformador.
Numa tarde dos anos 1990, eu ia pelo Leblon com Baden Powell, rumo ao Antonio´s, quando encontramos o Afonsinho. Eles tinham tocado juntos na Europa em várias oportunidades, inclusive num show em homenagem a Vinicius de Moraes e numa série de programas para a RAI-TV, apresentados pela diva Lea Massari. Baden e Afonsinho se abraçaram efusivos e nós o convidamos para ir tomar uns “drinques finos” conosco (a famigerada mistura de tônica com guaraná, tudo diet, que eu inventara e havia “aplicado” no Baden): como nós dois, também o Baden estava, pelo menos na ocasião, longe dos tempos etílicos – a seco,  etilicamente falando.
Mas Afonsinho tinha algum compromisso e nos despedimos. Já sentados no Antonio´s, e em meio a generosas doses de “drinques finos”, Baden me disse não saber de minha amizade com o Afonsinho – e o cobriu de elogios: ”um dos melhores bateristas com quem já toquei’. Vindo de quem vinha, o elogio de Baden ao Afonsinho me fez sentir aquela ponta de orgulho por meu amigo e por ser amigo de meu amigo...
Eu vi o Afonsinho pela última vez às vésperas de viajar para Brasília, alguns dias antes de sua morte. Ele estava num quarto de hospital, cheio de tubos, e dormia um sono de sobressaltos: boca entreaberta, a respiração opressa. Volta e meia, como numa carícia, Helena enxugava seu rosto – esquecendo-se de enxugar o próprio rosto, tomado pelas lágrimas. Falamos um pouco, eu e Helena, nossa conversa entrecortada pelo choro, mas não esperei que Afonsinho acordasse: ele acabara de conseguir dormir.  A visão de meu amigo naquela situação não me fez nada bem, nem podia: pressenti que o fim estava próximo. Preferi, prefiro ainda agora, guardar a imagem de algumas semanas antes de sua morte, no mesmo quarto de hospital, onde conseguimos conversar um pouco – quando ele até sorriu, dizendo que não me oferecia café porque eu iria ter que balançar a xícara, com aqueles nossos volteados de praxe, até que esfriasse.
Essa era uma brincadeira que fazíamos desde que paramos de beber, praticamente ao mesmo tempo, há quase trinta anos. Girávamos as xícaras de café como se giram as taças de vinho. Como se, à semelhança do vinho, ao girarmos as xícaras fizéssemos desprender as partículas responsáveis pelo aroma do café. Pura curtição. É essa imagem de meu amigo sorrindo que trago comigo ainda agora. E que me leva aos tempos em que dávamos boas gargalhadas a respeito de tudo e de nada, enquanto o conduzia noite aforadentro em meu carro – ele e sua bateria – para os shows e bailes cariocas, só pra aplaudir seus solos mágicos, fenomenais. Seus shows & solos de nunca mais.

Há cerca de um mês, no Festival de Cinema de Ouro Preto, eu e minha mulher Patrícia vimos My name is now, o belo filme sobre Elza Soares, realizado por minha amiga Bete Campos. Durante a exibição, lembrei-me o tempo todo da última vez em que estive com a Elza Soares. Foi há uns três anos, se tanto, num show dela no Bar Brahma em São Paulo, naquela esquina famosa da Ipiranga com a Avenida São João. Fui ao camarim cumprimentá-la, ela sentada numa cadeira – e foi sentada que fez o show, como vem fazendo desde que caiu do palco no Rio, em 1999, e fraturou a coluna durante um show no ATL Hall com o trio Afonso Vieira-Alberto Farah-Jimmy Santa Cruz.
Não nos víamos há muitos anos e Elza me abraçou com um sorriso, sorriso que sumiu logo de seu rosto quando perguntou pelo Afonsinho e eu lhe disse que ele estava com enfisema e sofrendo muito: “Manda um beijo pro nosso menino. Diga que vou a Cataguases visitá-lo qualquer dia desses”. Ao vê-la assim, sem poder se levantar, sua fala pareceu-me apenas um gesto de gentileza, como que um recado carinhoso para nosso amigo. Do jeito que estava, e que ainda está, não havia mesmo condição de ela vir a Cataguases para ver aquele bambino que “na batera é coisa louca”.
O filme de Bete Campos sobre a Elza prima pela emoção que extrapola de grandiosos primeiros planos, e me lembrou muito a exposição Antropologia da Face Gloriosa do meu amigo e também cineasta Arthur Omar, que vi no CCBB-Rio há alguns anos.  Elza está esplendorosa no filme da Bete, e falei isso com ela quando jantamos juntos no final da noite. Bete concordou com a ilação que fiz de seu filme com a mostra de Arthur Omar, e me disse que eu tinha razão – ela também tinha adorado a Antropologia da Face Gloriosa. 
             Afonsinho não aparece no filme da Bete, pois as imagens foram realizadas quando ele não mais acompanhava Elza Soares. Mas no jantar, ao lado de vários amigos e cineastas mineiros – Geraldo Veloso e Anita, Paulo Augusto Gomes e Eulàlia –, estava também o casal de cineastas Fábio Carvalho e Isabel Lacerda. Foi quando me lembrei do filme que eles realizaram durante o show “Cantando pra não enlouquecer”, realizado pela Elza em 1998, em plena Rua Guaycurus, no Centro de Belo Horizonte, acompanhada pelo trio Afonso Vieira-Alberto Farah-Jimmy Santa Cruz. O Fábio me enviara o link do youtube ano passado, quando soube que o Afonsinho estava doente, e já nada bem. Falei com eles sobre o quanto me emocionara o filme, que acabei passando pra DVD e dando de presente ao Afonsinho. 
Lembrei-me disso exato agora e resolvi rever as belas cenas, os ângulos inusitados e a perfeita sincronia imagem-som de “Elza Soares na Rua Guaycurus”, fotografado e dirigido por Fábio, com primorosa montagem de Isabel. Pra quê! Vejam vocês agora o show no link a seguir – onde a cantora é recebida pelo também saudoso compositor Fernando Brant e aplaudida por extasiados populares à beira do palco: Elza enlouquecendo a “turma do gargarejo”. Rever o filme foi uma só emoção do princípio ao fim, com direito a novas lágrimas escorrendo nos solos de Afonsinho, principalmente quando Elza o chama ao proscênio e ele a acompanha ritmando o samba num crescendo, com suas baquetas soando velozes sobre o chão do palco.
 Estavam ali de novo, e afiadíssimos, os “quatro loucos no samba”, e mais uma vez ressurge o Hino Nacional (o be-bop de Elza em contraponto com o baixo de Jimmy), seguido do “Brasil” de Cazuza, e novamente Caetano, não só numa enlouquecedora levada de “Língua” (epa!) como em “Desde que o samba é samba” – agora sim, como Afonsinho tanto gostava, a bateria a todo pano na corrida marcação da voz de Elza: “Mas alguma coisa acontece/ no quando agora em mim/ Cantando eu mando a tristeza embora”.  Pois é, Afonsinho, cantando a gente manda a tristeza embora.
Mas dói no quando agora em nós.  

14 de set. de 2015

5- Afonsim,Banana,Garrincha, Lúcio Alves & SylvinhaTelles

   Show no CCBB/Rio Clássicos do Jazz




Meses depois do porre negro romano de 1979, e já no Rio, convido o Tião e o Afonsinho (que acabara de chegar da Itália) para uma feijoada lá em casa, num apartamento da Tijuca onde eu morava na época. Foi o quarto porre negro. Isso porque, feijoada sem batida de limão, como bem o sabeis, “dá cadeia”. Lá pelas tantas da noite, resolvo dar uma carona pro Afonsinho (o Tião já fora embora), que estava na casa de sua irmã Marluce, no Leblon. Demos uma parada estratégica num botequim da Praça da Bandeira, soltanto pra abastecer. Só me lembro que o que aconteceu foi depois de o Afonsinho contar umas histórias das peladas que jogara com o Garrincha (e também com o Chico Buarque) quando a Elza Soares morava em Roma.
O boteco, àquela altura, estava cheio de bebuns das mais variadas estirpes, um ambiente que vou te contar. Afonsinho foi ao banheiro e na volta tropeçou num deles, um sujeito imenso e mal encarado. Tanto que não se fez de rogado: não aceitou as desculpas e partiu logo pra cima do nosso baterista. Eis que surge do nada um negão pra-lá-de-pra-lá-de-grande, que segura o outro e manda essa, inacreditável: “aqui ninguém parte pra cima de amigo do Mané Garrincha, que eu parto logo na porrada”. Ufa, pagamos umas cervas pro nosso novo e nobre amigo, e demos no pé. Dessa vez não teve pão com salame, mas o susto foi grande. Qualé, qualé! Viva nossas pernas tortas, viva o Mané!
Corta para Cataguases, final dos anos 1980. Já vai pra mais de meia-noite de um domingo quando entramos em meu carro rumo ao Rio. Ao meu lado, Afonsinho – em definitivo no Brasil, após quase vinte anos na Itália – diz que seu gosto pela música veio de seu tio Vadinho, que tocava sax como ninguém, e gostava muito de jazz. Fala de sua bateria, que ficou em Roma, e de um festival de jazz onde tocou com Tony Scott, um dos ídolos de Billie Holiday.  Lembramos então do Edson Machado, o Edson Maluco, e daquele seu solo de bateria antológico na gravação de Nara para a música Opinião, de Zé Kéti.
E também do ator Sal Mineo, canastríssimo, no papel do baterista Gene Krupa, um dos ídolos do Afonsinho e de outros bateristas – do Tião, é claro, do Milton Banana, do Edson Machado, do Reizinho da Bateria, do Robertinho Silva e também do nosso grande amigo Juquinha – que além de baterista foi jóquei e marceneiro dos melhores. Acho que, à exceção do Robertinho, toda essa gente já se encontra no rol dos “saudosos” – como, aliás, a grande maioria dos nomes citados nessa série de crônicas. 
Entramos em Teresópolis para um café com coca-cola: vão longe, e para sempre, os tempos etílicos – aqueles memoráveis porres negros.  São quase três da manhã e o bar está cheio. Um cidadão que está tomando uísque volta-se pra mim e diz, solene: “Vi tua mulher ontem no Golf Club. Ela anda bebendo muito”. Toma um trago e olha pro Afonsinho: “Não tava te conhecendo. Sabe que eu votei em você? Pois é, eu também sou PMDB”. Detalhe: nunca havíamos visto aquele sujeito. Afonsinho sorri e diz: “É incrível nossa capacidade pra atrair malucos”. Bingo!
Mas malucos mesmo, malucos por música de qualidade, foram aqueles três personagens inefáveis que se responsabilizaram por boa parte do melhor som produzido no Rio dos anos 1990 – o trio formado pela bateria de Afonso Vieira, o piano de Chiquinho Neto, um dos melhores instrumentistas da noite carioca,  e o baixo (e a voz) do saudoso  Manuel Gusmão, o baixista nº 1 da bossa nova, desde que se abriram os clubes do Beco das Garrafas, além de fundador do famoso Copa Trio. Pois foi esse o Trio que sugeri à pianista clássica Lilian Barretto para incluir em seu Projeto “Música da América”, que aconteceu no CCBB-Rio em 1992.
Dito e feito. Sob o título “Clássicos do Jazz”, o trio Afonso-Chiquinho-Gusmão mandou ver no palco do Teatro II do CCBB, numa das melhores e mais aplaudidas performances do Projeto “Música da América”. Foram muitos os standards do jazz apresentados num show de quase duas horas naquela noite de 05 de setembro de 1992. Editei trechos do show mais que memorável do Trio, que se encontram no vídeo “Clássicos do Jazz” (link a seguir), destacando músicas como “There´s A Small Hotel”, de Richard Rogers e Lorenz Hart; “Don´t Ge Around Anymore”, de Duke Ellington e Bob Russell; e “Route 66”, de Bobby Troup.  Um show “da pesada”, como se dizia naquele tempo, com Afonsinho solando como nunca na batera.     
Ao longo desses últimos três meses desde a morte de meu amigo, e enquanto começava a estruturar essa série de crônicas, a imagem do Afonsinho permanecia viva e me assolava a sua lembrança a cada momento. Nossos muitos risos, suas muitas performances, lances que surgiam do nada, como se soubessem que eu estava envolvido na escritura dessas linhas, e assomado pela saudade.  Como os três cds da Coleção Folha 50 Anos de Bossa Nova, comprados ao acaso em Paraty durante a última Flip, e que vieram rodando em meu carro.
Um deles, com o Milton Banana Trio e sua bossa-jazz, me levou de volta a Copacabana, ao “200 da Barata Ribeiro” e ao Tião e ao Afonsinho. Milton, que acompanhou Tom Jobim e João Gilberto desde o início da bossa nova foi, na verdade, o criador da “batida diferente” que acompanhava, no bar do Hotel Plaza, a revolucionária batida do violão que João aplicava aos sambas de Caymmi, Ary Barroso, Geraldo Pereira e dele mesmo. No encarte do disco, Ruy Castro escreve: “É a Milton Banana que se deve, não apenas o típico teque-teque da bateria da bossa nova, mas todo o colorido rítmico e a intensa variedade de tempos que o ritmo exigia”. Vinte anos depois que Milton Banana me perguntava sobre a Bolsa de Valores naqueles tempos do “200”, eu o encontrei tocando – para ninguém! – num soturno inferninho do bas-fond de Copacabana.
Foi nessa época que o Milton andou morando de favor num quarto de fundos do apartamento de minha amiga Míriam, uma professora de português de “escolas de escol” do Rio. Míriam era uma pessoa séria e recatada, que adorava música e literatura: tenho até hoje uma edição bem cuidadíssima da Divina Comédia, fartamente ilustrada por Gustavo Doré, que ela me presenteou. Bem, Míriam era recatada até que tomava umas e outras no Licks Bar, o botequim em frente ao apartamento onde eu morava na Constante Ramos, nosso “escritório”, meu e de toda a turma da rua. Aí, meus caros, saiam todos de baixo: ela se transformava na “Míriam Camburão” e botava pra quebrar. Coisas da Copacabana daqueles tempos de nunca mais.  
Mesmo ajudado pelo cantor e compositor Mário Telles, irmão da Sylvinha, que organizou um show beneficente para ele, Milton Banana morreu em maio de 1999, após graves problemas circulatórios provocados pela diabetes (teve uma perna amputada numa cirurgia no mês anterior).  Segundo Ruy Castro, no velório chamou a atenção uma coroa de flores com os dizeres: “A Milton, a quem o Brasil não homenageou, nem reconheceu. Ass: Todos os músicos do Brasil”. Soube-se depois que a coroa teria sido enviada por – quem mais? – João Gilberto.
Outro cd comprado em Paraty foi do nosso conterrâneo, o saudoso cataguasense Lúcio Alves, de quem eu e Afonsinho tanto gostávamos (e o João Gilberto também; Lúcio era um de seus ídolos). Lembro de alguns de nossos papos. Eu, Afonsinho e o Lúcio, décadas e décadas atrás, num botequim da Urca, nas proximidades da TV-Tupi, onde Lúcio era diretor. Nossa conversa girava quase sempre sobre o Festival de Música Popular Brasileira de Cataguases que eu e o Joaquim Branco estávamos organizando em 1969 – e Lúcio Alves nos deu uma grande força para a realização.
E parece que está acontecendo ainda agora aquela viagem de tempos depois, quando viemos num táxi do Rio para o Festival – eu, Lúcio e a saudosa cantora (e “certinha” do Stanislaw Ponte Preta) Luely Figueiró. Lúcio era um dos jurados (ou o presidente do Júri?) e Luely iria defender uma das músicas, “Momento”, exatamente uma parceria do Afonsinho com o também saudoso compositor cataguasense Messias. Enquanto o táxi subia a Serra de Petrópolis, Luely e o – também ele! – saudoso Lúcio Alves parodiavam Tom Jobim em sincopados semitons: “Minha alma canta/ deixo o Rio de Janeiro/ estou morrendo de saudade”. E emendavam com aquela valsa-maravilha-de-uma-cidade-maravilhosa, aquele campo/contracampo cinematográfico de Ismael Netto e Antonio Maria: “Vento do mar e o meu rosto ao sol/ a queimar, queimar. /Calçada cheia de gente a passar/ e a me ver passar”. Realmente, essas crônicas estão se transformando num festival de saudosos, e nos deixam aqui morrendo de saudade.
O terceiro cd que comprei era da Sylvinha Telles, que foi quem levou o Afonsinho pro Rio, após vê-lo tocando uma noite em Cataguases. Não conheci a Sylvinha, que morreu muito cedo, mas sim seu irmão Mário Telles, o autor da bela canção Nanã, em parceria com Moacir Santos: “Nesta noite nos delírios meus/ Vi nascer um novo amanhã/ Veio o dia com um novo sol/ Sol da luz que vem de Nanã”. Afonsinho e eu nos encontrávamos às vezes com o Mário na Copacabana dos anos 1990, em longos papos que começavam no Bar El Cid, na Rua Viveiros de Castro, e se estendiam Barata Ribeiro e noite afora até as proximidades de seu apartamento na esquina da Rua Paula Freitas. Numa dessas noites, Mário me presenteou com um de seus cds onde canta várias canções de Baden Powell com Vinicius e duas de sua parceria com Baden (Aurora de Amor e Tristeza vai embora), além de Nanã. E nessas e em outras ocasiões Mário (morto em 2001, mais um ”saudoso”) sempre dizia pro Afonsinho como sua irmã falava bem dele e de sua bateria.
Sylvinha Telles foi umas das “inventoras” do canto cool da bossa nova, ao lado de João Gilberto, de quem, aliás, foi namorada. Seu cd é praticamente dedicado a Tom Jobim (ela talvez tenha sido a cantora que mais gravou músicas do Tom) e traz na faixa de abertura um impecável “Dindi”, canção que ficou mais conhecida em sua voz. “E o vento que fala nas folhas/ contando as histórias/ que são de ninguém/ mas que são minhas/ e de você também”. Ouvindo agora, percebo que Dindi tem a ver com essas histórias que são minhas e do Afonsinho também. Certa vez, perguntada qual foi seu maior sucesso, Sylvinha respondeu: “Dindi. Indindiscutivelmente”.
Mas o disco de Sylvinha conta também com “Canção da volta”, de Ismael Neto. E ouvindo Sylvinha cantar os versos de Antonio Maria (“meu lugar é aqui/ faz de conta que eu não saí”) revém a lembrança das palavras do Afonsinho em 1993, após a execução de nossa música Vermelho Cais no palco do Festival em Cataguases, que homenageou exatamente, olhaí, o “saudoso” Lúcio Alves, morto meses antes: “eu fui (para a Europa), mas voltei. Meu lugar é aqui”. Será que foi inconsciente, ou meu amigo estava “citando” a gravação da Sylvinha? Ou, mais uma vez, eu estou pirando na batatinha?

Continua na próxima semana

9 de set. de 2015

4 - Fernet Branca/ Vermelho Cais




No link a seguir o áudio completo de Vermelho Cais no cd

“Dentro & Fora da Melodia”


O terceiro porre negro Werneck/Vieira começou naquela tarde de 1979 em que cheguei a Roma vindo de Argel. E bebendo durante todo o voo. Na época, voar pela Alitália era como trafegar num mercado persa: as aeromoças vendiam de tudo e mais um pouco – e uísque é o que não faltava. Detalhe: estava há cerca de 40 dias na Argélia, a pão e água. Perdão, a pão com poulet (sanduíche de galinha), quase a única coisa que comia, pois não conseguia encarar (literalmente) o boureck (batatas com atum), o kebab (frango com fritas) e outras, vamos dizer, “guloseimas” da gastronomia argelina.
O couscus marocain (tradicional também na Argélia), então, nem se fala: era só bater o olho para eu “desencarar” de imediato. Ficava mesmo no pão com poulet, que descia assim-assim com cerveja Nouas – nome de um poeta argelino que só poetava devidamente embriagado. Nouas quente, é claro: o calor era Rio 40º, mas os árabes colocavam a cerveja em cima da geladeira, nunca dentro, vá entender. Às vezes, no cardápio do hotel, aparecia uma massa, regada a Peau d´Oignon, um vinho argelino bem razoável. Mas nada de destilados: estávamos em pleno Ramadán. Então, o uísque “que se me faltou” em Argel, veio a calhar no voo da Alitália. 

No aeroporto de Fiumicino esperavam-me a Adriana, minha mulher na época, que acabara de chegar do Brasil, e nossa amiga, a aeromoça italiana Paola, recém-separada do Afonsinho. Ele estava fazendo show na Alemanha, e só voltaria a Roma no dia seguinte. Dormimos na casa da Paola, nas proximidades de Fiumicino, e no outro dia fomos pra Roma, onde nos encontramos com Afonsinho. Nós não nos víamos há uns bons cinco anos, ou mais. Como eu queria cortar cabelo, ele levou-me a um barbeiro seu amigo, nas vizinhanças de Viale di Villa Pamphili, onde iríamos ficar, no apartamento onde ele havia morado com a Paola. Foi quando começamos a beber num bar ao lado, enquanto eu esperava a vez no barbeiro.  A beber e conversar e a conversar e beber e quase nos esquecemos do barbiere  – que acabou fazendo um corte sem dor, mesmo porque eu já estava devidamente anestesiado: nossos copos adentraram conosco a barbearia. 
Vai daí que a noite veio e quando a noite vem, vem a saudade, vocês bem sabem. E nós dois resolvemos ir pro apartamento onde o Afonsinho estava morando: ele queria me mostrar umas gravações que andara fazendo com grupos de jazz europeus. Telefonamos pras “respectivas” e ficamos de nos encontrar com elas só no outro dia, apesar dos protestos. Imagina! Não via minha mulher há 40 dias, é certo; mas também não via meu amigo há cinco anos.  Certo? Chi lo sà? Pegamos outra garrafa de uísque e fomos pro apartamento do Afonsinho, onde ouvimos suas gravações, e vários outros discos de jazz.
Ele falou-me daqueles anos em Roma, de shows na RAI, muitas vezes apresentados pelo literalmente grande Vittorio Gassman, de um programa sobre música brasileira, ao lado de nossa ídala, a não menos Lea Massari, por nós adorada desde que vimos L´Avventura, do Antonioni, e Le Souflle au coeur, do Louis Malle.  De quebra, contou-me de uma colazione, um café da manhã, com ninguém menos que Sophia Loren, no pallazo onde ela morava na Piazza Navona. É que Afonsinho tocou durante um tempo com o pianista Romano Mussolini (filho do próprio), que era casado com a irmã da Sophia. Pois é, daí “o porquê” da colazione na casa de La Loren. De repente, Afonsinho tirou da estante meu livro “Selva Selvaggia”, que eu lhe enviara três anos antes, e onde havia aquele poema que fiz pra ele, “Bilhete pra Roma”. Leu o poema, devidamente emocionado, nós dois afogados em talagadas de uísque e baforadas de cigarros.
Depois, Afonsinho falou-me da gravação que fizera com Gato Barbiere para a trilha sonora do filme “O Último Tango em Paris”, de Bernardo Bertolucci. Algumas semanas à frente, eu veria em Paris o “Tango” de Bertolucci (na época, proibido no Brasil) num cineminha praticamente vazio do Chatêlet (o filme, de 1972, estava há anos em cartaz). Foi quando lembrei-me  da letra que o próprio Gato Barbiere fizera para a canção-tema do filme, que acabou não aparecendo no corte final, onde ela surge apenas instrumental: “We don't exist/ We are nothing but shadow and mist/ In the mirror we look as we pass/ No reflection's revealed in the glass”. Nada somos, só sombra e névoa, Pois é, eu e Afonsinho já estávamos devidamente enevoados por névoas e névoas de nada, de nada mais que toneladas de uísque caubói enquanto a noite se esvaía.
Quando vimos, estava amanhecendo. Saímos rumo ao Trastevere, que nós também temos direito à nossa colazione. Afonsinho encarou um tramezzino, mas meu estômago não estava pra sanduíches e lembrei-me que, no Brasil, costumava curar minhas ressacas com uma dose de Fernet e um chope. O amargo do Fernet me parecia “medicinal” – e não era? Mas, às vezes funcionava. No terceiro chope com Fernet já estava aprumado pra enfrentar o dia. Foi só falar em Fernet que o Afonsinho me disse que eu ia beber então o melhor Fernet do mundo, o Fernet Branca, o preferido do Chico Buarque quando estava em Roma, onde, entre outras coisas, gravou Per um pugno di samba – disco que acabáramos de ouvir no apartamento, com il bambino Affonso, o próprio, na bateria.

Fernet Branca é o seguinte: não dá pra tomar uma dose só. Na quarta, ou quinta, tomamos coragem e – facciamo un giro sul Trastevere – nós dois a girar, devidamente girados, Trastevere afora. Foi quando, dessas coisas que só aconteciam com a gente, demos de cara com as madames: Adriana e Paola também andavam por ali, a fazer a feira matinal, e quase trombam com a gente. Foi bronca pra lá, bronca pra cá. Fernet Branca pra lá, Fernet Branca pra cá nos dois “irresponsáveis”. Começou mal nosso giro europeu, a cabeça a girar, a girar.


 girar, a girar está aqui ainda agora o meu cd “Dentro & Fora da Melodia”, com o solo mais que grandioso de Afonsinho na música “Vermelho Cais”, única parceria nossa. A canção pode ser ouvida na voz de Maria Júlia no nicho “Trabalhos/Canções” do meu site www.ronaldowerneck.com.br. Ali, meu amigo ataca até de voz & berimbau: não por acaso na faixa “Berimbau”, de Baden & Vinicius. De onde surgiu “Vermelho Cais”? Nós dois gostávamos muito de Take Five, um dos clássicos do jazz, composição escrita por Paul Desmond e apresentada de forma magistral pelo quarteto de Dave Brubeck no álbum Time Out, de 1959, com um belo solo de bateria de Joe Morello e aquele inusitado compasso 5/4.
Para alguns, vem daí o nome da composição, desse estranho compasso. Mas há controvérsias: outros atribuem o “take five” a dar um tempo de descanso, parar a gravação por uns cinco minutos;  outros ainda a reservar uns minutinhos de atenção que seja ao que o outro está dizendo. Time out foi, aliás, um dos discos que eu e Afonsinho ouvimos mais de uma vez naquela noite romana. E também ouvimos uma outra versão de Take Five, com o mesmo Brubeck Quartet e a voz de Carmen McRae: Won't you stop and take/ A little time out with me/ Just take five/  Stop your busy day/ And take the time out/ To see - I'm alive// Wouldn't it be better not to be so polite, you could offer a light;/ Start a little conversation now, it's alright, just take five / just take five”.

Ainda em Roma, Afonsinho escreveu uma composição, “Casinha Pequenina” – gravada pelo trio formado por ele, mais Alessio Urso, no baixo e Írio de Paula, na guitarra – cujo tema, não sei bem o porquê, sempre me remeteu ao Take Five. Pois é, “reservar uns minutinhos de atenção que seja ao que o outro está dizendo”. Acredito haver nas duas músicas uma atmosfera que as aproxima. Já no Brasil, década de 1990, eu coloquei letra em trechos da música do Afonsinho, que acabou se transformando em nossa canção “Vermelho Cais”, defendida por minha amiga Neti Szpilman num Festival de Música aqui em Cataguases, em 1993, com Marco Carvalho na guitarra e meu amigo como sempre arrasando na batera. Não era nem bem uma “letra”, mas palavras soltas, lançadas na melodia em contraponto ao tema: “sol/sal/cais/caos”, “voz/que já partiu/ não volta mais/paixão fugaz/ gás do amor se esvai/ vai, coração/vermelho cais”. Ouvindo agora, e “novamente de novo”, vejo que tem a ver com isso tudo que aconteceu com meu amigo e sua voz que já partiu e não volta mais.

Continua na próxima semana

31 de ago. de 2015

3 - Para Mané, para Elza, para Chico, para Pelé e Afonsim

Show do trio Afonso/ Alessio/ Írio  com a Orquestra Pino Calvi

Nápoles/1976


Ano seguinte, 1966, Carlos Sérgio foi prum apartamento no Leme (que nós dividiríamos tempos depois) e Afonsinho e eu pra Copacabana, pro famigerado Edifício 200 da Rua Barata Ribeiro. O 200 é o seguinte, bicho. Sabe, gente, é tanta coisa, tanta gente, não dá pra contar ou cantar. Tanta coisa que a gente nem sabe ou quer mais saber. Foi quando surgiu o Tião, que veio morar conosco. Quer dizer, um à época bancário – este aqui – e dois bateras. Enquanto eu dormia, os dois tocavam pela boates de Copa e dessa vida afora. Eu acordava com eles chegando, cansadíssimos. Só nos falámos mesmo à noite quando, de volta do trabalho, saíamos juntos: eu pra jantar, os dois ainda pra almoçar. 
Pelo apartamento do 200 passaram vários e vários músicos. Alguns “passavam de passagem”, ficavam só dois, três dias; outros, até mesmo três meses, como aconteceu com o Wagner Tizo, então um jovem pianista iniciante na noite. Muita gente, tanta, tantos músicos: Martinho da Vila, os também bateristas Robertinho Silva, o saudoso Milton Banana, João Batista Stockler (meu querido amigo Juquinha, que também já se foi – o baterista que acompanhou João Gilberto e Tom Jobim no emblemático álbum inicial da Bossa Nova, o Canção do Amor Demais, além de ter sido parceiro de Tom em sua primeira canção, Faz uma Semana), o pianista Paulinho Cego (onde andará?), o guitarrista Írio de Paula, Djavan e outros e outros. Até mesmo o atazanado saxofonista e arranjador Tranka (cadê você?), que fez ali mesmo, na sala, o arranjo para uma canção que o Martinho da Vila iria colocar num dos festivais da época (detalhe: Martinho preocupadíssimo, pois o violão onde o Tranka fazia o arranjo tinha uma corda a menos). Nosso apartamento parecia mesmo um estúdio. De malucos – e mais que talentosos.  
Eu chegava de terno do trabalho e era um corpo estranho. Lembro que o baterista Milton Banana sempre me perguntava pelas cotações, pois achava que eu era um broker da Bolsa de Valores. Afonsinho, Tião e eu mal segurávamos o riso (“hoje não foi nada bom, as ações estão em queda”, dizia eu a sério). Um dia, faltou luz. Sexto andar, sem elevador. Showtime: hora de descer para o trabalho nas boates. Paulinho Cego vira-se pro Afonsinho: “Segura aí nas minhas costas, que hoje o Ceguinho é que vai conduzir a parada!”. É, não dá mesmo pra contar. Vivenciamos ali quase tudo que meu amigo, o dramaturgo Paulinho Pontes, que morava nas redondezas, iria contar depois em sua peça, “Um Edifício Chamado 200”. Houve um tempo, anos à frente, quando o Paulinho estava casado com a Bibi Ferreira, em que eu ia muito à casa deles, junto com meus amigos paraibanos – o compositor Marcus Vinicius, hoje maestro e arranjador, e o Waltinho Carvalho, então estudante da Esdi e agora fotógrafo e cineasta de merecida fama. Às vezes me pergunto: será que muitas daquelas inacreditáveis histórias do 200 que eu contava não teriam servido como motivação para o Paulinho Pontes escrever sua peça?
Mas, voltemos ao Afonsinho. Sozinho, ele era uma bateria em sua plenitude. Com uma levada que substituía toda a bateria de uma Escola de Samba. Morando juntos, às vezes eu o acompanhava e assistia aos shows. De todos, lembro particularmente de um com a Elza Soares e os Originais do Samba, que na época contava com Almir Guineto e o Mussum pré-Trapalhões no reco-reco. Foi uma temporada num teatro do final do Leblon e a bateria-escola-de-samba do Afonsinho quase abafava o Samba dos Originais. Vi o show várias vezes – tantas que lá pelas tantas nem entrava mais no teatro. Esperava o meu amigo num boteco em frente. Eu e o Mané Garrincha que, por sua vez, esperava a Elza.
Vamos e venhamos – mas não muito rápido, senão o barco balan-balançando balança todo pra lá e pra cá e ficamos definitivamente borrachos: enquanto eu bebia um ou outro modesto uisquinho, o Mané derramava sucessivos copos de conhaque. Copos mesmo, daqueles americanos, dos grandes. Nunca vi coisa igual. Final do show, atravessávamos a rua para “pegar o pessoal” – o Mané impávido, como se tivesse bebido guaraná. Ufa! Anos, muitos anos depois, eu o veria entrar num botequim de Laranjeiras, nove da manhã, o rosto inchado, os olhos que não olhavam mais para nada. Mané nem me viu: sem condições. Virou num só lance uns três copos de conhaque, daqueles de sempre, e saiu cambaleando pela calçada, as tortas pernas trôpegas. Nunca mais o vi.  
Pois é, o Mané Garrincha, companheiro do Afonsinho em várias peladas romanas, ao lado do mesmo Chico Buarque com quem meu amigo gravou, na Roma dos anos 1970, um disco antológico, Per un pugno di samba, com a Orquestra de Ennio Morricone. No encarte, diz o produtor Sergio Bardotti, também autor das versões das letras do Chico pro italiano (faço aqui uma tradução apressada do final do texto de Bardotti): “É provavelmente (o disco) o menos comercial, o menos vendável, o menos “gosto médio” que jamais produzi, mas quem ainda tem um tico de sensibilidade nos ouvidos, quem resistiu ao assalto de baterias e guitarras a 400 decibéis, o amará como nós que o fizemos, como a dona música bem o manda.”
A bateria de Afonsinho (il bambino Affonso, como está nos créditos do encarte) permeia quase todas as faixas na base da vassourinha, assim meio cool, segurando sóbrio a “cozinha” pra voz de Chico (como queria Sergio Bardotti). Quase, porque em Sogno di um carnevale (“Sonho de um Carnaval”) e Ora dico sul serio (“Agora falando sério”) il bambino se solta e manda ver como num prenúncio de suas melhores performances, que ainda estavam por vir. É um belo disco esse do Afonsinho acompanhando Morricone & Chico Buarque, o mesmo Chico que faria bem mais tarde a canção “Futebol”, aquela que termina com “Para Mané, para Didi, para Pagão, para Pelé e Canhoteiro”.
Pagão, do Santos, e Canhoteiro, do São Paulo, eram ídolos do menino Chico Buarque. Tempos depois, canção pronta e já famosa, Pagão chegou a jogar uma partida no Politheama, o time do Chico. Mané, Didi e Pelé, vocês sabem quem são, ou não? Pelé, pois é. Ninguém acredita, e nem mesmo sei como eu e Afonsinho fomos parar na arquibancada do Maracanã, atrás das redes do goleiro Andrada, do Vasco, naquela noite de uma quarta-feira de 1969, quando o santista Pelé faria seu milésimo gol. Apesar de flamenguistas, nós só íamos ao Maracanã quando Pelé jogava, e mesmo assim muito raramente. Mas estávamos lá, atrás daquele gol, o Andrada quase pegando o pênalti cobrado por Pelé. Explodir de flashes, foguetes, gritos de gol – e nós, como sempre, testemunhas “auricularesdessa e de outras histórias.
   

Mas, antes, houve o segundo “porre negro”. Ainda a falta de cigarro na madrugada. Já morava no Leme: desci e peguei o carro, o nosso Gordini, o imbatível bólido que, além do apartamento, também dividia com o Carlos Sérgio. Mal liguei o Gordini, lembrei-me que podia ir a pé, pois o Bar do Careca, a salvação da madrugada, ficava logo ali, no início do Leme. Mas chuviscava, e bateu preguiça. Nem bem passei a terceira e já chegava ao bar, ao lado das boates onde fervilhavam os jovens músicos da época – do Chico Buarque, que fazia show com a Odete Lara no Arpège, ao pessoal do Grupo Manifesto, Gutemberg Guarabira & Cia. Todos saíam das boates e terminavam a noite no Careca.
Nem bem cheguei, o Afonsinho e sua bateria desceram de um táxi, vindos de um baile na Zona Norte. Um encontro desses, assim na madrugada, merecia um chope, né mesmo? Uns dez chopes depois, resolvi dar uma carona pro meu amigo e sua bateria. Nem bem entramos no carro e perguntei (de onde fui tirar isso?) se ele já tinha ido alguma vez ao Cristo Redentor. Pois é, nós morávamos no Rio há uns quatro anos e nunca subimos  ao Corcovado – “o Redentor, que lindo”, da canção do Tom . “Ora, ora, Afonsinho, então vamos lá”. E fomos, em meio à chuva, os chopes ainda chacoalhando em nós. No final do Cosme Velho, paramos numa padaria, o dia já querendo vir, e compramos uma garrafa de Fogo Paulista. Até hoje, só de ouvir esse nome já me sinto meio nauseado.  

Na subida, Fogo Paulista rolando, o Gordini ia também rolando na pista molhada, em meio a curvas e mais curvas (pra quê tanta curva, meu Cristo?) – e nada do Redentor surgir. Lá pelas tantas, o Gordini deu uma rabeada, pura imperícia de motorista iniciante, e Afonsinho se assustou. Tudo bem, eu disse: tamo subindo, mas já tô testando o freio pra descida. Não sei se Afonsinho acreditou na tirada surrealista, mas lá fomos nós até el cumbre del Corcovado. Nem bem os faróis bateram no platô vi dois fuscas e um punhado de gente estranha parecendo dividir drogas, roubo, coisas da malandragem. Reduzi o bólido num só lance, dei meia volta e desci desabalado.   
Pelo retrovisor, vi os fuscais faróis dos dois fuscas (o)fuscando ensandecidos atrás de nós. Não sei mais como fiz todas aquelas curvas, o coração aos saltos. Num lance de sorte, dobrei numa estrada vicinal. Os dois fuscas sumiram do retrovisor. Parecia perseguição de cinema. E não era? Como os fuscas, também o porre passou. Percebi que estávamos em Santa Teresa. Pegamos alguma outra descida, ainda meio perdidos, e nos vimos nas proximidades da Avenida Brasil. Levado pelos fuscas, o susto sumiu. Ufa!
Virei pro Afonsinho, mais branco que eu devia estar, e soltei de uma só vez: “vamos pra Vila da Penha fazer uma surpresa pra Marilda”. Acho que esse era o nome da sobrinha do pianista que tocava com ele, e que eu andava meio que namorando. Na Vila da Penha, deixei o Afonsinho num boteco e bati na casa da moça. Ela estava saindo pra missa das sete e me olhou assustada, pois eu estava mesmo de assustar. Mal me cumprimentou e partiu a passos firmes pra igreja. Eu voltei pro boteco, pedimos um pão com salame e uma cerveja pra rebater. Fim de noite, de susto, de “Redentor, que lindo”, de namoro infindo. Pão com salame parecia ser o “gran finale” de todos nossos porres.
Continua na próxima semana

24 de ago. de 2015

2 - O show que não houve: chuva, chope e salame

      show do trio Afonso/ Alessio/ Írio    Auditório da RAI – Roma/1976




    Rosário Fusco tinha razão: o que ficou mesmo na lembrança de minhas histórias com o Afonsinho foi o inesperado, nossas pequenas maluquices, nossos porres homéricos, quando ainda se tomavam porres e ainda se dizia homéricos. Como homérico foi aquele imbróglio quando Afonsinho arrumou de tocar num Clube da Zona Norte. Era para fazer a abertura de um show do Martinho da Vila em Campo Grande, num tempo sem GPS e nem sequer Campo Grande, eu acho. Nem mesmo, quem sabe?, Martinho da Vila. Pudera: era 1965 e aquilo era muito, muito longe. Nós morávamos numa pensão na Praia de Botafogo e, como quase sempre, fomos juntos em busca dos músicos num velho táxi americano, dos grandões, acho que um Chevrolet daqueles mafiosos dos anos 1940. 
   Lembro de termos apanhado o baixista na Tijuca – qual era mesmo o nome? Um negão gordo e risonho. Atenção, periferia, nada de “afrodescendente”: era “negão” mesmo, como dizíamos nos anos 1960, absolutamente incorretos e sem qualquer resquício de culpa. Ele sentou ao meu lado no banco de trás e sentou junto seu enorme contrabaixo: um par perfeito, ele e seu instrumento. E fomos Avenida Brasil afora rumo a Campo Grande. Só que havia uma conexão Bangu, que o taxista não sabia. Era para pegar o Írio, o grande guitarrista Írio de Paula, que logo depois iria para Roma com o Afonsinho e a Elza Soares e lá ficou até hoje, fazendo enorme sucesso com aquele seu jeitão Jimmy Hendrix. Todos a bordo – agora Afonsinho, eu e o taxista na frente; atrás, Írio e sua guitarra, o baixista e seu baixo; no porta-malas, toda a parafernália da bateria –, o táxi rolou novamente pela Avenida Brasil até Campo Grande. Já era pra mais de desoras quando chegamos – e nada de acharmos o tal Clube. 
    O endereço “não batia”. Com muito custo, encontramos um desgarrado da noite que nos indicou o lugar. Surpresa: o Clube estava fechado, só um vigia que disse não saber de show nem de “Martinho da Vila nenhum”. E decepção: tivemos que dar meia-volta ou uma grande volta de volta de Campo Grande. Num tempo sem celular, não havia sequer orelhão por perto, e o Afonsinho não teve como falar com o produtor do show. Era noite de sábado e os músicos, Afonsinho inclusive, tocavam em boates de Copacabana e haviam “mandado o Lima” – a velha gíria pra dizer que não iam, mas mandavam “o Lima”; na verdade, um inexistente substituto. Mas, dessa vez, haviam mandado mesmo: tanto que agora estavam preocupados em como pagar os colegas que foram em seus lugares. 
     Bandeira baixa desde que saímos de Botafogo, preço tratado por corrida, o táxi rolava agora cabisbaixo, pois de bandeira baixa e cabisbaixos estávamos todos nós, até mesmo o taxista, talvez preocupado com seu pagamento. E ele ainda precisou, meio a contragosto, se desviar de novo da rota para levar o Írio em Bangu. Ao nos despedirmos, Afonsinho disse pro Írio que não se preocu-passe, nem ele nem o baixista, pois o cachê combinado iria ser pago, nem que ele tirasse do próprio bolso. Mais uma meia hora, e uns três “nens” depois, e já deixávamos o baixista e seu baixo na Tijuca (ele ainda nos convidou para descermos para um café, o que achamos “de bom alvitre” não aceitar, dada a cara de poucos amigos de nosso taxista). 
     Mais uns quinze minutos e estávamos na porta da pensão em Botafogo. Quando o taxista deu o preço, acima do combinado (“sabe como é, tive que ir e voltar a Bangu, fora do nosso caminho”), levamos um susto. O táxi ia ser pago com o dinheiro do cachê, que não rolou. Juntamos os caraminguás e mesmo assim ficou faltando. Foi quando me lembrei do nosso amigo, Carlos Sérgio Bittencourt, que morava conosco na pensão. O futuro dramaturgo foi quem nos salvou, inteirando a grana do táxi. Ufa! Uma aventura, mesmo decepcionante como essa, a gente não esquece, não é mesmo? 
     Na sequência das “pequenas e inesquecíveis maluquices” vividas por mim e pelo Afonsinho, chega a vez do primeiro dos imbatíveis “porres negros”. Deu-se que ficamos sem cigarro no meio de uma noite de domingo. Morávamos ainda na pensão da Praia de Botafogo: Afonsinho, Carlos Sérgio e eu. O papo estava bom, mas nossos cigarros haviam acabado e nos anos 1960 sem cigarro nada funcionava. Descemos eu e Afonsinho rumo ao bar ao lado do Cine Ópera, quatro prédios após a nossa pensão. Mal compramos os cigarros começou a chuviscar e resolvemos tomar um chope. Afinal, quem não está na chuva é mesmo pra não se molhar, não é mesmo? A chuva foi descendo mais forte, os chopes e nosso papo também. 
     Foi então que o bar fechou, bem pra lá de meia-noite. E agora? A chuva chovia choverando (evoé, Oswald de Andrade!) por todo o Rio. Voltar pra pensão era chover no molhado. Era preciso alguma coisa mais forte, mais quente, quem sabe um conhaque com mel, mortífero anti-gripal de toda a gente? Lembrei-me de um botequim que costumava ficar aberto na rua Voluntários, quase esquina com a Praia. Vencemos as três quadras até lá enfrentando com galhardia os pingos de chuva em nossos rostos, e navegando em meio a uma ainda incipiente enxurrada. O botequim estava aberto. Saravá! Sentamos nos banquinhos do balcão e comandamos duas batidas de limão para recomeço dos trabalhos. A chuva chovendo forte lá fora. Solidão apavora. Não, Afonsinho, o samba ainda vai nascer, mas já estamos juntos, copos na mão, tamborim na marcação. 
     De repente, senta-se a meu lado um simpático e bem-falante negão (volto a repetir: não, não era um hoje “afrodescendente”, mas um velho negão anos 1960). Papo vem, papo vai, ele me conta que andou trabalhando em cinema, às vezes ainda trabalhava como maquinista. E disse, pra meu espanto, que estava nas filmagens de Os Cafajestes, naquela cena do nu frontal da Norma Bengell. E começou a contar detalhes das filmagens, daquele famoso travelling circular na praia de Cabo Frio: “na verdade a câmera estava em cima de um jipe, que rodava na areia em volta da Norma e...”. Aí ele sumia por uns bons minutos. Logo reaparecia: “...e então ela peladona e...”. E o negão sumia de novo. Eu imaginei que ele estava indo ao banheiro, mas desconfiei que era banheiro demais pra tão pouco tempo. Virei-me pro Afonsinho: “Que diabos faz esse negão, que some assim no meio do papo?”. 
    Chope e mais chope, o banheiro me chama. Desço do banquinho e sinto a água subindo pelas canelas: o botequim já tinha mais água que o Rio Pomba . Ressurge súbito o negão e me diz que está faturando uma nota empurrando vários carros inundados pela enchente na Voluntários (“coisa de cinco merréis cada empurrada, bicho!”). Só aí nos demos conta do caos. Amanhece, a chuva esmaece. Convoco o Afonsinho para uma retirada estratégica. E lá vamos nós, praia de Botafogo afora, água nas canelas. Paramos num padaria da Visconde de Ouro Preto: afinal era hora do café da manhã. 
     
Sanduíches de pão com salame nas mãos, calças arregaçadas, água nas canelas, caminhamos impávidos rumo à pensão. Bem verdade que às vezes um sanduíche caía em meio à enxurrada, mas nós o recuperávamos com impassível classe. Eis que chegamos. Havia uma escada que levava da rua à porta principal. A enchente tomara bem mais da metade dos degraus. Foi quando avistamos lá no alto o Carlos Sérgio, de terno, pronto para o trabalho, espremido entre algumas pensionistas, dignas funcionárias de algum órgão público. Todo mundo sem poder sair para o trabalho, todo mundo olhando enviesado pra mim e pro Afonsinho, nós dois atônitos, sanduíches de pão com salame equilibrando-se nas mãos trêmulas. 
     Do alto de seu terno, Carlos Sérgio nos deu um pito: “É uma catástrofe, tem gente morrendo, o Rio está inundado, a enchente impede qualquer um de trabalhar e vocês chegam assim, completamente bêbados em plena manhã de segunda-feira!”. Eu e Afonsinho desmontamos em nossas camas enquanto o Rio era inundado por outro rio: imenso e imundo. E percebemos então – moços bem-comportados de Minas Gerais – que havíamos perdido o cartaz com as senhoras funcionárias públicas. Nada mais de paparicos. Nada mais de ovos extras nas refeições. Nada de goiabada.
Continua na próxima semana 

17 de ago. de 2015

1 - AfonSim/AfonSom: distância/altura/atenção


Show do Trio Afonso/ Alessio/ Írio – Auditório da RAI – Nápoles / 1976






Era o primeiro dia de outubro de 1975, lá se vão 40 anos, quando bateu uma saudade imensa do “prezado amigo Afonsinho”, meu querido baterista que tinha ido para Roma acompanhando a Elza Soares e por lá ficara. Nós não nos víamos há alguns anos e acabei escrevendo um poema imenso pra ele, “Bilhete pra Roma”, publicado no ano seguinte em meu livro “Selva Selvaggia”. Começava assim: afonsim/ meu meninim/ tupiniquim/ depois de tanto tempim/segue este bilhetim/ só pra dizer que sim/ estamos bem-muito bem/ loucos como sempre/ de porre às vezes/ sós com saudades.
 E depois de falar de filhos (pois não é que anos e anos mais tarde minha filha Ulla ficaria casada por oito anos com o filho dele, Riccardo?), mulheres, gatos, spaghetti carbonara (umas das especialidades culinárias de meu amigo) & os cambaus, eu finalizava citando um poema de Giuseppe Ungaretti: essas as notícias/ que passo/ ainda com sono/ e pigrizia/ são oito da mattina/ e lá fora/ a manhã/ se descortina/ guarda com´è bella!/ filtrando/ luzes/ pela janela/ paola/ riccardo/ simona/ e tutti quanti/ carbonara & chianti/ às vezes penso/ e/ m´illumino d´immenso.
 Pois é, eu estava lançando livro em Brasília no início de maio quando soube das mortes de Sebastião Cândido da Cruz, o Tião, e de Afonso Alcântara Vieira, o Afonsinho. Um seguido do outro, quase ao mesmo tempo, dois belos e bravos bateristas, meus queridos amigos que se foram. Não pude ir ao Rio para o enterro do Tião, nem vir a Cataguases para o do Afonsinho. Mas, a pedido do Trajano Cortez, editor do jornal “Atual”, eu escrevi lá de Brasília um rápido depoimento:
“Afonsinho, AfonSim era o irmão que não tive e que agora se foi.
Amigo e companheiro da vida inteira, não me deu tempo de sair de Brasília para o último abraçadeus, oh seu apressado! Moramos juntos em Botafogo e Copacabana. Muitas vezes fui uma espécie de seu holder, levando em meu carro ele e sua bateria para os shows e bailes cariocas, só pra aplaudir seus solos mágicos,  fenomenais.
“No apartamento de Copacabana morava também conosco outro baterista, o Tião Cruz. Uma semana antes do acontecido, o Tião partiu, também apressadíssimo, como que para preparar um rufo triunfal de bateria no aguardo da entrada de nosso amigo, que chegou, quem duvida?, ao som de um elegante compasso três por quatro. AfonSim, AfonSom que se cala. E cala fundo em nossos corações”.
 No sábado à tarde, 10 de maio, ainda em Brasília, havia recebido telefonemas de seu primo Mauro Sérgio Fernandes e de minha irmã Rosa: “Afonsinho está na UTI, e nada bem – teve dois AVCs”. À noite, o domingo já vindo, enquanto eu e Patrícia assistimos ao show Abraçaço, do Caetano, é em meu amigo que penso o tempo todo. Afonsinho não gostava muito dos baianos, daquele negócio dos doces bárbaros cantarem correndo no palco, entre outras coisas. Exatamente o que vejo Caetano fazendo agora. Esperava que ele cantasse “Desde que o samba é samba”, essa sim, música de que Afonsim gostava muito e que chegou mesmo a gravar com a Elza Soares no disco “Carioca da Gema”.
















  Mas, não. O show acaba e nada. Nem no bis ela surgiu. Mas aí Caetano cantou “Força Estranha”, uma das preferidas do saudoso poeta Francisco Marcelo Cabral e do Afonsinho e minha também – e me emociono mais uma vez com essa canção, uma das mais belas do baiano. E parecia que Chico Cabral, Afonsim e eu cantávamos juntos com Caetano: “A vida é amiga da arte/ É a parte que o sol me ensinou/ Por isso uma força me leva a cantar/ Por isso essa força estranha/ Por isso que eu canto, não posso parar/ Por isso essa voz tamanha”. Cantava junto com Caetano enquanto a voz do Chico Cabral já sumia, o Afonsinho morria e eu não sabia.

   Agora, já em Cataguases, lembro-me do que me disse certa vez meu também saudoso amigo, o romancista Rosário Fusco: “A gente só se recorda de nossas mancadas, das besteiras que fizemos em nossas vidas, jamais das coisas do dia a dia”. Como naquela manhã, aquele jovem estudante de filosofia vindo da Faculdade para o trabalho no Centro do Rio. Terno, gravata, as mãos atulhadas de livros, ele não viu a cordinha do estacionamento e tibum! – estatelou-se no meio do asfalto, livros voando estacionamento afora. Sinal fechado, toda a gente dos carros e dos ônibus de olho na cena. Morto de vergonha, ele catou os livros e tentou sair impávido, empertigando-se como pode, sem sequer notar a calça rasgada nos joelhos. Era 1968 e aconteceu comigo. Nunca mais esqueci. Agora me perguntem os acontecimentos daquela semana, da outra, das outras, das anteriores, das posteriores, um só acontecido que seja. Neca de pitibiribas.
 Falar do Tião e do Afonsinho, mesmo agora que se foram, é então tentar amenizar a coisa toda, como se não houvesse morte em nossas vidas – mas só o insólito, os fatos pitorescos que vivemos. É relembrar todo um leque de inacreditáveis “acontecimentos acontecidos” conosco vida afora. É o que fica, o que ficou, as mancadas, as pequenas besteiras, loucuras de que nos lembrávamos às gargalhadas – e que eu vou recordar para sempre. Mais ainda que seus shows no Brasil e no exterior, ao lado de grandes cantoras, de grandes nomes do jazz internacional, mais ainda que suas belas performances, seus solos impagáveis. Isso para eles dois, para Afonsinho principalmente, era o arroz com feijão, ou feijão com arroz – que a gente também prima pela rima.
     Acompanhar Vinicius, Baden Powell, Chico Buarque, Elza Soares, Astrud Gilberto, Alcione. Participar com seu grupo instrumental dos maiores festivais de jazz europeus durante os vintes anos em que viveu em Roma. Tocar e gravar com Gato Barbieri, inclusive na trilha do filme "O último tango em Paris"; e com Tony Scott, Archie Shepp, George Adams, Sal Nistico, Enrico Pieranunzi, Don Pullen, com o poeta-pianista Léo Ferré e tantos outros grandes nomes do jazz – tudo isso era o prato do dia a dia, os pratos e bumbos de sua cotidiana bateria.
E o Afonsinho sabia bem lidar com isso, não tivesse ele, e até eu mesmo, seguido à risca o conselho do inacreditável goleiro cataguasense Luiz Prata, o Luiz Careta, que lhe disse um dia, assim como quem filosofa: “O importante na vida de um baterista é distância, altura e atenção”. E nada mais disse, e nem explicou o que era aquilo de distância/altura/atenção – e nunca ficamos sabendo se ele falava de bateria ou das agruras de um goleiro, ou de como levar a própria vida. Seria distância da bateria, altura do banquinho, atenção na entrada da música? Chi lo sa?  Vejo agora uma foto daqueles tempos, nós dois ainda muito magros, caminhando numa tarde pela Praia de Ipanema.  Exatamente quando Afonsinho – com as feições imitando o cômico italiano Totó – vira-se para a fotógrafa (nossa amiga Tânia Horta) e solta um daqueles “distância/altura/atenção”. Na verdade, controvérsias à parte, a enigmática tirada do Luiz Careta serve como lema para tudo em nossas vidas, ou não? 

Continua na próxima semana