26 de dez. de 2016

GULLAR ANTE(S) (D)O ESPANTO - 4

Por você por mim   

           
            “Consumiste o dia numa sala fechada,/ lidando com papéis e números./ Telefonaste e escreveste,/ irritações e simpatias surgiram e desapareceram/ no fluir dessas horas. E caminhas,/ agora, vazio,/ como se nada acontecera.// (...) Tua casa está ali. A janela/ acesa no terceiro andar. As crianças/ ainda não dormiram./ Terá o mundo de ser para eles/ este logro? Não será/ teu dever mudá-lo?// Apertas o botão da cigarra./ Amanhã ainda não será outro dia”.  Neste poema, “Volta para casa”, Ferreira Gullar parece render homenagem a um de seus poetas preferidos, Carlos Drummond de Andrade. Há nele toda uma dicção dummondiana e, ao mesmo tempo, toda uma preocupação com as andanças e esquivanças do mundo.
            Em 1967, a morte de Ernesto Che Guevara me levou a um poema escrito no calor da hora (e que sairia na capa do SLD, o Suplemento Literatura Difusão que eu editava com o poeta Joaquim Branco), como se vê por esses fragmentos: “à morte azul-/ piscina/ frouxa colcha de retalhos/ surge súbita/ a pré-fabricada/ nas oficinas/ da américa latina/ das oficinas da américa/ das oficinas de sombra e medo/ suja morte em selva vida/ lidalívida lediviva/ la muerte sem arcanjos/ sujo de selva/ e sangue/ fora do encantamento/ o corpo-roto/ de selva & sangue/ o mito-morto/em higueras, os andes vulcânicos/ a morte risco na vida/ meridiano da sorte// de selva e sangue/ faz-se o mito-morto/ de selva e sangue/ tão junto da verdade/como o sangue do corpo/o céu avermelha/sol & selva/ el cielo rojo de higueras/ torna rubra a pálida face/ do herói tombado/y el cielo baja/rojo de espanto/ sobre mi caballero”.
Muitos outros poetas também escreveram sobre a morte de Guevara. Poucos com a força das palavras de Gullar, sua emocionante e épica narrativa: “Em Buenos Aires há sol/ nas alamedas arborizadas, um general maquina um golpe./ Uma família festeja bodas de prata num trem que se aproxima/ de Montevidéu. À beira da estrada/ muge um boi da Swift. A Bolsa/ no Rio fecha em alta/ ou baixa./ Inti Peredo, Benigno, Urbano, Eustáquio, Nato/ castigam o avanço/ dos rangers./ Urbano tomba/ Eustáquio,/ Che Guevara sustenta/ o fogo, uma rajada o atinge, atira ainda, solve-se-lhe/ o joelho, no espanto/ os companheiros voltam/ para apanhá-lo. É tarde. Fogem./ A noite veloz se fecha sobre o rosto dos mortos”.
“(...) Não está morto, só ferido./ Num helicóptero ianque/ é levado para Higuera/ onde a morte o espera/ Não morrerá das feridas/ ganhas a céu no combate/ mas de mão assassina/;que o abate./ Não morrerá das feridas/ ganhas a céu aberto/ mas de um golpe escondido/ ao nascer do dia// Assim o levam pra morte/ (sujo de terra e de sangue)/ subjugado no bojo/ de um helicóptero ianque// É o seu último voo/ sobre a América Latina/ sob o fulgor das estrelas/ que nada sabem dos homens// que nada sabem do sonho,/ da esperança, da alegria,/ da luta surda do homem/ pela flor de cada dia”.
“(...) Súbito vimos ao mundo/ e nos chamamos Ernesto/ Súbito vimos ao mundo/ e estamos/ na América Latina/ Mas a vida onde está/ nos perguntamos/Nas tavernas?/ nas eternas/ tardes tardas?/ nas favelas/ onde a história fede a merda?/ no cinema?/ na fêmea caverna de sonhos/ e de urina?/ ou na ingrata/ faina do poema? /(...) A vida muda como a cor dos frutos/ lentamente/ e para sempre/ A vida muda como a flor em fruto/ velozmente/ A vida muda como a água em folhas/ o sonho em luz elétrica/ a rosa desembrulha do carbono/ o pássaro da boca/ mas/ quando for tempo/ E é tempo todo tempo/ mas/ não basta um século para fazer a pétala/ que um só minuto faz/ ou não/ mas/ a vida muda/ a vida muda o morto em multidão”.

Na Gávea, no Vietnam  

     Em 1968 comecei a namorar uma portuguesinha – “bela, recatada & etc” – que morava na Gávea e estudava na escola mais famosa do bairro, o Colégio Estadual André Maurois. Dirigido por Dona Henriette Amado, o André Maurois adotava o lema Liberdade com Responsabilidade como princípio de educação, tendo por base a prática da escola de Summerhill, na Suíça, a primeira democracia infantil do mundo. Dona Henriette acreditava que Summerhill seria um ponto de partida para uma educação que formasse pessoas seguras, onde houvesse uma verdadeira troca de experiências entre alunos e professores. 
    Pois foi ali no André Maurois, numa tarde do segundo semestre de 1968, que vi minha portuguesinha em cena. Mamãe portuguesa era bravíssima e na época só nos era permitido encontros vespertinos. Às vezes conseguíamos pegar um cineminha no Leblon, mas escondidos, mãos tímidas se encontrando no claro/escuro. Anos depois, ela sairia seminua na Revista Ele/Ela e logo seu nome estaria em letras garrafais nas fachadas dos cinemas, já que ficara famosa, imagina!, como atriz de pornochanchadas. Pois é, acontece. Então, para minha surpresa, minha tímida portuguesinha estava ali em cena, no palco do Colégio, e atuava ao lado de vários colegas na montagem de “Por Você Por Mim” (logo depois, aqueles rapazes e moças encenariam a peça também no Teatro Opinião), o belo-terrível poema de Ferreira Gullar sobre a Guerra do Vietnam, que eu acabara de ler/reler. O poema fora publicado naquele mesmo ano, e saíra num livro fino, de corte vertical, muito bem diagramado, com fantásticas fotos solarizadas das batalhas no Sudeste Asiático – livro que anda há tempos sumido entre os muitos de minha biblioteca.  
    Minha portuguesinha me dissera somente que ela e seus colegas iriam fazer a apresentação de um poema, e como eu era (era?) “o seu poeta”, deveria gostar. Ao ver que era o poema de que tanto gostava, e muito bem apresentado por aqueles “meninos e meninas” (eu já me considerava um velho de quase 25 anos frente aos 16, 17 anos dos jovens “atores”) me emocionei de vez, como me emocionara várias vezes nas várias leituras e releituras que já fizera do poema de Gullar. O mesmo poema que reencontro agora, nesta edição do “Toda Poesia”, com várias e antigas marcações feitas por mim. E que acabo de gravar em vídeo que se encontra em meu canal do youtube. 



     Em 1968, com a escalada americana no Sudeste Asiático, o Vietnam nos chegava pelo telstar, escorria sangue pelo videotape e era manchete diária em todo o mundo. Também eu acabara de escrever um poema tendo a guerra como pano de fundo e que sairia em meu primeiro livro, “Selva Selvaggia”. O eu-lírico de meu poema Telstar estava na cama com sua amada enquanto a televisão exibia imagens sangrentas do Vietnam. A seguir, um fragmento de Telstar, que ganharia mais tarde o Prêmio Carlos Drummond de Andrade: “exclamo/ eu te amor/ tecendo/ o B-52/ lenta/ lentamente/ p e n e t r a/ mente/ lenta/ p e n e t r a/ lenta/ lentamente/ brilhuzindo/ no ventre da manhã/ não a clara/ ensolarada/ manhã de todos/ mas a rubra/ ensanguentada/ manhã/ de todos os B-52/ vagina/ entreabrir/ parir/ bull-pups/ púbis/ bulldozers/ parir/ phantoms/ napalm/ thunderchiefs/ lazy-dogs/ parir/ a manhã/ de todos/ os B-52/do vietnam”.
      Já o poema de Gullar, “Por Você Por Mim”, coincidentemente com temática parecida, e que só conheci depois que terminara o meu, abordava as atrocidades da guerra como uma surpresa que explodia em meio à coloquialidade do cotidiano, e daí vinha o impacto de sua força: “É dia feito em Botafogo/ Homens de pasta, paletó, camisa limpa,/dirigem-se para o trabalho./ (...)/ Nenhuma ameaça/ pesa sobre a cidade/ Os barulhos apitos baques rumores/ se decifram sem alarma. O avião no céu/ vai para São Paulo./ O avião no céu não é um Thunderchief da USAF/ que chega trazendo a morte/ como em Hanói./ Não é um Thunderchief da USAF que chega/ seguido de outros/ e outros/ da USAF/ carregados de bombas e foguetes/ como em Hanói/ que chega lançando bombas e foguetes/ como em Hanói/ como em Haiphong/ incendiando o porto/ destruindo as centrais elétricas”.
    “A noite, a noite, que se passa? diz/ que se passa, esta serpente vasta em convulsão, esta/ pantera lilás, de carne/ lilás, a noite, esta usina/ no ventre da floresta, no vale,/ sob lençóis de lama e acetileno, a aurora/ o relógio da aurora, batendo, batendo/ quebrado entre cabelos, entre músculos mortos, na podridão/ batendo/ Ah, como é difícil amanhecer em Thua Thien./ Mas amanhece. // (...)// As águas explodem como granadas, os arrozais/ se queimam em fósforo e sangue/ entre fuzis/ as crianças/ fogem dos jardins onde açucenas pulsam/ como bombas-relógios, os jasmineiros/ soltam gases, a máquina/ da primavera/ danificada/ não consegue sorrir.” 
     “(...) O Vietnam agora é uma vasta oficina da morte, nos campos/ da morte, o motor/ da vida gira ao contrário, não/ para sustentar a cor da íris,/ a tessitura da carne, gira/ ao contrário, a desfazer a vida, o maravilhoso aparelho/ do corpo, gira/ ao contrário das constelações, a vida/ ao contrário, dentro/ de blusas, de calças, dentro/ de rudes sapatos feitos de pano e palha, gira/ ao contrário a vida feita de morte”.  
      “(...) Surdo/ sistema de álcool, gira/ gira, apaga rostos, mãos,/ esta mão jovem/ que sabia ajudar o arroz, tecer a palha. Há mortos/ demais, há mortes/ demais, coisas da infância, a hortelã, os sustos/ do amor, aquela tarde aquela tarde clara, amada/ aquela tarde clara tudo/ tudo se dissolve nas águas marrons/ e entre nenúfares e limos/ a correnteza arrasta para o mar o mar o mar azul”.  
      “(...) Próximo à base de Da Nang/ que tudo escuta e tudo vê,/ próximo à base de Da Nang, esgueira-se/ entre árvores um homem,/ próximo à base cheia de soldados,/ metralhadoras, bombas,/ aviões, cheia/ de ouvidos e de olhos/ eletrônicos, um homem, chamado Tram/ entre as folhas e os troncos que cheiram a noite,/ cauteloso se move/ entre as folhas da noite, Tram Van Dam,/ cautelo se move/ entre as flores da morte/ Tram Van Dam/ quinze anos se move/ entre as águas da noite/ dentro da lama/ onde bate a aurora/ Tram Van Dam/ onde bate a aurora/ Tram Van Dam/ com sua granada/ entre cercas de arame/ entre as minas no chão/ Tram Van Dam/ com o seu coração/ Tram Van Dam/ onde bate a aurora/ por você por mim/ sob o fogo inimigo/ com o grampo no dente/ com o braço no ar/ por você por mim/ Tram Van Dam/ onde bate a aurora/ por você por mim/ no Vietnam”. 
      Pois não é que até hoje, até mesmo agora, ao digitar esses trechos do poema, ao sentir o ritmo incessantemente marcante dessa sequência de “Tram Van Dans”, me comovo quase às lágrimas? 
Continua na próxima semana





23 de dez. de 2016

GULLAR ANTE(S) (D)O ESPANTO - 3

O prazer do poema




Em seu poema “Uma voz”, diz Ferreira Gullar: “Sua voz quando ela canta/ me lembra um pássaro mas/ não um pássaro cantando/ lembra um pássaro voando”. O belo é uma alegria eterna – digo eu, numa tradução apressada do verso famoso de John Keats (1795-1821): a thing of beauty is a joy forever. Em “O prazer do poema”, antologia lançada em 2014, Gullar desfila todo um rol de poetas e poemas, daqui e dacolá, que o fascinaram ao longo da vida. Na introdução, ele escreve: “o propósito declarado é oferecer o poema como puro prazer de leitura e deslumbramento”. E cita o verso de Keats numa tradução literal, prosaica, um pouco mais apressada que a minha, sem preservar o ritmo e a métrica do poeta inglês: “uma coisa bela é uma alegria para sempre”. E afirma ainda: “todo poema só cumpre sua função quando a sua leitura resulta em prazer estético”.
 Prazer estético é sem dúvida o que me proporciona o seu poema “Uma voz”. Um poema “mais-que-perfeito”, com a surpresa, o inesperado dessa voz que lembra a beleza de um pássaro voando. Ritmado em redondilha maior, o poema pertence ao livro “Dentro da Noite Veloz” (1962/1975) e é dedicado à grande cantora lírica Maria Lúcia Godoy. Tendo entre seus “fãs de carteirinha” ninguém menos que o então presidente Juscelino Kubitschek, a soprano mineira Maria Lúcia ostenta – entre suas muitas glórias – a proeza de ser “a voz que deu voz” da melhor forma à Bachiana nº 5 de Villa-Lobos. Convidada especial de Juscelino, era dela a “voz maviosa” que se ouviu no Planalto Central em 1960, quando da inauguração de Brasília.
“La Godoy” – como sempre a chamei, brincando/reverenciando –, minha amiga Maria Lúcia, que não vejo há tempos, sempre se recorda com grande orgulho do belo poema que Gullar lhe dedicou. Ela ia dizer – para minha grande honra – alguns dos poemas de meu livro mais recente, “o mar de outrora & poemas de agora”, quando do lançamento em Belo Horizonte, em 2014, mas não pôde ir devido a uma forte gripe. De lá pra cá não mais nos vimos, mas soube que “La Godoy” recebeu em setembro último, do alto de seus 92 anos, o título de Doutor Honoris Causa da UFMG. Mais que merecido.
Mas o papo é sobre Gullar. Então, vamos lá. Com rima & tudo. Numa tarde de 1980 fui até a Biblioteca do Banco do Brasil (hoje no CCBB/Rio), então localizada no mesmo prédio da Av. Presidente Vargas onde eu era um dos redatores da Revista Cacex. Passava sempre por lá, para alguma pesquisa e também para papear com meu amigo, o poeta e hoje grande e irreverente sonetista Glauco Mattoso – então editor do ousado e abusado “Jornal Dobrasil” –, que lá trabalhava e ainda não fora totalmente tomado pelo glaucoma (daí seu pseudônimo) que o cegaria poucos anos depois. Glauco perguntou se eu ia ao lançamento do livro do Gullar, numa livraria das proximidades. Não sabia, mas logo combinamos de ir juntos.
“O anjo é grave/ agora./ Começo a esperar a morte”.// (...) “Onde jorrara a fonte, jorrara/ a fome. Onde jorrara/ a morte, jorrara/ a fonte. Aqui/ jorrara a fonte”.// O livro que estava sendo lançado era a reunião de poemas de Gullar, “Toda Poesia”, um abrangente balanço de sua obra poética até então, que abria com um prefácio altamente elogioso de Sérgio Buarque de Hollanda: “De Ferreira Gullar pôde escrever Vinicius de Moraes que é o último grande poeta brasileiro. Parece-me a mim, além disso, que, exceção de algumas peças de Mário de Andrade e também de Carlos Drummond de Andrade (mormente em Rosa do povo), é o nosso único poeta maior dos tempos de hoje”. (...) “Para a singularidade e a importância de sua contribuição, só encontro comparável, no Brasil, a prosa de Guimarães Rosa”.
Tenho aqui em minha mesa o “Toda Poesia”, devidamente autografado por Gullar, com grande parte de seus poemas marcados, os mesmos que anteriormente já grifara em suas primeiras publicações, que possuo ainda hoje – de A Luta Corporal (1954) ao Na Vertigem do Dia (1975-1980). Hábito antigo esse meu, de destacar as pedras-de-toque dos poemas/textos de que gosto, ou que julgo importantes, e que conservo ainda agora. Aquelas palavras-chave – highlights, punti luminosi – que saltam de sua poética: tempo, tarde, bananas (podres, quase sempre): “Naquele canto/ em sombra/ da quitanda/ a tarde – o tempo/ o sol da tarde/ nas bananas virava mel/ (aliás/ mais água/ do que mel)/ na boca/ de Newton Ferreira/ a mesma/ tarde (de fachadas/ e espelhos)/ falava português/ e ria/ (na saliva)/ ou talvez/ não/ mas sem dúvida alguma/ se esvaía”.
A tarde, o mar, a morte
A tarde, aquela tarde que se fixa numa “fotografia aérea”, de certa forma antecipadora da atmosfera coloquial do Poema Sujo: “Eu devo ter ouvido aquela tarde/ um avião passar sobre a cidade/ aberta como a palma da mão/ entre palmeiras/ e mangues/ vazando no mar o sangue de seus rios/ as horas/ do dia tropical/ aquela tarde vazando seus esgotos seus mortos/ no jardim/ eu devo ter ouvido/ aquela tarde/ em meu quarto/ na sala/ no terraço/ ao lado do quintal?/ o avião passar sobre a cidade/ geograficamente/ desdobrada”.// “(...) o ronco do motor enquanto lia/ e ouvia/ a conversa da família na varanda/ dentro daquela tarde/ que era clara/ e para sempre perdida// “(...) meu rosto agora/ sobrevoa/ sem barulho/ essa fotografia aérea./ Aqui está/ num papel/ a cidade que houve/ (e não me ouve)/ com suas águas e seus mangues/ aqui está/ (no papel)/ uma tarde que houve/ com suas ruas e casas/ uma tarde/ com seus espelhos/ e vozes (voadas/ na poeira)/ uma tarde que houve numa cidade/ aqui está/ no papel que (se quisermos) podemos rasgar”.
Ou o mar, o mar ainda. O mar de sempre, recorrente em Gullar. Mar sem rima: “Vê o céu. Mais/ que azul, ele é o nosso/ sucessivo morrer. Ácido/ céu”.// “(...) Despreza o mar acessível/ que nas praias se entrega, e/ o das galeras de susto; despreza o mar/ que amas, e só assim, terás/ o exato inviolável/ mar autêntico!// (...) Eu ouço o mar; sopro, caminho na folhagem./ Mirar-nos límpidos no susto das águas escondidas!,/ a alegria debaixo das palavras”// (...) o mar buzina/ voz de ostra garganta dos séculos fósseis/ corneta perdida/ o que nos diz essa voz de cal?// (...) Beleza oh pura pura/ o que te ofereço? O auriverde pendão da minha terra?”.
A tarde e o mar (l´éternité de Rimbaud, quem sabe?) se reencontram nesse pungente poema que bate “no clarão da lembrança” (não por acaso tem a “Memória” como título) e que passo a vocês, intacto:  “menino no capinzal/ caminha/ nesta tarde e em outra / havida// Entre aurora e mata-pastos/ vai, pisa/ nas ervas mortas ontem/ e vivas hoje/ e revividas no clarão da lembrança// E há qualquer coisa azul que o ilumina/ e que não vem do céu, e se não vem do chão, vem/ decerto do mar batendo noutra tarde/ e no meu corpo agora/ – um mar defunto que se acende na carne/ como noutras vezes se acende o sabor/ de um fruta/ ou a suja luz dos perfumes da vida/ ah vida!”.
Num dos poemas de “Dentro da noite veloz”, publicado em 1975, Gullar como que previa o decorrer de sua morte: “Se morro/ o universo se apaga como se apagam/ as coisas deste quarto/ se apago a lâmpada:/ os sapatos-da-ásia, as camisas/ e guerras na cadeira, o paletó-/ dos-andes,/ bilhões de quatrilhões de seres/ e de sóis/ morrem comigo.// Ou não:/ o sol voltará a marcar/ este mesmo ponto do assoalho/ onde esteve meu pé;/ deste quarto/ ouvirás o barulho dos ônibus na rua;/ uma nova cidade/ surgirá de dentro desta/ como a árvore da árvore. // Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens/ a mesma história que eu leio, comovido”.
 Ao que parece, este poema foi feito depois, ou logo depois, do Poema Sujo, e traz embutido um conceito (“árvore dentro da árvore”) que Gullar foi buscar numa leitura que fez, ainda no Chile, de um livro de Lenin. Isso antes do surgimento do Poema Sujo, que aconteceu em Buenos Aires. Ao comentar sobre a feitura de seu longo poema, na gravação que fez em 2015 no Instituto Moreira Salles, Gullar lembrou-se do livro de Lenin e de quando este citava Hegel, quando o filósofo alemão abordava a relação entre particular e universal, dizendo que “a árvore está no ramo da árvore”.
     E Gullar só foi entender o significado disso mais tarde, já na Argentina. E acabou, em setembro de 1975, partindo do conceito para elaborar o fecho (que estava “travado” há quase um mês) do Poema Sujo, que foi escrito entre os meses de maio e outubro daquele ano: “O homem está na cidade/ como uma coisa está em outra/ (...)/ mas variados são os modos/ como uma coisa/ está em outra coisa/ o homem, por exemplo, não está na cidade/ como uma árvore está/ em qualquer outra/ nem como uma árvore/ está em qualquer uma de suas folhas”. Interessante ainda nos lembrarmos que, vinte anos antes de saber da “árvore hegeliana”, Gullar já registrava a palavra árvore solta de seu significado árvore, a palavra em plena autonomia, “árvore-árvore”, como no famoso poema concreto dos anos 1950:
árvore

árvore
árvore
árvore


Contexto histórico
            Poemas de participação social, de um pensar sobre o mundo, de um situar-se no “contexto histórico”, como se dizia na época, permeiam “Toda Poesia”, toda a vida: “Não se trata do poema e sim do homem/ e sua vida//(...) // Não se trata do poema e sim da fome/ de vida,/ o sôfrego pulsar entre constelações/ e embrulhos, entre engulhos./ Alguns viajam/ vão/ a Nova York, a Santiago/ do Chile. Outros ficam/ mesmo na Rua da Alfândega, detrás/ de balcões e guichês./ Todos te buscam, facho/de vida, escuro e claro”.// “(...) Vista do alto,/ com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade/ é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém./ Mas vista/ de perto/ revela o seu túrbido presente, sua/ carnadura de pânico; as/ pessoas que vão e veem// (...) // São pessoas que passam sem falar/ e estão cheias de vozes/ e ruínas. És Antônio?/ És Francisco? És Mariana?/ Onde escondeste o verde/ clarão dos dias/ Onde/ escondeste a vida/ que em teu olhar se apaga mal se acende?// (...) Mas, dentro, no coração, eu sei,/ a vida bate./ Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,/ sob as penas da lei,/ em teu pulso,/ a vida bate./ E é essa clandestina esperança/ misturada ao sal do mar/ que me sustenta/ esta tarde/ debruçada à janela de meu quarto em Ipanema/ na América Latina.
Ou ainda, nesse outro poema-constatação: “Onde está/ a poesia? Indaga-se/ por toda a parte. E a poesia/ vai à esquina comprar jornal.// Cientistas esquartejam Púchkin e Baudelaire./ Exegetas desmontam a máquina da linguagem./ A poesia ri.// (...) Poesia – dever a vida com palavras?/ Não – libertá-las,/ fazê-la voz e fogo em nossa voz. Po-/ esia – falar/ o dia/ acendê-lo do pó/ abri-lo/ como carne em cada sílaba, de-/ flagrá-lo/ como bala em cada não/ como arma em cada mão// E súbito da calçada sobe/ e explode/ junto ao meu rosto do pás-/ saro? O pás-/ Como chamá-lo? Pombo? Prombo? Como?/ Ele/ bicava o chão há pouco/ era um pombo mas/ súbito explode/ em ajas brulhos zules bulha zalas/ e foge!/ como chamá-lo? Pombo? Não:/ poesia/ paixão/ revolução”.
“O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,/ relógio de lilases, concretismo/ neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,/ que a vida/ eu a compro à vista aos donos do mundo./ Ao peso dos impostos, o verso sufoca,/ a poesia agora responde a inquérito policial militar.//Digo adeus à ilusão/ mas não ao mundo. Mas não à vida,/ meu reduto e meu reino./ Do salário injusto,/ da punição injusta, /da humilhação, da tortura, /do terror,/ retiramos algo e com ele construímos um artefato/ um poema/ uma bandeira”.


Continua na próxima semana

19 de dez. de 2016

Feliz, Tumati é quem toca

      
Na próxima quarta-feira, 21 de dezembro de 2016, a partir de 19:30h, o Projeto Feliz é quem Toca coroa suas atividades deste ano com uma grande festa no PINA - Ponto de Integração das Artes, o antigo CTM, localizado no bairro Guanabara. Haverá apresentação de ritmos com os alunos de Capoeira, espetáculo de improviso com os alunos de Teatro e show da Banda Feliz é quem Toca, com os alunos de Percussão. Após as apresentações dos alunos haverá a exibição de dois filmes curta-metragem (com uma duração total de 25 minutos), ganhadores do Edital Regional do Projeto Usina Criativa de Cinema Polo Audiovisual da Zona da Mata: “Olhos de Vô”, ficção, de Marco Andrade; e “O Universo de Manoel”, animação, do Coletivo PIA, ambos de Cataguases.
Tudo começou na Cataguases de 1997, com a Banda Feliz é Quem Toca, que ensaiava no Anfiteatro Ivan Müller Botelho sob a batuta de Rogério Tumati. Na virada do século, com a criação do projeto Café com Pão Arte ConFusão, um dos braços do CTM,  a Banda – formada por crianças e jovens – passou a fazer parte do “Núcleo de Percussão”, que tinha como responsável Rogério Tumati.
Quando o CTM encerrou suas atividades em Cataguases, no final de 2012, o professor Tumati viu-se diante de um dilema: o que fazer com aquele mundo de meninos e com o mundo daqueles meninos que assistiam e participavam com grande interesse das aulas que administrava? Por CTM, leia-se Centro das Tradições Mineiras; por Tumati, leia-se o professor de percussão, músico de sete instrumentos, cantor, técnico de som e pau pra toda obra no campo das artes (e também fora dele) Rogério Mendonça.
O que fazer então com a esperança daqueles meninos – a maioria do Bairro Guanabara, na periferia da cidade –, o que fazer para que não se perdesse o brilho que ele via em cada um de seus olhares quando chegavam a cada dia para as aulas? Tumati não titubeou nem por um momento: dispôs-se logo a levar parte deles para que continuassem frequentando as aulas, agora no quintal de sua própria casa, num bairro das proximidades, onde criou o projeto “Casa do Tumati”. O quintal passou a ser um mundo de possibilidades percussivas.
Mas logo o quintal mostrou-se bem menor que o mundo, o mundo de meninos que procuravam suas aulas. Foi preciso encontrar outro lugar, que logo surgiu quando de uma oferta da Igreja Metodista, para onde ele se transferiu com seus pequenos percussionistas. Ali, os meninos passaram também a receber aulas de teatro, sob a orientação da professora Miriam Gaspar. E o Projeto como um todo assumiu o nome inicial da banda, passando a chamar-se Feliz é Quem Toca.
Em 2014, o Feliz é Quem Toca foi contemplado com o incentivo da Lei Municipal de Cultura Ascânio Lopes, o que possibilitou três apresentações do grupo, com estrutura de palco, luz e acompanhamento de banda. Ainda naquele ano as aulas de percussão do Projeto transferiram-se para o PINA-Ponto de Integração das Artes, voltando ao Bairro Guanabara, no mesmo prédio do antigo CTM, com a cessão do local pela Agência de Desenvolvimento do Audiovisual da Zona da Mata Mineira, atual gestora do espaço.

Agora, com o seu fortalecimento, diante de sua aprovação pela Lei Estadual de Incentivo à Cultura – com o patrocínio das empresas Bauminas Química, Bauminas Mineração e Hidroazul –, o Projeto retoma suas atividades em Cataguases com força total. E, desde setembro, passou a oferecer aulas gratuitas de Percussão, gratuitas de Percussão, Teatro e Capoeira. Aulas que acontecem no PINA e na Casa de Cultura Simão, na Av. Astolfo Dutra.
Dispensável dizer que o Tumati está totalmente “tocado” pelo sucesso do Projeto e que o vai tocando feliz e com toda a força de suas baquetas. Os meninos? O que dizer dos meninos? É só ver o som de seus tambores enchendo de alegria e pertencimento o Bairro Guanabara. Um som da pesada que, sem controvérsias, e por mais paradoxal que seja, traz enorme descanso ao coração de seus pais.

O Projeto Feliz é quem Toca já tem em preparo várias novidades para 2017. Suas atividades podem ser acompanhadas pelo site (www.felizequemtoca.com.br) e pelo facebook (www.facebook.com/felizequemtoca).


14 de dez. de 2016

GULLAR ANTE(S) (D)O ESPANTO - 2

A morena foi embora 



Morto recentemente aos 86 anos, o poeta Ferreira Gullar (São Luís do Maranhão, 10.09.1930; Rio de Janeiro, 04.12.2016) gostava de dizer que muitas pessoas se enganavam ao vê-lo na janela. Nem sempre ele estava olhando a rua, a paisagem – mas sim trabalhando em algum poema. Gostava também de mencionar o episódio de um economista que conheceu durante o seu exílio no Chile dos anos 1970. O sujeito namorava linda morena, que sempre trazia a tiracolo, e seu assunto era só economia, economia, economia. “Um porre”, dizia o poeta. Até que um dia a morena deixou o gajo e ele apareceu meio transtornado e só falava poesia, poesia, poesia. Para o “espanto” de Gullar, ele sabia de cor poemas de Eliot, de Shakespeare, de Whitman e outros, e outros.
Foi quando Gullar se deu conta (antes dele ter descoberto a palavra “espanto” como espécie de motor de seus poemas) de que “a poesia vem quando a morena vai embora”. O samba de Ataulfo Alves parece ter acertado na mosca para autenticar o “surgimento” da poesia pelo poeta: Pois é/ falaram tanto/ que dessa vez/ a morena foi embora./ Disseram que ela era a maioral/ e eu é que não soube aproveitar./ Endeusaram a morena tanto tanto/ que ela resolveu me abandonar. Não sei dizer quantas morenas foram embora da vida do poeta, se é que foram. O que sei é que a poesia às vezes demorava, mas quando vinha era quase sempre de alta qualidade.
Encontrei-me com Gullar poucas vezes nessa vida, quase sempre em seu apartamento de Copacabana, na Rua Duvivier. Lembro-me de uma delas, meados dos anos 1990, quando lá estive ao lado dos poetas Francisco Marcelo Cabral e Suzana Vargas. Gullar iria se apresentar dias depois no CCBB; melhor, apresentar-se com seus poemas-objeto num evento realizado por Suzana. Levamos uma câmera, a do próprio Francisco/Chico Cabral, e um cameraman improvisado, no caso eu mesmo. O poeta dispôs seus poemas na grande mesa da sala e começou a discorrer sobre eles, enquanto eu os enquadrava com a câmera quase em close, passeando em lento travelling sobre sua obra. A coisa ia caminhando bem, até que foquei um poema estranhíssimo, escuro, mais que escuro, preto; mais que preto, pretíssimo e em movimento, com num súbito fade-out.


“Essa é boa – cheguei a pensar – um poema em movimento, um Malevich às avessas: não white on white, mas black on black. Um espanto: sem dúvida a poesia vem do espanto, como diz Gullar”. Antes que me espantasse de vez resolvo tirar o olho do visor e me deparo com o gato de estimação de Gullar passeando preguiçoso, manemolente, sobre os poemas. Brinco com Gullar: “ele é seu melhor poema, pelo menos quem parece compreendê-los melhor”.
O poeta mineiro Francisco Marcelo Cabral, meu saudoso amigo Chiquinho Cabral, me contou certa vez que costumava frequentar nos anos 1950 o apartamento que o maranhense Ferreira Gullar dividia no Rio, na rua do Catete, com o jornalista paraense Oliveira Bastos e com o cronista capixaba Carlinhos de Oliveira.  Amigo de Oliveira Bastos – que foi secretário particular de Oswald de Andrade, além de ter participado do famoso Suplemento Dominical do JB e também ser quem “aplicou” a poesia de Sousândrade nos irmãos Augusto e Haroldo de Campos –, Chico Cabral assistia e quase sempre também participava das longas discussões de “alta cultura” do jornalista com o poeta. Discussões só interrompidas para dar passagem ao barulho infernal de algum bonde que zunia em seus trilhos ali embaixo da janela – e que eram retomadas logo depois, no mesmo e altíssimo tom. A um canto, Carlinhos Oliveira, recém-chegado ao Rio, batia com as mãos na cabeça clamando aos céus: “Gente, como sou burro! Não estou entendendo nada!”.
Quando se mudou do apartamento, Gullar escreveu o “Poema de adeus ao falado 56”, dedicado a Oliveira Bastos e J.C. Oliveira, com passagens como: “Sexta-feira parto/ até outra vez/ Fica de nós, o quarto/ Fica de mim, vocês// (...)// Homens de dia dúplice/ temos um sol verbal/ além desse sol cúmplice/ da guarda-pessoal// Sol que se acende, moço,/ da boca de quem lê/ fogo-fátuo do osso/ do velho Mallarmé// (...)// Meu anjo da guarda não/ levo; livro-me enfim/ desse que como um cão/ me protege de mim.// Deixo-o para a casa/ varrer e defender,/ e sumir sob a asa/ o que quer se perder:// o telegrama, o prato,/ o pente, a citação/ erudita e o vão/ vocábulo exato”.
Avenida Copacabana, 2001. Um meio-dia de sol. Um poeta vem do Leme. O outro pro Leme vai. Um não viu o outro, nem o outro o um. Tamanho o calor e o caminhar, que só depois me dou conta da figura de Gullar. Vem do espanto a poesia: Saberá que, no centro/ de seu corpo, um grito/ se elabora?/.../ Grito, fruto obscuro/ e extremo dessa árvore: galo/ Mas que, fora dele/ é mero complemento de auroras.


O Poeta na Praça
para Ferreira Gullar



findo o seu cantar
                                                                      manhã já no meio
                                            o galo-gullar
                                                        não cisca
                      antes
                                 levanta a crista
                                                            e logo ei-lo
                                                                        esguio
                                                         elegante
                          pela praça do lido
                                                     ereto e no prumo
rumo-leme
                        passa apressado o poeta
                                                                       – ZÁZ!
                                               esbaforido
                                                                       o poema bufa atrás
                        – a poesia freme



Ronaldo Werneck
Rio, 2001




Continua na próxima semana

8 de dez. de 2016

GULLAR ANTE(S) (D)O ESPANTO - 1 Vida não dá meia-sola



      Copacabana, um dia qualquer dos anos 1960: saio pro trabalho e tomo um ônibus E. de Ferro-Leblon (quando criança, de férias no Rio, em vez de “Estrada de Ferro” eu lia “É de Ferro-Leblon” e nada entendia). Dois bancos à minha frente, na diagonal, vejo Ferreira Gullar também indo pro trabalho (na época ele era copidesque da Sucursal do Estadão). O poeta fumava e lia atentamente o Jornal do Brasil quando, de repente, o amassa com raiva e fica olhando para o nada pela janela. Penso até hoje no que teria lido o poeta, qual notícia o teria irritado tanto.
      O mesmo acontecia comigo quando lia (não leio mais, e agora nunca mais) suas crônicas plenas de diatribes na Folha de S.Paulo, que tanto me irritavam. Na época em que ele começou, lembro-me do Alcione Araújo me contar que Gullar lhe perguntara o que ele achava de ele aceitar o convite para escrever as tais crônicas (engraçado como muita gente ia pedir conselhos ao meu saudoso amigo Alcione sobre os mais variados assuntos). Alcione me disse que o desaconselhou. O poeta, naturalmente, não deu ouvidos ao dramaturgo. E meteu os pés pelas mãos, ou coisa que o valha.
    Irritadíssimo ficaria também eu, quase trinta anos depois do episódio do “E. de Ferro/Leblon”, ao ler um texto de Gullar sobre arte moderna no Caderno Ideias do Jornal do Brasil. Mas não rasguei o jornal. Peguei o texto e escrevi outro a partir dele, rebatendo (meio que raivosamente, no calor da hora) as ideias do poeta. Mandei pro Mário Pontes, então editor do Caderno do JB. Mário me ligou, dizendo ser melhor não publicar: embora achando que em parte eu tinha razão, não queria criar polêmica com o poeta. Melhor assim, acabei achando também. E acho ainda hoje ao reler o que escrevi, embora continue a não gostar nada do que o Gullar disse naquele texto. 
    Mas, voltando ao início dos anos 1960, irritado também eu ficara ao ler o seu João Boa Morte, aquela regressão em redondilhas publicada pelos “Cadernos do Povo/ Violão de Rua”, com poemas que buscavam “vender” poesia barata aos operários e homens do campo (literalmente barata: impressos no modelo canoa, grampeados a exemplo da poesia de cordel, os livrinhos eram vendidos a preço de banana, mas nem assim atingiram o alvo). Um saltatrás de Gullar face aos avanços vanguardistas de seu livro A Luta Corporal, que tanto me impressionara.
     Pois é, a gente só se enfurece, a gente só se irrita mesmo, com coisas vindas de quem gostamos. As outras “passam corrido” e nem ligamos ou lhes damos importância. Tempos depois, em “Dentro da Noite Veloz”, e já próximo de seu “Poema Sujo” e da dicção que faria dele um de nossos grandes poetas, Gullar parecia se “redimir” de sua “escorregadela da Boa Morte”, retomando o apuro formal sem deixar de lado o conteúdo “participante”, como se dizia na época: “Poeta fui de rápido destino./ Mas a poesia é rara e não comove/ nem move o pau-de-arara”.
     Corta para hoje, melhor para domingo passado, dia 4 de dezembro. Como sempre acontece nos domingos em que estou em Cataguases, fui almoçar num restaurante de Leopoldina. Não só por gostar de dirigir (cerca de 20 km), como porque ele fica aberto o dia inteiro (o que não acontece com os daqui). Almoço tarde, hábito antigo, e quando dou por mim aqui está tudo fechado aos domingos.
     Levei comigo a Folha de S.Paulo, e foi assim: passei os olhos pelas manchetes do jornal, li o Cony, o Jânio de Freitas e pulei pra Ilustrada. Por acaso, dei de cara com a coluna do Ferreira Gullar, que evito ler faz longo tempo pra não me irritar ainda mais com a “estranha” guinada política do poeta. Mas o título “Solidariedade” me chamou a atenção e acabei lendo. Gullar começa se perguntando “por que pessoas indiscutivelmente inteligentes insistem em manter atitudes políticas indefensáveis, já que, na realidade, não existem mais”.
    Logo ele avança situando essas pessoas como as que “militaram em partidos de esquerda, fosse no Partido Comunista (ao qual ele mesmo aderiu em 1964), fosse em organizações surgidas por inspiração da Revolução Cubana”. Até aí, o mesmo Gullar dos últimos tempos. 
     E já começava a me irritar novamente com suas idiossincrasias quando sou tomado pelo “espanto” (palavra tão cara à definição de poesia usada pelo poeta) ao ler os demais parágrafos. “Não tenho dúvida alguma em afirmar que Karl Marx foi uma personalidade excepcional, tanto por sua inteligência como por sua generosidade, pois dedicou a sua vida à luta por um mundo menos injusto. Graças a homens como ele, as relações de capital e trabalho – que, na época, eram simplesmente selvagens – mudaram, alcançando as conquistas que as caracterizam hoje. Marx contribuiu para mudar a sociedade humana, muito embora o seu sonho da sociedade proletária se tenha frustrado”. Mas logo Gullar descamba para sua velha cantilena de maldizer “o sonho marxista e os dogmas ditos revolucionários".
     E, num paradoxo, reafirma obviedades sobre o capitalismo: “Tampouco pode-se negar que o regime capitalista se move essencialmente pela exploração do trabalho e pela acumulação do lucro. A ambição desvairada pelo lucro é o mal do capitalismo que deve ser extirpado. E, creio eu, isso talvez possa ser feito sem violência, uma vez que, de fato, ninguém necessita de acumular fortunas fantásticas para ser feliz”. A crônica é finalizada com um exemplo mais que exemplar: “Sabem por que Bill Gates deixou a presidência de sua empresa capitalista para dirigir a entidade beneficente que criou? Porque isso o faz mais feliz, dá sentido à sua vida”.   
      Fechei o jornal, dessa vez sem o amassar nem jogar fora. Entrei no carro e vim pela estrada afora, meio que “reconciliado” com o poeta: “Vida tenho uma só/ que se gasta com a sola de meu sapato/ a cada passo pelas ruas/ e não dá meia-sola// Perdi-a já/ em parte/ num pôquer solitário,/ mas a ganhei de novo/ para um jogo comum// E neste jogo a jogo/ inteira, a cada lance/ que a vida ou se perde ou se ganha com os demais/ e assim se vive/ que o mais é pura perda”.   
      Eu não levara o celular para o almoço, não sabia das notícias desde a noite anterior. Chego em casa, ligo a tv ao acaso, e sou surpreendido com a morte do poeta. Mais surpreso ainda ao saber que essa sua crônica, a última, fora escrita no hospital onde estava internado há quase vinte dias em Copacabana (não tinha conhecimento disso: eu acabara de chegar do exterior e estava sem notícias do Brasil). Segundo Zuenir Ventura, que o acompanhou internado, suas últimas palavras foram à filha Luciana, pedindo para não prolongarem sua vida com aparelhos: “Me leva para Ipanema. Quero entrar no mar e ir embora”.
       Coisa de poeta? É, coisa de poeta. Eu mesmo já tive um “desvario marítimo” desses, quando um médico maluco daqui me disse que meu glaucoma (“de estimação”) tinha evoluído tanto que não adiantava mais me receitar colírio algum: eu iria ficar cego em seis meses, um ano no máximo. Voltei pra casa aturdido, é “claro/escuro”, e não dormi a noite toda. Lá pelas tantas pensei que o melhor seria ir pro Rio e ver o mar pela última vez. Foi quando parei de pensar besteira dei uma risada: “Deixa de babaquice, Ronaldo! Procure outro médico amanhã”. Dito e (bem) feito. Hoje, após uma cirurgia, com direito a catarata e tudo o mais, estou enxergando maravilhosamente em technicolor e cinemascope – e até mesmo o mar visto de Cataguases. O mar, o mar azul, o mar-espanto, que iria me proporcionar um longo, imenso poema, e que deu a Gullar esse concreto insight:

mar azul
mar azul marco azul 
mar azul marco azul barco azul
mar azul marco azul barco azul arco azul
mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul

    Em 1992, Gullar participou de um Ciclo sobre Fernando Pessoa no CCBB/Rio. Depois de sua palestra, fiz longa entrevista com ele, gravada em VHS. Infelizmente, a fita não resistiu ao tempo e a maior parte se perdeu. O que dela restou (as imagens não estão lá essas coisas, mas o áudio é bem razoável) foi usado como material para o vídeo que acabo de editar e que se encontra na abertura desta crônica. O enquadramento também não está perfeito, com a câmera focada em mim, enquanto Gullar ficou meio de lado, olhando pra mim enquanto falava, quase de perfil. Mas vale como registro. Ah, sim: o sujeito travestido de Fernando Pessoa fazia parte da encenação sobre o poeta português.
    Uma curiosidade: na entrevista, Gullar chama Oswald de Andrade de “poeta menor”, embora não deixe de elogiá-lo e de lembrar quando Oswald esteve pessoalmente em sua casa no dia de seu aniversário, dizendo ter lido e gostado de A Luta Corporal. O mesmo episódio que lembraria 25 anos depois, numa de suas crônicas no primeiro semestre deste ano. Aquela “crônica-spaghettilândia” que resultou num spaghetti western dos diabos com o poeta Augusto de Campos. Em 1954, quando da morte de Oswald de Andrade, Gullar escreveria a elegia que se segue pro poeta paulista.   
  “Enterraram ontem em São Paulo/ um anjo antropófago/ de asas de folha de bananeira/ (mais um nome que se mistura à nossa vegetação tropical)// As escolas e as usinas paulistas/ não se detiveram/ para olhar o corpo do poeta que anunciara a civilização do ócio/ Quanto mais pressa mais vagar// O lenço em que pela última vez/ assoou o nariz/ era uma bandeira nacional” Nota de Gullar, em pé-de-página do poema: “Fez sol o dia inteiro em Ipanema/ Oswald de Andrade ajudou o crepúsculo/ hoje domingo 24 de outubro de 1954”.
     Repito suas últimas palavras: “Me leva pra Ipanema. Quero entrar no mar e ir embora”. Mar e Ipanema. Nada mais justo que inserir em meu vídeo a canção que Gullar letrou para Caetano Veloso no primeiro álbum tropicalista do baiano: “Onde andarás nesta tarde vazia/ Tão clara e sem fim/ Enquanto o mar bate azul em Ipanema/ Em que bar, em que cinema, te esqueces de mim”.