6 de dez. de 2018

Fora da poesia não há salvação


 


Concretismo, Poema Processo, Práxis: há quase meio século, no final de 1969 – dentro da série “O Escritor Mineiro Quando Jovem” – fui entrevistado pelo Suplemento Literário Minas Gerais. Foi quando um petulante e “jovem Ronaldo”, do alto de seus 25 anos, mandava ver em considerações – “delicadas, ma non tropo” – sobre o que então se chamava de “poesia de vanguarda”. Em maio deste ano, o escritor e crítico literário Guido Bilharinho organizou em Uberaba a obra intitulada Movimentos Poéticos em Minas Gerais, onde publica trechos de minha entrevista, que reproduzo a seguir. Hoje, como naquele tempo – pelo menos para os poetas –, fora da poesia não há salvação. É como eu dizia lá pelas tantas, num aforismo que – nesses dias estranhos em que vivemos – vale para nós todos, poetas ou não. Troque-se poesia por democracia e é isso aí: abaixo a autocracia.

 

                   

                            23-10-68

                                          
hoje tenho 25 anos
e queria escrever ócio
mas minhas palavras são de aço

hoje tenho 25 anos
e a poesia é difícil
mas o poema é meu ofício

hoje tenho 25 anos
e a poesia me chama
faço o poema como quem ama




Tópicos da entrevista ao SLMG nº171, de 06.12.1969


Situação da poesia brasileira hoje. Quais os rumos?
O concretismo cortou as últimas arestas da redundância no campo poético. 22 já proporcionara uma antevisão do poema do futuro, infelizmente despercebida pela geração de 45. 22: vanguarda. 45: retaguarda. Existe uma exceção chamada João Cabral, mas francamente não se conta, pois em termos de hoje só acredito válido um trabalho de equipe. Já vai longe o tempo dos desbravadores solitários. Armstrong & Aldrin não estiveram sozinhos em sua aventura: existia todo um background científico às suas costas, toda uma equipe possuidora de um know-how realmente de primeira linha, impulsionando a Apolo para o espaço sideral.
Em uma época predominada pela técnica, não faz mais sentido o privilégio do rei & seu trono. Estão mortos os geniozinhos da província. A torre-de-marfim foi comida em sua base por um bichano mais vivo que a bichona importada pela tv. Um gato chamado realidade. Um gato concreto, um gato e seu pulo, instaurador de um processo mais vivo & ativo, capaz de inaugurar novas realidades informacionais.
Do neoconcretismo sobrou (e “soçobrou”) o Ferreira Gullar de Luta Corporal, um livro realmente importante para aquilo que se convencionou chamar de “poesia brasileira”. É verdade que ele andou dando uns “deslizes” na época do “Violão de Rua”, mas isso são problemas de crise de consciência, sobretudo de honestidade. Sem dúvida, é um grande poeta.



Agora, “Praxis” foi um negócio imperdoável: com sua perigosa retomada da linha cabralina (porque no mau sentido) quase põe tudo a perder. Cassiano Ricardo passou por isso tudo e fica, porque sem chorar: atento à realidade, admiração pessoal. Mas Chamie, francamente, quem te chama? Foi uma praxis de bombeiros, mas a chama era concreta e não se apagou. E o resto é o “processoal”, onde estamos todos: a informação exata, o tempo exato. Uma real tomada de consciência em função da sociedade industrial, de consumo & outros sumos.
Mas o poema do futuro poderá se transformar em um retorno dialético ao poema praticado avant la lettre, um voltar de olhos (melhor, de ouvidos) para o universo da poesia pré-Gutenberg. Claro, com uma força incrivelmente nova, dinâmica. Em ritmo de televisão. O poeta novamente falará seu poema urbe et orbi, como os gregos cantavam em praça pública. Se o livro restringiu o poema aos iniciados, a televisão – em contrapartida – vai abrir o compasso da poesia elle-même: despojada, selvagem, autêntica. Guerra é guerra. A poesia voltará a ser falada. Teleouvida. Comunicação/televisom. Por enquanto, a guerra ainda é outra: acredito válido & urgente o chamado do poema-visual.

Como você vê o atual movimento mineiro, a poesia feita ou saída de Minas?
Minas é isso: a mineiridade. McLuhan já disse que somos uma aldeia imensa. Por acaso o SLD é um jornal de Cataguases? Claro que não. Ele é fabricado em Cataguases, mas com matéria-prima nem sempre cataguasense, nem sempre mineira, “às vezes nem brasileira”, como esbravejam os nacionalistas cocorocas. Se fosse essencialmente cataguasense, nem teríamos passado do primeiro número. Da mesma forma, o SLMG, sem o ecletismo que o caracteriza, sem a noção exata da importância de sua abertura para a nova geração (nem sempre mineira), já teria ganho um epitáfio saudosista de um fulaninho qualquer, provavelmente possuidor de esotéricas teorias acadêmicas, provavelmente um profissional das literatices bobocas de nosso submundo cultural.
Não, a poesia mineira não é melhor nem pior que a poesia acreana. É preciso acabar de vez com o provincianismo, minha gente! O que acontece é que temos meios de difusão para nossos poemas, embora tentando sempre escapar à mediocridade dos suplementozinhos literatoides das “margens plácidas & ecercanias”.

Grupo SLD: em pé, Joaquim e Aquiles Branco e Lecy Delfim.
Sentados, Ronaldo Werneck, Célio Lacerda e Plínio Filho
(Cataguases, 1963). 

O que também, no fundo, não passa de besteira nossa, um pouco de “torre-de-marfim em grupo”, um certo voltar os olhos sobre nós mesmos, os “poetinhas geniais”, um narcisismo refletido no imenso lago cultural das “oropas”. O que, aliás, é muito cômodo para quem habita uma parte aparentemente privilegiada (Minas, Minas!) da América Latina. Para quem não assume a consciência exata de seu próprio subdesenvolvimento. E viva Caetano Veloso!
E o resto somos nós, também como ele, tentando dar uma certa dignidade à profissão do poeta-hoje, levando a sério o que acreditamos importante em relação à vanguarda, esse termo tão gasto hoje em dia. Sabe como é, né? Aquele chavãozinho do Maiakóvski: sem forma revolucionária etc. etc.
De qualquer forma, é a gente mesmo, essa mineirada toda, que está fazendo alguma coisa. Ainda & sempre: vocês aí em Belo Horizonte, nós em Cataguases, o pessoal de Oliveira, de Divinópolis, de Pirapora etc. SLMG, SLD, FRENTE, AGORA, um pessoal do primeiro time, produzindo coisas sérias, procurando conscientemente novas formas, novas fórmulas. Buscando sempre instaurar um novo processo, consoante com seu tempo, aqui & agora. Bem, de lost generation é que a nossa geração não tem nada. Estamos nos encontrando aos poucos. A partir daí, estaremos preparados para mudar tudo, extirpar de vez os gagaísmos & azulgagarismos, que “acinzentam” o horizonte do provável. E não precisamos provar nada: que se danem os juízes de nossa geração. O importante é assumir os problemas de nosso tempo. E, quanto a isso, estamos tranquilos, de mãos lavadas: o futuro será nosso. Somente com uma diferença: nós saberemos o que fazer dele [....]

Grupo TOTEM: em pé, Joaquim Branco. Sentados, Carlos Sérgio Bittencourt,
Aquiles Branco e Ronaldo Werneck (Cataguases,1977).


Saldo do Concretismo.
Oswald fabricou o fino biscoito. Depois Drummond. E Drummond gerou a grande opção de 45: ou seguir a trilha do poema coloquial, a sua poesia do cotidiano, ou mergulhar na mística de Murilo Mendes. À exceção de João Cabral (que ampliou, em termos de gestalt, o processo poético de Drummond), todos os integrantes da geração de 45 se diluíram no abismo muriliano. E acabaram por retornar, de uma forma ou de outra, ao poema rebuscado, metafórico, de métrica rígida, rimas ricas e quase sempre sem sentido, principalmente dentro de um contexto poético que já nos dera o arremesso de 22. Cabral, descendente direto da linha poética de Drummond, lança-se no rumo certo, trazendo o cotidiano para o universo do poema. E mais, trazendo o próprio poema (o “lance de dados” da criação) para o poema: “como não invocar, / sobretudo, o exercício / do poema, sua prática, sua lânguida horticultura?”.
A concisão cabralina desembocou no concretismo da década passada, com algumas antevisões pré-concretas como na “serenata sintética” de Cassiano (1947), que dentro da ótica do grupo (e notem bem, avant la lettre) é um poema concreto enxuto, integrado em si mesmo. O Augusto de Campos talvez vá discordar disso, mas acho que sem razão, pois foi ele mesmo quem denominou de “concreto & correto” um poema mais recente, “interno-concreção” (1962). E o poema (de Joaquim Branco) tem a mesma estrutura concreta do de Cassiano. Bem, mas o que está em questão não é exatamente isso. E se me perdi em divagações é porque levo muito a sério o trabalho do Décio Pignatari & irmãos Campos.
Saldo do concretismo? Mas é isso tudo que está aí, meu caro. Tudo. Desde os que entenderam mal e se perderam em elucubrações logopaicas aos que perceberam o exato sentido da reviravolta concreta. E esses, nem é preciso dizer, formam ala dentro da vanguarda de hoje. Inclusive, em função de haver rompido um status mais “quadrado” (45), o concretismo teve um papel talvez mais importante do que o da geração de 22. E, na época, Mário Faustino foi realmente o único crítico lúcido, o único que compreendeu a importância real do movimento.
Mas não se pode falar ainda em “saldo do concretismo”: os poetas concretos estão todos aí, vivos, atuais & atuantes. Melhor seria dizer dos que se uniram a eles (naturalmente, com as eventuais reclamações pela “panelinha” das invenções noigandrescas). É quando bate aquele orgulhozinho ferido, municipal & provinciano. Mas é preciso compreendê-los, é preciso ter a noção exata de sua importância dentro do contexto da poética nacional. O resto é bobagem.

O poema processo, o recurso às artes plásticas: Vale?

Libertarde/Ronaldo Werneck, 1968

Vale. Só existe, contudo, uma falha de conceituação. Poema é uma coisa, poesia outra. O poema é elaboração de um processo que deve resultar em poesia. As artes plásticas podem (e devem) conter poesia. Mas de poema (enquanto ofício) elas não têm praticamente nada. O poema é o condutor do processo, o modo mais rápido, conciso & orgânico de se alcançar a poesia. Às vezes, até, o poema é a poesia (poema dentro do poema), num processo de metalinguagem. Esporadicamente, a poesia está solta e nos salta dentro de um cinema, de um teatro. Na pintura, quase sempre. E a poesia é isso: a capacidade do homem se comover. Agora, quando o poema propositadamente não contém poesia, não vejo a razão de ser chamado “poema”. Por que não “arte-processo” ou coisa que o valha?
Mas isso na verdade não importa muito. O que vale é que o movimento processo está inaugurando novas e importantes estruturas informacionais, ampliando cada vez mais o próprio repertório. Principalmente, em relação a uma abertura do universo do poeta, que não mais “se entorpece ao ar de versos”. O poema hoje é multidirecional e pertence a todos. E estatisticamente o processo já é um movimento de âmbito nacional.
Às vezes, isso pode ocasionar certos “deslizes”, pode resultar num modo cômodo, ingênuo mesmo, de se encarar o problema. Em recente entrevista, Marques Rebelo saiu com uma “tirada” interessante: “a literatura, não se pode negar, é coisa de elite. Pelo menos a boa literatura”. Sob certos aspectos, ele tem razão: é preciso assumir a consciência da vanguarda. O humanismo é uma coisa muito bonitinha, mas se o poeta começa a fazer “média com a massa” através de suspeitíssimas redondilhas, o negócio muda de aspecto (i. e., vira música popular, folclore nordestino, milonga etc.).
Apesar de todos os possíveis defeitos (normais, aliás), apesar de todo o deslumbramento inicial, de uma certa falta de reflexão, apesar da irregularidade ocasionada pela produção em massa, o processo é o caminho mais certo para a nossa vanguarda. Pelo menos, foi quem assumiu uma consciência crítico-criativa, um repertório informacional voltado para a sociedade industrial. Principalmente, é o instaurador de uma arte realmente de consumo entre nós.
(Suplemento Literário do Minas Gerais nº 171,
Belo Horizonte, 06 dezembro 1969)