15 de fev. de 2019

Dona Bibi, não respire: a senhora está morta!


Havia uma mesa de sinuca, sempre um ótimo uísque e um papo da melhor qualidade. Era um apartamento numa ruazinha transversal no Leme e depois um outro em Copacabana, se não me engano na Rodolfo Dantas – isso faz muito tempo. Os donos, a atriz Bibi Ferreira e seu marido, o dramaturgo Paulo Pontes. Era aí pelos anos 70 e muitas e muitas vezes batíamos ponto naquele reduto de paraibanos como nosso amigo Paulinho: o compositor e hoje maestro Marcus Vinícius de Andrade, o cineasta Vladimir Carvalho e seu irmão, o fotógrafo e hoje também cineasta Walter Carvalho. Às vezes, pintava também o Ipojuca, irmão de Paulinho. Entre os não-paraibanos, estávamos eu, minha então mulher Adriana Montheiro e naturalmente a Bibi.

A segunda montagem da peça “Brasileiro Profissão Esperança”, escrita por Paulinho e dirigida por Bibi, com Clara Nunes e Paulo Gracindo, estava para entrar em cartaz no ano seguinte no Canecão. Adriana, que já trabalhara com Bibi no Programa dela na TV Tupi, seria a assessora de imprensa do espetáculo (eu iria escrever o release). Na estreia, Chico Buarque iria declarar: "Um trabalho inteligentíssimo de Paulo Pontes. Não é preciso dizer nada sobre o espetáculo: é maravilhoso. Prefiro falar mais às quatro forças deste show, diretamente: Gracindo, Clara, Bibi e Paulinho. Uma beleza”.
O papo rolava solto noite adentro, ritmado pelo tocar dos tacos nas bolas da sinuca e o tilintar das pedras de gelo nos copos de uísque. Ali sobressaía a voz, a inteligência de Paulinho Pontes, uma de minhas admirações de cabeceira – e que se foi tão jovem. Meu amigo Paulinho, que escreveria pouco depois, junto com Chico Buarque, a peça Gota D´Água, um dos grandes momentos da história de nosso teatro, que daria a Bibi a oportunidade de interpretar o maior papel de sua carreira: Joana, a moderna Medeia. Não por acaso, Bibi considerava a peça “a maior obra dramatúrgica brasileira”.

A mãe que se abruma
O país vivia os tempos brabos da ditadura de Médici, dias de censura, torturas e muito medo e apreensão. No ano anterior, Adriana e eu estivéramos presos no DOI-Codi. É claro que política era o prato forte de nossos papos. Mas havia também o humor, quando Paulinho falava dos “saudáveis loucos” da Paraíba. Loucos como o poeta Mané Caixa D´Água, que fez um poema sobre sua mãe e nele colocou o famoso verso “e quando minha mãe se abruma”. Indagado sobre que diabos era aquele “se abruma”, Mané não se deu por achado: “É coisa de mãe mesmo”. Ou quando ele, Paulinho, organizou o embrião nordestino do CPC, o Centro Popular de Cultura que seria fundado mais tarde no Rio e do qual ele seria um dos membros mais ativos. Pois bem: numa dessas reuniões, os estudantes ensaiavam incentivar os camponeses a se postarem em frente ao Palácio do Governo em João Pessoa, até que o governador se dignasse a atender determinada exigência.


      Qual? Há controvérsias, afinal lá se vão décadas e mais décadas. Importante foi como Paulinho convenceu os nobres colegas a desistirem da ideia. Ele simplesmente perguntou o óbvio: “Onde, diabos, os mais de cinco mil camponeses previstos na manifestação vão fazer seus xixis & cocozinhos, já que a praça do Palácio não possui sequer um mísero botequim?”.  A vigília cívica foi abortada na hora. Além de românticas, as revoluções, como as diarreias têm lá seus caprichos.
 Lembro que uma noite toquei o interfone lá do Leme e ouvi a voz do Paulinho me dizendo que ele não estava funcionando, mas já iam abrir. Logo depois alguém desceu e veio abrir a porta do edifício. O hall estava meio escuro e levei um susto, pois a figura era meio fantasmagórica, com grossos óculos escuros e uma toca ou coisa parecida na cabeça. Achei que fosse talvez uma nova empregada. Só quando entramos no elevador vi que era a Bibi. “Puxa, Bibi, desculpe a hora”, falei meio sem graça por não tê-la reconhecido, “o Paulinho está acordado?”.  “Que nada, Ronaldo, é cedo ainda, a turma toda está lá em cima”.
Foi numa noite dessas que Bibi e Paulinho entraram numa discussão acalorada sobre Elizeth Cardoso. A pedido de Bibi, Paulinho estava escrevendo, meio a contragosto, o texto de um espetáculo que ela iria dirigir, com Elizeth e Baden Powell. Paulinho gritava de lá “Elizeth pode cantar muito, mas não sabe dizer texto, não tem vocação para isso”. Bibi rebatia ainda mais alto: “Deixa comigo, isso é problema meu, que vou dirigir o espetáculo”. E a discussão ia esquentando enquanto eu e Waltinho Carvalho íamos dando nossas tacadas e fingindo não escutar nada: afinal, em briga de casal, vocês sabem... Paulinho acabou escrevendo o texto e o espetáculo estreou no Canecão ainda naquele ano de 1973. Foi um grande, enorme sucesso.

Villa-Lobos e o quatro
“Numa das entrevistas que fiz com Abigail Izquierdo Ferreira, a pedi em casamento. Não havia outra maneira de demonstrar minha paixão por Bibi Ferreira” – escreveu recentemente Jô Soares em sua autobiografia.  Para se ter ideia  do mundo fascinante que foi a vida de Bibi, registre-se pequeno trecho do livro de Jô, lembranças de quando ele estava dirigindo Bibi numa peça de Juca de Oliveira: “A dada altura das conversas sobre a montagem, eu, pensando em usar a beleza da voz da Abigail na peça, cometi a asneira de perguntar pra ela se ela conhecia as Bachianas brasileiras nº 5, do Villa-Lobos. Ela me respondeu com genuína simplicidade: “Conheço, sim. Eu cantei essa música com a Filarmônica de Londres”.


“Quando estávamos na mesa de leitura – possegue o Jô – a Bibi, do alto de seus 85 anos, falou: ´Tem uma coisa ótima que eu faço, que é o ´quatro´. Eu me equilibro numa perna só, formando o número quatro. Vai dar muito certo na cena em que estou bêbada´. Eu disse pra ela: “Abigail, você é um patrimônio, você está acima dessas coisas de equilibrismo. Vamos deixar isso de lado´. Bibi concordou, mas um belo dia, espetáculo rodando redondinho, ela fez o quatro e a plateia delirou. Meu assistente de direção disse pra ela: ´Bibi, foi ótimo, mas o Jô disse pra você não fazer o quatro, e você fez. E se alguém contar pra ele?´. Ela disse na hora: ´Eu morro negando´”.
Poucas vezes Bibi sentava-se conosco naquelas noites dos anos 70. Mas quando fazia contava histórias e mais histórias de teatro, do palco e dos bastidores, o verdadeiro porquê de sua vida. Lembro dela falando com entusiasmo de uma apresentação que tinha assistido do Laurence Olivier (em Nova York? Em Londres?), a maneira de ele ganhar o público com um gesto, uma alternância vocal. E também de casos hilários que presenciou em sua longa trajetória teatral.
Como numa apresentação em Portugal, quando um dos atores (um português do elenco) tinha que bater numa porta cênica, segundo a marcação. E o gajo não fez por menos: esmurrou com tal força que o cenário veio abaixo. E também abaixo veio o público de tanto rir. Ou numa apresentação de sua companhia numa cidade do interior do Brasil (ela não mais se lembrava qual). Como de costume, a companhia chegava na cidade e “arregimentava” algumas pessoas para “interpretarem” papeis absolutamente secundários nos espetáculos, quase sempre sem fala. Uma forma de economizar nas viagens, levando menos pessoal e também de “fazer um agrado” no povo das cidades onde as peças eram encenadas.
Muito bem, a cena era a seguinte, conforme a rubrica: Bibi, que fazia uma vetusta senhora, encontra-se sentada à mesa e pergunta pelo chá. O “garçom” entra, serve o chá e sai de cena sem proferir uma palavra. Só que o “artista” da cidade entrou em cena já falando e falando sempre enquanto caminhava: “Assim que a senhora pede o chá o garçom entre no palco e caminha em direção a ela, sem olhar para o público por um momento sequer. Serve o chá e sai da mesma forma, sem nada falar e sem se virar sequer por um minuto para a plateia”. Quer dizer, o sujeito não ficou satisfeito de não ter “voz na peça” (imagina, na frente de todos os amigos da cidade!) e se soltou falando alto e bom som o texto da rubrica. Claro que esse foi o momento “maior” do espetáculo, com o público caindo literalmente na risada.

Dona Bibi, a senhora está morta!

Bibi e Luiz Linhares: Gota d'Água.

      Vi Bibi em cena anos depois em Gota d´Água, que assisti várias vezes, a convite de meu amigo Luiz Linhares, que contracenava com ela. E em vários dos belos musicais, principalmente ela fazendo a Piaf. De emocionar. Lembrei-me dela e de Paulinho no espetáculo de Artur Xexéo sobre a sua vida – meio qualquer coisa no primeiro ato, mas que cresce no segundo ato quando surge a figura de Paulo Pontes, o amor, a arte, o engajamento político. E Amanda Costa está perfeita como Bibi. Aliás, foi de arrepiar ver Amanda sendo acompanhada do palco por uma Bibi na plenitude de seus 96 anos, cantando Piaf lá da plateia, em sua derradeira e brilhante aparição. 
A última vez em que estive com ela foi no camarim do Teatro Tereza Raquel, nos anos 90. Era uma nova montagem de “Brasileiro Profissão Esperança”, que Bibi dirigia e atuava ao lado de Gracindo Jr. Mais do que isso, ela às vezes fazia tanto o papel de Dolores Duran quanto o de Antônio Maria. Coisa que só mesmo uma atriz com a bagagem e o talento enorme de Bibi poderia fazer. Eu a abracei forte, emocionado, e nada falamos. Não havia necessidade: não nos víamos desde a morte de Paulinho e parecia que o espírito dele pairava sobre nós, como se profissionais da esperança também fôssemos.



Ao sair do teatro lembrei-me de uma das histórias hilárias contadas por Bibi. Foi nos tempos do Grande Teatro Tupi, idealizado por Sérgio Britto, que era exibido pela TV Tupi nas noites de segunda-feira. Bibi “morria em cena” no espetáculo, que era ao vivo, num tempo ainda sem video-tape. E lá estava ela, deitada no chão do estúdio, “mortinha da silva”, esperando o corte do diretor. Foi quando um dos câmeras chegou perto e sussurrou: “Dona Bibi, Dona Bibi, tá me escutando? A câmera dois pifou e a senhora está em close na câmera 1. Não respire, Dona Bibi, não respire, a senhora está morta!”.  Ela não sabia se continha o riso ou se morria de vez, sem poder respirar. Anteontem, grande atriz, profissional por excelência, Bibi Ferreira cedeu ao apelo daquele câmera e parou de respirar, agora para sempre.  


6 de fev. de 2019

FRUTAS, FACAS, ALFAVACAS


Na feira livre do Estácio, preso numa roda de bamba, o malandro deu de cara com três turistas trêbados trauteando tartamudos Città meravigliosa! cheia de milencantos em meio a frutas, facas, alfavacas, frufru de feirantes e tutti quanti aliterantes. E súbito acontece uma mulata daquelas, uma que se dizia Florisbela. Era dia de Carnaval e o malandro fingiu que nem viu sua cabrocha de fé e moradia a lhe puxar pela camisa em meio a toda aquela algaravia. Sua velha cabrocha que no compasso do samba de lá dizia: Encontrei o meu pedaço na avenida de camisa amarela, cantando a Florisbela. Não estava nada bom o meu pedaço, trauteava a mulatantã. Na verdade estava bem mamado, bem chumbado, atravessado e foi por aí cambaleando, se acabando num cordão com o reco-reco na mão.
       Era dia de Carnaval quando alguém não se sabe de onde anunciou Portela! Portela! E o samba trazendo alvorada seu coração conquistou. Mais ainda: quando nem bem uma esquina dobrou, as portelas pernas ainda bambas, ele deu com um cara a cantar eu sou o samba, um mulato maneiro a dizer sou natural aqui do Rio de Janeiro e metendo bronca: em qualquer esquina eu paro em qualquer botequim eu bebo. E se houver motivo é mais um samba que eu faço. E podem me prender que eu não mudo de opinião.



Pelo que dizia, o mulato muitos amigos teria, e era pra lá de popular. Como aqueloutro, comandando o bloco que lá vinha. O que será que andam combinando no breu das tocas, que anda nas cabeças anda nas bocas? O que será que estão falando alto pelos botecos? E vinha de lá um magrelo sem queixo, cigarro caindo da boca: agora vou mudar minha conduta, vou tratar você com força bruta. O cinema falado é o grande culpado da transformação dessa gente.  Que não tem governo nem nunca terá. Que não tem vergonha nem nunca terá.

Fecha a cortina do passado
O que será, eu sei, que o meu peito é lona armada. Circo vive é de ilusão. Chorei com saudades da Guanabara refulgindo de estrelas claras longe dessa devastação. Passei pelas praias da Ilha do Governador e subi São Conrado até o Redentor. Lá no morro Encantado eu pedi Piedade. Plantei Ramos de Laranjeiras, foi meu Juramento. No Flamengo, Catete, na Lapa e no Centro. Pois é, pra gente respirar, Brasil, Brasil, tira as flechas do peito do meu Padroeiro, que São Sebastião do Rio de Janeiro ainda pode se salvar.



Eu poderia ficar sempre assim como uma casa sombria. Percorrer correndo os corredores em silêncio. Mas quero as janelas abrir para que o sol possa vir iluminar.  Muita calma pra pensar e ter tempo pra sonhar. Sim, eu poderia procurar por dentro a casa, cruzar uma por uma as sete portas, as sete moradas. Mas eu prefiro abrir as janelas pra que entrem todos os insetos. Da janela vê-se o Corcovado, o Redentor, que lindo.
Agora, falando sério, eu queria não cantar. Meu Rio que não dorme porque não se cansa. Dou um chute no lirismo, um pega no cachorro e um tiro no sabiá. Não me leve a mal. Me leve à toa pela última vez ao quiosque, ao Planetário, ao Cais do Porto, ao Paço. Agora, falando sério, eu queria não mentir. Meu Rio que balança, sorrio, só Rio. Da janela vê-se o Corcovado. Estrela vulgar a vagar.



Passou este verão, outros passarão. Eu passo. Mas tenho os olhos tranquilos. Sobre um pátio abandonado, profetas nos corredores, mortos embaixo da escada. Mas isso faz muito tempo. E outras palavras já queriam se cantar. De ordem e desordem, de loucura. O filme quis dizer "Eu sou o samba". A voz do morro rasgou a tela do cinema. Fecha a cortina do passado. Dessa janela, sozinho, olhar a cidade me acalma. Rio, e também posso chorar.

Fragmentos de meu texto “Rio e também posso chorar”, publicado na Revista RECine, do Festival Internacional de Cinema de Arquivo (Rio, 2010)
 O texto completo encontra-se no meu site: www.ronaldowerneck.com.br/tc_musica_rio.html