“Tanto
que gastava um século para levar o copo à boca, embebido no mar, bebendo o mar ...
de repente copiando o céu de um vertiginoso azul: especial para místicos,
invertidos em pane, astronautas e suicidas virtuais em olor de santidade ou de
álcool, álcoois, alcaloides”. Assim Rosário Fusco desenhava Fulano, um dos
personagens centrais de seu romance “a.s.a.
– associação dos solitários anônimos” (Ateliê Editorial, São Paulo, 2003).
E Fusco parecia desenhar a si mesmo: também ele, ao acaso, um autêntico “s.a.”.
Como diz o narrador do romance: “num continente descoberto por acaso, é natural
que o acaso impere”.
Praticamente auto exilado em Cataguases
ao longo de seus últimos dez anos, foi esse vulcão de cultura e criatividade
que tive o prazer de conhecer e de certa forma “praticar” (como ele gostava de
dizer) entre 1968 e 1977. Um tempo jamais esquecido. Tanto que, no momento em
que se completavam 40 anos de sua morte (17.08.1977), eu publiquei um livro que
primava pelo afeto – Sob o signo do
imprevisto (Poemação Produções/ Cataguases, 2017) –, onde falo um pouco de
sua trajetória literária e, é claro, um muito sobre nossa amizade. Rosário Fusco
estaria completando 110 anos no próximo domingo, 19 de julho. Se vivo fosse
estaria brindando como gostava: o sorriso largo e um uísque a caubói. Se vivo
fosse? Fusco está aqui ainda agora: o Rosário redivivo.
Escrever: uma fatalidade
Fusco foi certamente grande influência,
um norte para leituras, referencial de magna importância em minha trajetória de
vida e literatura. Papos que ofuscavam e ofuscaram (vale o óbvio trocadilho)
todos os demais tidos e havidos com outros e outros intelectuais ao longo de
minha existência. Uma bênção (evoé, Rosário!) que recebi daquele mulato enorme
e sagaz e triste e sarcástico e joco-sério – formado por essas porções todas
que eram uma só e mágica poção na arquitetura e fascínio da personalidade de
meu grande e inesquecível amigo.
“Tenho perdido ônibus, bondes,
empregos, amizades. Nunca perdi a vontade de escrever. Vivo – quem não vive? –
sob o signo do imprevisto, que manda chuva e manda guerra, protesto de títulos
e cobradores à porta, falta de manteiga e falta de afeição, aumento do preço do
cinema ou dores de cabeça irremovíveis. Escrever é um mal, é um bem, é um erro?
É tudo isso e não é nada disso: é uma fatalidade, para encurtar palavras.” –
ele nos dizia na entrevista que eu e Joaquim Branco fizemos para o Pasquim em
1976, e que se encontra em meu livro.
Com um mês de idade e órfão de pai,
Rosário Fusco de Souza Guerra chega a Cataguases com a mãe, lavadeira – vindo
de São Geraldo, Zona da Mata de Minas, onde nascera em 19.07.1910. Duro início de vida: aprendiz de latoeiro,
servente de pedreiro, pintor de tabuletas, prático de farmácia, professor de
desenho. Aos 17 anos é um dos criadores
da Revista Verde e, aos 18, publica Poemas Cronológicos, parceria com
Enrique de Resende e Ascânio Lopes, (Verde Editora - Cataguases, 1928). Em
1932, muda-se para o Rio de Janeiro, onde forma-se em Direito em 1937.
De 1928 a 1969 –
quando a Editora Mondadori lançou na Itália seu romance L´Agressore,
editado em 1943, no Rio, pela José Olympio – Fusco publica inúmeros títulos: Fruta de Conde, poesia, 1929; Amiel, ensaio, 1940; O Livro de João, 1944, Carta à Noiva, 1954, Dia do Juízo, 1961, romances; Vida
Literária, crítica, 1940; Introdução
à Experiência Estética, ensaio, 1949; Anel
de Saturno e O Viúvo, 1949,
teatro; e Auto da Noiva, farsa, 1961.
O que fica é o esforço
No domingo, 23 de outubro de 1949, o Suplemento “Letras e
Artes” do Diário de Notícias publica um perfil de Rosário Fusco escrito pelo
próprio, que também assinava um rodapé de crítica literária no jornal carioca. Entre
outras sacadas de grande espírito, a sarcástica menção a Marques Rebelo
(desafeto da hora) é simplesmente hilária, surpreendente. O texto é todo Fusco,
nem carece de assinatura. E vale reproduzir na íntegra:
“Nome: Rosário
Fusco de Souza Guerra. Nasceu em S. Geraldo (Minas) em 19.07.1910. Tem duas
filhas, estando prestes a ser avó e pai pela terceira vez.
Cabelo
ondulado e bigodes bastos. Altura: 1,87. Sapato nº 42 e colarinho, idem. Pesa
86 quilos e é moreno carregado. De formação católica, deista e anticristão, 38
anos depois.
Não toma conhecimento dos seus vizinhos.
Não tem hora para dormir, comer ou beber. Tem medo, mas não acredita em almas
do outro mundo. Comida de sua predileção: feijão com torresmo e angu. Gosta
muito de crianças. Considera-se homem de grande habilidade manual: borda,
pinta, cozinha, faz móveis, conserta rádios e relógios.
Se
pudesse recomeçar a vida, gostaria de ser Rosário de Souza Guerra. Tem medo de
andar em elevador, ônibus e táxis. Não responde a cartas e nem acusa recebimentos
de livros. É extremamente vaidoso e por isso mesmo não faz força para a sua
permanência atual na literatura.
Detesta
bichos. Nunca jogou. Não sai de casa aos sábados. Fuma uma média de 100
cigarros e bebe quando tem dinheiro 10 uísques por dia. Que é o seu “teto”.
Nunca fica “pastoso”. Não faz, mas tem prazer em receber visitas.
Na
mocidade foi servente de pedreiro, lavador de vidros de farmácia e agente de
seguros de vida. É louco por dança e bêbado considera-se um grande bailarino. É
apolítico por excelência, apesar de Aristóteles.
O
cheiro de incenso lhe causa arrepios místicos. Chora em cinema e ao ler os
casos dolorosos da cidade no “Diário de Notícias”. É excessivamente boêmio e ao
mesmo tempo absolutamente doméstico.
Há
5 anos vem escrevendo e reescrevendo o romance “Carta à Noiva”.
Considera-se
uma mediocridade completa e acabada. Morre de alegria quando sabe que alguém
leu um livro seu ou o conhece literariamente. Preocupa-se com o pecado, e a
propósito espera escrever o seu melhor livro “Rodia” ou o problema da
liberdade.
Romancistas
brasileiros de sua predileção: Octavio de Faria (mau escritor), Graciliano
Ramos (discutível romancista). Poetas de sua predileção: Francisco Marcelo
Cabral (poeta de Cataguases – 18 anos), Carlos Drummond de Andrade, Manuel
Bandeira, Emílio Moura e Alphonsus de Guimarães Filho.
Pintores
de sua predileção: Portinari, Santa Rosa (mau pintor) e o próprio. Gosta muito
de música. Seus compositores preferidos: Bach, Beethoven, Noel Rosa e Ary
Barroso.
Dos
seus livros publicados, prefere “O Livro de João”. Sua maior admiração
literária: Dostoiévski. Suas aversões literárias: Gide, Rilke, Sartre, Camus e
Proust. Considera a literatura brasileira inexistente, apesar de sua participação.
Na crítica nacional só acredita no bom gosto de Tristão de Athayde e Álvaro
Lins.
Gosta
de todo mundo, inclusive de Marques Rebelo.
Todos
os seus livros publicados o foram em função de amigos. Considera a crítica uma
inutilidade, por isso abandonou-a. Acredita no esforço que a seu ver é o que
fica. É otimista e acredita nos homens. Tem amigos entre ministros e contínuos.
Gosta muito de dar esmolas e promete emprego a todo mundo.
Considera
o casamento um sacramento e fora dele não admite outras ligações, por isso
casou duas vezes.
Sua
leitura predileta: filosofia, por ser poesia pura. O primeiro livro que leu
inteiro foi “Bug-Sargal”, de Victor Hugo, emprestado por Ascânio Lopes (tinha
12 anos).
Foi
um dos fundadores da “Revista Verde”, de Cataguases, que logrou repercussão
enorme e com os quais, maliciosamente, Joel Silveira confundiu os fundadores do
integralismo.
Não
topa a chamada nova geração “coca-cola”.
Muitas
vezes, no início de sua vida, embebedava-se com vinho ordinário para se
esquecer das refeições.
Foi
o primeiro diretor da Rádio Nacional e o primeiro a lançar novelas
radiofônicas, na extinta Rádio Ipanema, em 1936, com Carlos Frias e Zezé
Fonseca.
Tem
pavor da morte, por incapacidade de construir para si mesmo uma teoria do
conhecimento moral.
Espera
morrer no momento em que, agonizante há dias, a família considerar o desenlace
um descanso para ela e ele.”
Lúcio Cardoso: os passos dos mortos
Relendo
agora esse “perfil fuscal” me lembro que, anos depois, já na década de 1970,
ele me disse que gostava muito de um dito de seu grande amigo Lúcio Cardoso: “o
que vale é o esforço”. Exatamente o que ele afirma em seu perfil. Coincidência?
A frase é mesmo dele ou do Lúcio? Ou o Lúcio nunca disse isso e o dito era dele
mesmo, Fusco, que andou trocando as bolas e os esforços?
Sobre
os poemas iniciais de Lúcio, Fusco escreveu certa vez, tecendo considerações
sobre a poesia em si: “... Seus poemas de agora... balanceiam-se e constroem
uma música de rede que muitos detestam, menos eu. Procure lê-los em voz alta,
lápis na mão. Não despreze a pontuação da gramática (é tolice pensar que ela
não seja emocional): falando, qualquer sujeito fica entre quintas e oitavas,
limite da tonalidade dos sentimentos. Mas que se expressam. Não poesia gritada,
nem no grito, nem no barulho. Castro Alves gritou: poeta para surdos. A questão
é ouvir passos dos mortos, o ruído que a terra faz em torno do seu eixo.
“...Quem
não dispuser de ouvidos capazes disso não se encontrará, jamais, com a poesia.
O teste é mesmo esse, porque a poesia é uma escamoteação do que a gente apalpa.
Não há uma só palavra que lhe dê a coisa que você pretende: caderno, palavra,
não é o mesmo que caderno, coisa. Tanto que você exige um aprendizado para a
utilização da palavra caderno. Caderno é isso assim e assim. Ah, então sei o
que caderno”.
Cabral, “o poeta de Cataguases”
Mencionado
por Fusco entre os poetas de sua predileção, meu amigo Chico Cabral – o “Francisco
Marcelo Cabral , poeta de Cataguases, 18 anos” –,afirma em um de seus
depoimentos sobre a Revista Verde,: “Eu mesmo só tomei conhecimento de Verde,
conhecimento físico, de ler a Revista, muito depois. Eu convivi com eles já
homens de sucesso na literatura. E evidentemente foram muito importantes para
mim, principalmente o Fusco com quem mantive correspondência. Aquela coisa do
Fusco, aquela exuberância. O Fusco era um homem hiperbólico. Eu publiquei um
livro com 19 anos e o Fusco me saudou como ´o poeta´. Aquela coisa exagerada,
mas ao mesmo tempo tinha uma atenção naquilo.
“O
Fusco – Cabral continua –, com toda a polêmica do Fusco, que é uma figura
interessantíssima, o Fusco é um escritor de brasileiro, não é um escritor
cataguasense, imagina, não existe isso, nenhum de nós que escreveu em
Cataguases quer ser um escritor cataguasense, nem os da Verde. Por que isso?
Porque toda cultura em Cataguases é gerada porque somos produtos de exportação.
Uma vez eu escrevi que o Fusco era nosso principal produto de exportação. O
Fusco me ligou dizendo: “você acertou, porque agora eu estou sendo publicado
pela Mondadori na Itália” Ele ria, porque sabia o que eu estava dizendo, quer
dizer, de exportação porque fugia ao consumo local. A cidade não consome a obra
de arte que é gerada aqui, o que é muito curioso”.
O Livro de João
Também
citado por Fusco naquele perfil de 1949 como o romance preferido entre os que
publicou – e que meu amigo Bigode, o cineasta Luiz Carlos Lacerda, está
roteirizando para filmar em breve –, essa sua “queda” por O Livro de João
parece ter continuado até o fim, mesmo após a sucessão de outras obras
editadas. Pelo menos foi o que pude ouvir certa noite dos anos 1970 em sua casa
de Cataguases, quando um Rosário Fusco emocionado me dizia ser aquele romance,
“escrito quando eu estava ainda na faixa dos 30 anos”, o de que mais gostava.
Buscou
então um exemplar na estante e leu pra mim um trecho onde mencionava o dia do
juízo final (mais de 10 anos antes da publicação de seu romance Dia do Juízo, editado
em 1961, mas terminado em 1957). Um trecho coincidentemente citado por nosso
amigo em comum, o poeta Joaquim Branco, em artigo relativamente recente. E leu
esse e o trecho final do livro. De um só jorro, aos borbotões, quase lágrimas:
“Não
colocava o pecado sob o signo do imprevisto: marcava-lhe data, hora e lugar,
porque só está fora do tempo e do espaço o Dia do Juízo. Pode ser agora, no
momento em que escrevo, pode ser logo mais, talvez amanhã, acaso daqui a
milhões de séculos. O relógio que o apontará não fica na parede, nem no bolso,
nem no pulso, nem na mesa da cabeceira, nem na escrivaninha do laboratório, nem
na torre da igreja, nem na coluna do abrigo de bondes, nem no alto da estação:
está dentro de ti, João, dentro de todos, pingando como a torneira da casa do
fotógrafo, sem te encher, como a chuva não enche o mar e o volume deste é
sempre igual, receba ou não as águas de todos os rios da terra.
“(...)
Eu estava solto nos topos da terra, entre gases desconhecidos e poeira,
paralelos e meridianos, arranhando a cabeça nas constelações. Testava as mãos
nos trópicos e andava de patins nos fios de círculos polares, íntimo dos
astros, sem testemunhas e sem ligações. Mas os espíritos dos meus mortos –
amigos e conhecidos – não me fiscalizariam porventura?”.
Viver poesia: Vinicius
![]() |
Cataguases, anos 70: Fusco recebe Vinicius. |
Em sua coluna Vida Literária, Fusco escrevia em 1939
no Diário de Notícias sobre um então jovem poeta: “Vinicius de Moraes, portador
de uma linguagem estranha e profundamente lírica, uma espécie de Claudel dos
trópicos, com nuanças sexuais disfarçadas por uma delicadeza mística
comovente”. Em carta do mesmo ano, enviada de Oxford a Rosita e Thiers Martins
Moreira, Vinicius retribuía o afago de Fusco: “Os elogios do Rosário Fusco, o
nosso Amiel (o filósofo, poeta e crítico
suíco Henri-Frédéric Amiel seria objeto de um ensaio de Fusco, publicado no ao
seguinte) ... Fusco é um grande tipo, simpático como ele só. Mesmo o
esforço que ele faz para compreender os poetas jovens e inocentes como eu, é
muito simpático. Mostra de certo modo que a gente não tomou o Santo Nome da
Poesia em vão e ainda há um outro que sai do casulo e bota os óculos por causa
da gente".
O mesmo Rosário Fusco que, em carta
de 1945 para Afonso de Guimarães Filho, se dizia “um pobre e medíocre ex-poeta
que, a tempo, se descobriu mais frágil e insignificante do que uma casca de
ovo. Depois da boa época de Cataguases, acredito que perdi – se é que, de fato,
a possui um dia – toda essa pureza que é o chão da alma de vocês, poetas.
Deixei de fazer versos aos 20 anos e passei – ai de mim – como compensação, a
viver poesia. Acho mesmo que não tenho feito outra coisa nessa minha vida sem
rumo”.
Os poetas tendem, a poesia não
Vale a pena mencionar também trechos da entrevista concedida por
Fusco a Mello Mourão publicada pelo Diário de Notícias em 1938, onde parecemos
ouvir o tonitroar da voz do crítico
ferino, às vezes amargo:
MM – Quais as tendências mais marcantes
da poesia contemporânea?
RF
– Os poetas “tendem”, a poesia não. Há poetas de um lado, poetas de outro, a
poesia fica no meio. Como a virtude do provérbio romano. A “tendência” de um
gênero é uma coisa conceitualíssima. Ainda há pouco um rapaz de Brasília foi
descobrir sentidos revolucionários na poesia de Castro Alves. E já houve quem
chamasse Jorge de Lima de poeta comunista porque, num verso do “Livro de
Poemas”, o meu querido amigo falava de uma operária grávida que não tinha o que
comer etc. Como vê, a gente pode descobrir tendências à vontade. Qualquer
classificação, neste como em outros casos, é sempre arbitrária.
MM – Qual a contribuição social da
poesia?
RF
– Nenhuma. A poesia é de curso mais fácil do que a prosa, mais “portátil”,
digamos. Seria um excelente veículo de ideias se essa função não a anulasse.
Castro Alves soltou “ais” tremendos, enchem os ouvidos do Brasil de lamúrias e
exclamações pirotécnicas. A publicidade das ideias abolicionistas, entretanto,
impressionava mais nos discursos. “A
Cabana do Pai Thomaz” foi muito mais eficiente como veículo ideológico do que a
poesia nos Estados Unidos. Depois, a poesia, como expressão, cedeu mesmo lugar
à pesquisa, ao documento. O que adianta você publicar poemas ou escrevê-los se
ninguém os lê? A poesia é como os lírios bíblicos: medra melhor à sombra.
Romance:
uma frautinha
“Romance,
para mim, é gênero danado e, pois, maior, o maior. Romance só é gênero pequeno,
barco de pequena cabotagem, nos compêndios de história literária dos teoristas
nacionais. Ou nos volumes dos narradores brasileiros”, nos dizia RF em 1976 na
entrevista do Pasquim. “Dia do Juízo
me custou três anos de trabalho (com interrupções). De 1954 a 57. Em
dinheiro da época, líquido, o romance me rendeu cinco contos. O romancista
brasileiro não é, antes de tudo, “um duro”: é um supercamelo carente de enzimas
digestivas: rumina, mas não digere".
De acordo com o editor José Olympio, no texto de orelha de Dia do Juízo, “as bruscas
intervenções do romancista (não há história sem narrador) na tragédia da provinciana Primavera (que se perde e se
mata, porque nasceu assinalada para uma espécie de amor e uma espécie de morte)
concedem a este romance – escrito para
adultos de corpo e alma – ´um tom orquestral absolutamente estranho ao gênero,
tal como é concebido e realizado pela maioria dos autores brasileiros´, segundo
a opinião de seu primeiro leitor, o Revisor da Casa.
Toda
a razão a José Olympio e ao Revisor: a primeira descrição da personagem
Primavera é na verdade uma teorização/interferência do autor, que de repente
filosofa sobre o mundo e a existência. Bem Rosário Fusco: “Nas circunstâncias
em que Primavera nasceu, a qualquer seria fácil profetizar-lhe o futuro: mas...
e o do mundo? (...) Tudo o que existe, existe para o seu contrário, a que
corresponde como a outra face da mesma coisa: céu e terra, fogo e água, quente
e frio, luz e treva (...) O dualismo não é lei, mas jogo de existir diferentes.
O dualismo não é lei, mas jogo de palavras que se opõem: o ser é um, a substância
é uma, tudo o que existe é um, porque uma é a lei que rege o universo dos
mundos e das almas.”
“Sem consciência do
ontem, do hoje e do amanhã, para ela o globo se reduzia às proporções do útero
faminto: refúgio, balanço e berço de amantes”. (...) “– Bom dia, moço, quero
dizer, boa noite: eu sou a completa que o senhor pediu”. (...) “Pecado gera
pecado, vício gera vício, ou há uma escala de pecados e vícios, uma hierarquia
na abominação?”. Ao se referir à frágil, esquálida, atarantada Primavera nesses
trechos de Dia do Juízo, Fusco me lembra de uma história (verídica ou fantasia
do romancista?) que ele mesmo me contou como acontecida no fórum de Cataguases.
Menor de idade, moça “que se perdeu”, é interrogada sobre o estupro pelo
promotor: – Então, minha filha, o sujeito introduziu o órgão? – Não, senhor. –
Como não, ele não introduziu o órgão? – Num era órgão não, dotô. Era só uma
“frautinha”. Pano rápido.
Adelino: um presente cotovelar
“Meu caro poeta –
me dizia Fusco em carta dos anos 70 –, para ler, mas ler mesmo, comme il
faut, aproveitando o que se lê, aprendendo, é preciso apreender, é preciso
estar com os cotovelos sobre a mesa, a cabeça apoiada em uma das mãos, a caneta
na outra, anotando o ‘anotável’, digerindo o ‘digerível’, ou o dirigível, como
queira”. É o que eu hoje chamo de “leitura cotovelar” – a que fica e nos justifica.
E
RF continuava: “Você me cita no prefácio do livro do Quincas (“Consumito”, de Joaquim
Branco) e o Cabral (Francisco Marcelo) me cita no prefácio de seu
livro (“Selva Selvaggia”). Isso dá a impressão de que existe uma igrejinha
cataguasense, mais nordestina do que mineira – o que não é bom. Creio que seu
amigo Ezra Pound, na conjuntura, lhe proporia a seguinte charada inconsequente
que psicografo por estranha força do astral: 'eu te cito/ você me cita/ na área
do consumito/ você apita/ se eu apito/ no mesmo apito/ nada comum/ pois que o
dito/ só clama aflito/ o pobre mito/ de cada um'. Abraços do Rosário
(02.06.76)”.
Foi
quando ele me presenteou com uma preciosa primeira edição (1918) do livro
Visões, Scenas e Perfis, de Adelino Magalhães, um modernista avant la lettre, de prosa despojada, à
margem do cânone (que Fusco um dia me disse ser um precursor de Joyce). Adelino
é até hoje um de nossos escritores de grande importância, arrolado entre os
eternos “esquecidos”. Na dedicatória, RF me dizia: “Veja, sinta e leia – meu
caro Ronaldo – como o Adelino é mito maior do que Céline. Abraços, Fusco”. Nunca entendi o porquê da comparação de
Adelino com o francês Céline, escritor que foi cultuado por alguns e outros e
aqueloutros pelo valor de suas obras, mas que se se tornou maldito por seus
textos anti-semitas.
Onde anda Rosário Fusco?
Em meados dos anos 60, ele volta para Cataguases. “Onde anda
Rosário Fusco?” – eu me perguntava em 1996. “Onde andam o vozeirão, a velha e
rombuda Parker 51, o imponderável bigode mexicano, a larga risada, o humor, a
lágrima, o uísque, o cigarro, a lustradíssima bota do menino Rosário sobre a
mesa do seu escritório na casa da Granjaria. Como a bota de Van Gogh, uma de
suas admirações, “do rol das confessáveis” (as outras: Machado de Assis,
Dostoiévski, Beethoven).
Em 21 de agosto de 1977, quatro dias após seu falecimento, em
crônica no Jornal do Brasil, Carlinhos Oliveira brindava à vida e fazia de suas
palavras a melhor das elegias para Rosário Fusco: “Curiosamente, não recebo com
tristeza a notícia de sua morte. Ele viveu intensamente, não desprezou nada,
comeu e bebeu e estudou a vida com furor implacável. Não provou do veneno dos
românticos, mergulhou de cabeça na festa, e cada minuto de sua vida foi sem
dúvida uma vitória contra a insidiosa inimiga”.
Ainda agora me pergunto: onde anda Rosário Fusco? Lá pelas
tantas, na entrevista que Joaquim Branco e eu fizemos com ele pro Pasquim em
1976, Fusco nos dizia: “Na realidade, já morri”. Que nada, sô! O velho Fusco
está aqui e continua ainda agora ofuscando a rapaziada como nos tempos em que
era o enfant terribe da Revista
Verde.
PASQUIM – Como se explica seu silêncio desde 1961?
FUSCO – Na realidade, já “morri”. O que eu gosto mesmo é de
ser. Mas ser, como je suis, eu posso ser em Belo Horizonte, Cabrobó,
Cataguases ou nos cambaus. Ninguém é por estar aí, mas por être en soi.
Ninguém sai de si mesmo, ou se aliena de si mesmo, a não ser pelo sexo ou pelo
álcool (digo pelo álcool para não ir à droga propriamente dita). Afinal, o que
fica na vida de cada um (física ou mental) mais que o esforço por algo que é a
marca ou tara individual? Carga, ônus e pesadelo de nossa passagem (ou estada)
no planeta?