3 de jan. de 2020

CCBB/Rio, 1994 – Giulietta & Federico: e agora?



Com esta mostra em vídeo o Centro Cultural Banco do Brasil recupera na memória do público as imagens oníricas de um dos magos do cinema, talvez o maior deles. Simultaneamente, a tela estará imantada pela figura ao mesmo tempo frágil e magnética da atriz-ícone de sua obra. Fellini & Gelsomina & Cabiria & Ginger. Fellini & Masina. Criador & criatura. Federico & Giulietta.
Em entrevista publicada em Paris (Le Monde, 09.02.90), Federico Fellini dizia evitar cuidadosamente de ser fazer perguntas, pois era incapaz de encontrar respostas. No início de cada um de seus filmes, ele prendia com percevejos, num grande painel de feltro verde, as fotos de todos aqueles que em um dado momento poderiam ter um papel, mesmo que pequeno, a representar no projeto. Pouco a pouco, essas fotos invadiam o espaço, se acotovelavam, ficavam sobrepostas, conquistando seu direito de participação.



       Sua vida então era condicionada por essa grande tapeçaria de rostos, completando um entrelaçamento de figuras, bilhetes, telegramas, croquis, fragmentos de cenários, notas diversas. No último dia de trabalho, ele arrancava tudo do painel, machucando os dedos, esfolando-se com os percevejos. Por um momento, Fellini olhava para o feltro verde vazio. Depois, como sempre, pegava uma folha em branco e escrevia: “E agora?”. Sem jamais esquecer a interrogação.
        Seus filmes não eram construídos de imagens, mas construção a partir de imagens, dessas imagens que povoavam seus sonhos, cristalizadas no painel de feltro. A maior delas estava sem dúvida em sua própria casa, representada pela figura patética e clownesca de sua mulher, Giulietta Masina. Foi ela quem melhor encarou a persona clown de Fellini. A imagem franzina e pungente de Giulietta. Seus olhos, os trejeitos, o andar gauche, a aparência de quem foi colocada ao acaso no mundo. Giulietta estava ali e nos seus filmes como se estivesse sempre sobrando, à margem, como num sonho.


     Um ano antes da entrevista ao Le Monde, Fellini havia declarado ao La Repubblica (Roma 02.02.89) o seu fascínio pela atmosfera cigana, nômade, apesar de ter renegado sua verdadeira vocação — a de diretor de teatro de comédias de uma trupe mambembe, farsesca. Ele dizia que a única ambição de seus filmes era a de fazer rir: “Jamais me importei com atores do tipo Greta Garbo ou Gary Cooper ou Marlene Dietrich, com sua exaltação da sensualidade. As deusas e os deuses nunca me levaram ao cinema. Os comediantes, sim. O herói, a paixão amorosa, me são estranhos”.
       Fellini confessava que ria e se comovia às lagrimas com os atores cômicos. Com aquela condição clownesca, circense, do ator que leva um tombo e permanece dentro da tradição do cômico, para o qual a realidade é totalmente inimiga e lhe causa constantes e concretas dificuldades. E concluía: “Fazer pensar? Ah, não cabe a mim. Meu cinema não lhes parece uma arte de fazer rir?”.


 “O cinema é sonho”, afirmava Fellini. “A linguagem do sonho é a do cinema: aparições, desaparecimentos, elipses de tempo, dilatação do espaço. Por isso, gosto de Buñuel. Ele é o único cineasta que oferece um cinema que sonha por você”.
        Federico Fellini morreu em Roma em outubro do ano passado. Giulietta Masina não suportou sua ausência. Após 50 anos de casamento, também desapareceu do set e da vida em março último. “E agora?”. Esta parece ser a eterna pergunta de um fazedor de sonhos, melhor ainda que Buñuel. Nas mãos, o papel em branco e um atônito percevejo. Giulietta representava na verdade a soma de todas as imagens que povoavam o painel verde de Federico. Figuras que se desvanecem no fim de um fade.

Ronaldo Werneck
CCBB/Rio, 1994

Um comentário:

Unknown disse...

Já estava com saudades do seus textos criativos, que não só os leio como coleciono em meus arquivos de memórias cinematográficas...