30 de out. de 2024

O BRILHO DO BARRO: RITMO DOS ARTESÃOS

Texto que escrevi sobre a exposição “Nem o Verbo. Nem o Caos. O inicio foi o barro”, lido na abertura do evento no Centro Cultural Humberto Mauro em 11/10/2024.



     “De onde é que vem o baião/ Vem debaixo do barro do chão/ De onde vêm a esperança, a sustança/ Vêm debaixo do barro do chão”. Ao escrever esse “baião” Gilberto Gil talvez tenha se inspirado no “barro do chão” moldado pelas mãos do pernambucano Vitalino, mestre dos mestres dos ceramistas. Caso acontecesse na cidade de Recreio, poderíamos adaptar o baião de Gil para uma toda bem mineira: “De onde vem essa toada/ Vem do barro, terra molhada./ De onde vem essa sustança/ De onde vem essa esperança/ De onde vem essa toada/ Vem do barro, terra molhada”.

É exatamente daí – da terra molhada que se faz barro, do barro que se faz cerâmica, da cerâmica que se faz arte, moldada por mãos de mestres – que vem o escopo desta exposição intitulada Nem o verbo, nem o caos: o princípio foi o barro. A mostra tem curadoria de Teka (Maria Thereza) Werneck, historiadora e Mestre em Patrimônio Cultural, a partir de pesquisa apresentada na Universidade Federal de Viçosa sobre os saberes tradicionais das cerâmicas de Recreio. Ela é ilustrada principalmente pelas imagens flagradas por sua irmã, Nevinha Werneck, que a acompanhou durante todo o trabalho de campo. Exibe ainda um documentário realizado pelo cineasta Pedro Chaves, natural de Recreio, além de alguns trabalhos exemplares dos ceramistas da cidade. 

As irmãs Nevinha e Teka Werneck e o cineasta Pedro Chaves com o avô 
Joaquim Donato, o mais famoso ceramista de Recreio.

Segundo a Curadora, foram vários encontros, palestras e visitas às olarias locais: “Um laço maior passou a me ligar a estes homens simples, com as roupas sujas de barro, donos de um saber cultural importante”. Esta aproximação com os ceramistas fez com que Teka pesquisasse mais a fundo “a construção da identidade cultural dos viventes de Recreio, através dos saberes tradicionais dos artífices”. 

Nevinha Werneck acompanhou a irmã Teka durante anos, fazendo o registro fotográfico objeto desta exposição. A paixão pela imagem começou bem cedo em sua vida, e já aos oito anos trocava a bicicleta ganha no Natal por uma pequena máquina fotográfica. Raras vezes a vemos hoje sem sua câmera a tiracolo. Em suas palavras, ela utiliza-se do olhar “como busca de uma luz para compreensão das imagens, para uma inclusão visual nas mais variadas manifestações culturais e patrimoniais”.

Sob a óptica de Nevinha, encontra-se aqui um belo apanhado antropológico de imagens do fazer ancestral desses exímios artífices do barro. Desses artesãos que tornam Recreio um centro por excelência da produção de cerâmica na Zona da Mata de Minas. Cerâmica que se faz arte, verdadeiras obras de arte como se vê por alguns trabalhos aqui expostos.


A terra, a água, o fogo. O brilho imantado dessas fotografias, sua textura, sua cor que  salta do ocre do barro e nos encanta. O barro delineado pelos dedos desses artesãos e perpetuado pelo cozimento, gerando essas peças finas. Barro que eles manipulam e moldam com mãos de mestre. Um dia perguntaram a Vitalino como é que ele fazia essas coisas, essas obras de arte, essas coisas lindas, essas formas tão harmoniosas. “É tão simples, disse o Mestre: é só entrar no ritmo”. Ritmar o barro era seu lema, seu ofício.  E é aí que ele se alçava de mero artesão à condição de verdadeiro artista. Exatamente como esses grandes artífices, esses mestres da arte da cerâmica de Recreio. De Recreio, sim – mas olha que eles não brincam em serviço.

 


Ronaldo Werneck

Cataguases, outubro 2024 


3 comentários:

Anônimo disse...

Texto brilhante escrito com maestria por um poeta que capta as bonitezas da vida.

http://nevinhawerneck.blogspot.com/ disse...

Texto sensível que nos faz chorar ...

Anônimo disse...

Solo tú Ronaldo con tu fina sensibilidad eres capaz de captar con tanta certeza. 💜