MORRE MARINA,
“GRANDE ESCRITORA”
Os contos de fadas não têm fadas.
Um outro olhar da poesia: dois e dois são cinco.
Acordei ontem com a notícia da
morte de minha amiga Marina Colasanti (Asmara, 26.09.1937 – Rio, 28.01.2025). Artista
plástica, escritora, jornalista, poeta, tradutora e contista nascida na
Eritréia, leste da África, a “carioca” Marina Colasanti esteve no Centro
Cultural Humberto Mauro aqui em Cataguases há mais de vinte anos, no dia 16 de
junho de 2004, para uma palestra agendada pelo Projeto TIM/Estado de Minas –
Grandes Escritores. O Projeto levava renomados escritores às comunidades do
interior mineiro e tinha como proposta aproximar escritores-leitores. Ao falar
sobre sua obra e experiência, o autor estimulava o público a abrir caminho para
o aprendizado e o conhecimento por meio do livro. Eu acompanhei minha amiga Marina
quando de sua estada em Cataguases. A seguir, impressões do nosso reencontro e
um bate-papo com a escritora.
Em Cataguases nos anos 70
Marina nos anos 70, quando veio para o Festival em Cataguases
“O desenho do Projeto Tim/Estado de Minas-Grandes Escritores é uma conversa. Chama-se,inclusive, no caso, ‘Conversa com Marina’. A intenção do Projeto não é trazer um produto pronto, mas tornar o escritor acessível ao público, justamente para conversar, responder perguntas, para debater, uma coisa bem fraterna”. E por aí foi ela começando pelo começo que é onde se começa quando não se tem medo do avesso.
“Eu vim a Cataguases pela
primeira vez trazida por Ronaldo Werneck, em 1970, pro Festival de Música. Eu
vim pro júri, vim com o Affonso, nós não éramos nem casados, estávamos
começando a namorar. E viemos pro Festival, há trinta anos ou mais. Cataguases
era outra cidade, vai ver que eu também era outra pessoa. Éramos todos (e os
olhos de Marina sorriem, ardósia e cumplicidade) outras pessoas, né?
É quando alguém pergunta “Sobre o Amor”, um de seus títulos e tema recorrente na escritora, se o amor ainda a inspira muito. “Olha, eu espero que o amor seja um componente constante de minha vida e não apenas uma fonte de inspiração profissional. A gente deveria perguntar isso aos meus amigos, à minha família, né? Se isso acontece ou não. Mas em matéria de trabalho, não sei se a gente chama isso de inspiração ou não, de lá pra cá trabalhei muito, publiquei muitos livros, abri caminhos novos pra mim, porque naquela época não fazia poesia e este ano está saindo meu terceiro livro de poesia... abri novos rumos profissionais pra mim, novas portas.
“O amor é sempre muito importante. Já a poesia foi uma coisa curiosa. Eu sempre fui uma leitora de poesia. Sempre. A vida inteira, desde garota. Uma das coisas que me levou a investigar Affonso era o poeta (risos). Eu me surpreendi muito com a qualidade da poesia dele, quando ele me apresentou. Mas eu tinha uma postura muito reverencial em relação à poesia, exatamente porque eu a amava tanto. Eu nem ousava pensar nisso. Tinha feito (poesia) quando garota, como todo mundo, mas não pensava em fazer poesia. Eu acho que ela aconteceu pra mim quando eu estava pronta. Eu não fiz ensaios para a minha poesia, quando entrei nela ela já era o que tinha de ser, para o bem ou para o mal. Não estou fazendo juízo de valores. Estou dizendo como aconteceu. Aí, eu saí pra fazer o primeiro livro. Eu comecei e pronto. Não sei em que momento exato”.
A vida assoberbada
Ronaldo Werneck – Havia uma linha nesse primeiro
livro, ou eram poemas que foram reunidos, formando um livro?
Marina Colasanti – É, ele não tinha uma ossatura
temática, como o segundo livro. No
segundo livro de poemas eu trabalhei com um tema muito pouco palatável, e
estava consciente disso, que é a decapitação, a cabeça cortada, essa coisa
humana de cortar as cabeças. Tanto que ele se chama Gargantas Abertas. O
primeiro, não. Eu fui trabalhando, fazendo poemas, e fiz o livro. O terceiro
também não é temático. Sai agora este ano, chama-se Fino Sangue. Eu acho que eu
tenho temas recorrentes que aparecem na poesia, aparece o mesmo tema nos
contos, nos contos de fada. Eu retomo o mesmo tema nos vários gêneros.
RW – Acontece com todo mundo. A
gente está sempre reescrevendo, mesmo fazendo contos ou poemas...
MC – Muitas vezes não aparece quando a pessoa é só poeta. Ou quando é só ficcionista. Quando trabalha só com um gênero. Mas para quem trabalha em vários gêneros isso é flagrante.
RW – Mas eu falo não é só nesse
sentido, não. É quando você está reescrevendo sempre a mesma coisa,
retrabalhando sempre o mesmo livro. Lembro do Murilo Rubião, naquele livro que ele reescreveu a vida inteira (“O
Pirotécnico Zacarias”), aquele cuidado do Murilo em reescrever durante 30 anos
os mesmo seis contos.
MC – É, eu gosto muito do Murilo. É um livro maravilhoso, tinha a história da mulher que comia, comia, queria a lua e ele vai buscar para ela. É fantástico, eu gosto muito do Murilo. Mas, eu não. Eu burilo só até um certo ponto. Até mesmo porque eu me imponho tarefas. Não tem ninguém me cobrando nada, né? Esse ano eu vou escrever um livro assim... isso porque, como eu trabalho em vários gêneros, eu tenho que operar neles todos, senão fica um buraco muito grande. Então, chega um momento em que eu digo: não, agora está na hora de fazer... contos de fada, há muitos anos que não faço contos de fada. Então, estabeleço. Vou fazer um livro de contos de fada, é minha tarefa desse ano. Esse ano vou trabalhar em poesia. Eu imponho, porque, como a vida, ao contrário do que eu pensava... eu pensava que ela fosse ficando mais mansa e me deixando mais tempo folgada pra escrever... mas é ao contrário, a vida vai ficando cada vez mais assoberbada, porque primeiro a gente tem mais solicitações profissionais externas; segundo, a gente tem que administrar a profissão, falar com o agente, falar com o editor, publica uma coisa, tira outra, enfim, administrar a vida, eu não tenho ninguém que faça pra mim, a vida vai ficando com pouco tempo disponível. Se eu não estabelecer como uma tarefa, eu não faço. E eu nunca trabalhei... como eu trabalho com texto curto, eu poderia ter aquela coisa de “hoje escrevo um conto e guardo, amanhã escrevo um poema e guardo, depois de amanhã escrevo um miniconto e guardo”... e depois vou juntando esse material todo e faço um livro. Eu não trabalho assim, eu trabalho como se estivesse escrevendo um romance...
RW – Tem um fio...
RW – Você escreve independente da inspiração?
Baixa o Espírito Santo
MC – Ela tem essa posição. É muito ligada à religião. Então, isso seria justamente o Espírito Santo, como eu disse. Você pode botar o nome... Santa Bárbara... Mas é o Espírito Santo. OK. Eu não trabalho assim. Ou seja, a inspiração é uma coisa... cada escritor trabalha de um jeito, seja dito isso. Você, Ronaldo, pode ser que trabalhe de forma totalmente diferente... a inspiração é uma coisa que você provoca ou propicia, você se coloca num estado de abertura para dialogar com seu inconsciente e utilizar o material que aflora. Teoricamente, é isso que acontece. Dependendo da coisa que eu faço, eu preciso mais ou menos de conexão com o inconsciente. Por exemplo, se eu for fazer um ensaio, um livro de ensaios, eu preciso menos do inconsciente, porque eu vou trabalhar fundamentada, vou trabalhar com pesquisa, com bibliografia, com dados. Então, preciso menos de convocar o inconsciente. Mas se vou trabalhar com poesia, por exemplo, ou com ficção, eu preciso estabelecer esse diálogo. Dependendo, se eu for trabalhar com contos de fada é só esse diálogo. A razão tem que ser jogada fora. A razão tem que tomar férias lá longe e não me aborrecer, porque os contos de fada não podem ter interferência da razão...
MC – Do imaginário. Você tem que dar um “click”. É uma descarga que você dá no imaginário e bota pra funcionar. E ele funciona e você recolhe. Ou ele tá preguiçoso e não funciona e não te dá troco. Às vezes, você fica um mês com uma idéia que não se concretiza. Você ligou o start e o carro... engasga. Você tenta de novo e ele afoga. Um dia, você está pensando em outra coisa, está dirigindo o carro, andando na beira da praia pra fazer exercício e estala a sua cabeça: ele entrou. Ele entra como um e-mail em seu computador. Ele entra e aí você tem que sair correndo, anota em qualquer pedaço de papel e tal, dá uma euforia desgraçada, é muita adrenalina, os contos de fada jogam uma adrenalina na minha alma, uma coisa, uma coisa, eu tenho que sair, respirar fundo...
MC – É. Mais forte. Sabe por quê? O poema... eu gosto de uma poesia que chamo de “poesia de ideias”, uma forma presunçosa de me referir a isso, mas o quero dizer é que não gosto de poesia só forma, não gosto de poesia só lírica. Eu gosto de poesia. Claro que todo mundo comete um ou outro poema lírico ou formal, mas eu gosto de uma poesia que diga alguma coisa, que tenha um outro olhar. Está bom. Eu estou olhando aquela palmeira, mas não basta só aquela palmeira, tem que ter uma outra coisa qualquer, uma outra visão... dois e dois são cinco... você tem que somar dois elementos e obter um terceiro. Então, essa poesia vem atrelada à razão. Ela é uma poesia de razão. Não pode ser só de emoção. Já os contos de fada, não. Pura emoção.
Não há fadas nas Mil e Uma Noites
O ARROZ DOCE DO HOTEL
& O IDÍLIO EM CATAGUASES
“Inspiração é coisa que você
provoca ou propicia: você se coloca num estado de abertura para dialogar com
seu inconsciente e utilizar o material que aflora”. Quem me fala assim,
inspirada pelo arroz doce, é Marina Colasanti. O doce de arroz doce do Hotel
Cataguases, que só se deve comer em transe de branda meditação. E, como Vinicius,
de joelhos e pensando – no máximo! – na mulher amada.
Estamos sentados na, vamos dizer,
pérgola da piscina do Hotel Cataguases, e Marina veio para uma palestra no
Centro Cultural Humberto Mauro, dentro do Projeto Tim/Estado de Minas - Grandes
Escritores. Há muito não nos víamos, mas os olhos – de ardósia! Não: um semitom
verde-azul, pautado pela claridade – mantêm-se plácidos e contemplativos,
ativados num átimo por um bravo solzinho de outono chegado a fim-de-tarde em
Cataguases. Ela se lembra do hotel e voltamos velozes aos anos 70.
Foi então, exatos 34 anos atrás, que estive com o poeta Affonso Romano de SantAnna na velha sede do Jornal do Brasil, na Avenida Rio Branco. Já meu conhecido, o poeta trabalhava na área internacional e aceitou de imediato o convite para compor o júri do Festival Audiovisual de Cataguases, que eu estava organizando junto com o poeta Joaquim Branco. Mais ainda: pediu que eu convidasse também Marina Colasanti, do caderno B. Já em Cataguases, noite da abertura, estava eu a tomar meu banho, quando Affonso e Marina adentraram a casa da Dr. Sobral, perdidos na “cidade grande”. Enquanto o poeta, este, saía do banho de saturday night, o outro poeta e sua partner tomaram um uísque com papai Hisbelo, que era noite de festa. Levei-os depois ao Hotel Cataguases, mas acho que não deu tempo pro arroz doce: o Festival nos chamava.
Estive pouco com Marina ao longo
das últimas décadas. Algumas vezes em Ipanema, na casa dela e do poeta,
geralmente levado por algum compromisso com Affonso, de quem me tornei amigo.
Nunca mais falamos do Festival de 70.
Agora, assim que a reencontrei no hall do hotel, a primeira coisa de que
se lembrou foi daquela “cantora altíssima e fantástica”. Quem, Marina? Não é
que era a nossa Maria Alcina? Comecei a duvidar de sua memória. Fantástica,
sim; mas “altíssima”, a Alcina? Mas logo Marina entrou em detalhes que nem
mesmo eu me recordava. Descreveu a sala da casa da Dr. Sobral como se lá
estivéssemos ainda agora – e foi ela quem se lembrou do banho do poeta, este. E
depois, romântica: “estávamos em início de namoro, início mesmo: nunca mais me
esqueci de Cataguases. Nem Affonso”.
E já do inconsciente o arroz doce aflora e Marina assume seu jeito Colasanti de ser: “dependendo do que faço, preciso de mais ou menos conexão com o inconsciente. Ao escrever um ensaio trabalho fundamentada, com a razão, e convoco menos o inconsciente. Mas se faço poesia ou ficção, preciso estabelecer esse diálogo. Se for trabalhar com contos de fada, então, é só esse diálogo. A razão tem que ser jogada fora. A razão tem que tomar férias lá longe e não me aborrecer, porque os contos de fada não podem ter interferência da razão. Suplico a mim mesma a abertura do inconsciente para que aflore aquilo conhecido como inspiração, ou o que seja. É uma descarga que você dá no imaginário e bota pra funcionar. E quando ele funciona, dá uma euforia danada, é muita adrenalina, Os contos de fada jogam uma adrenalina na minha alma, uma coisa, uma coisa, eu tenho que sair, respirar fundo”.
Marina é agora entrevistada por
Vera Maciel, pro jornal “Cataguases”, e lá pelas tantas me cita, entre
sorrisos: “Os contos de fada não têm fadas. Se você pega as “Mil e Uma Noites”,
não há fadas. Há gênios, há entidades. O conto de fada tem que estar fora do
tempo. Quer dizer, fora do tempo real, e em localidade não existente, um lugar
imaginário, no alto de um montanha, à beira de um rio. Você não está em Paris,
ou em Cataguases. Isso pra dizer de duas cidades-irmãs, como dizia ainda há
pouco o Ronaldo. Porque Cataguases é a Paris da Zona da Mata, ou alguém
duvida?”. Dou um sorriso e de repente penso o que jamais ousaria dizer. Mas
como não sou lá de dizer – só de acá escrever – então vem cá, Luísa, me
exorcisa. Ou vá lá, Marina, me contamina. No princípio, era Cataguases. Ou o
arroz doce. O mundo veio depois.
Ronaldo Werneck
Jornal Cataguases
27.06.2004
In Há Controvérsias 2/ 2011
Um comentário:
Adorei, poeta - vc sempre brilhante!
Postar um comentário