29 de jan. de 2025

 MORRE MARINA,

“GRANDE ESCRITORA”

Os contos de fadas não têm fadas. 

Um outro olhar da poesia: dois e dois são cinco.


Acordei ontem com a notícia da morte de minha amiga Marina Colasanti (Asmara, 26.09.1937 – Rio, 28.01.2025). Artista plástica, escritora, jornalista, poeta, tradutora e contista nascida na Eritréia, leste da África, a “carioca” Marina Colasanti esteve no Centro Cultural Humberto Mauro aqui em Cataguases há mais de vinte anos, no dia 16 de junho de 2004, para uma palestra agendada pelo Projeto TIM/Estado de Minas – Grandes Escritores. O Projeto levava renomados escritores às comunidades do interior mineiro e tinha como proposta aproximar escritores-leitores. Ao falar sobre sua obra e experiência, o autor estimulava o público a abrir caminho para o aprendizado e o conhecimento por meio do livro. Eu acompanhei minha amiga Marina quando de sua estada em Cataguases. A seguir, impressões do nosso reencontro e um bate-papo com a escritora. 


Em Cataguases nos anos 70

Marina nos anos 70, quando veio para o Festival em Cataguases

          Marina Colasanti veio a Cataguases há cerca de trinta anos, atendendo a um convite que lhe fiz em 1970 para participar do júri do Festival Audiovisual. Colegas de redação no Jornal do Brasil, ela e o poeta Affonso Romano de Sant´Anna ensaiavam “ficar”, como se diz agora. Mal sabiam que namoro em Cataguases é pra sempre: estão casados até hoje. Almoço com Marina no mesmo hotel onde se deu o chamado idílio, palavra certa entre poetas. Passeio com Marina pelas ruas e praças da cidade e a conduzo para ver uma Cataguases que não conheceu da primeira vez, levada pelos compromissos de jurada, enlevada pelos colóquios de mulher amada.
Tudo em Marina é charme e simpatia. Inteligência e sensibilidade. À noite, quando a recebo no palco do Centro Cultural Humberto Mauro para sua palestra, ela brinca com meus suspensórios vermelhos: “estamos fazendo pendant”. Bobagem, Marina, como competir, como “fazer pendant”, com a vermelha elegância de seu casaco, com o desprendimento, a non-chalance com que você se sentou na mesa – e não à mesa, mas em cima da própria – deixando atrás de si no palco a mim e a uma cadeira vazia, ambos atônitos e fascinados? A mim, à cadeira e ao público: tudo e todos maravilhados com sua elegância, seus gestos, suas palavras. 

“O desenho do Projeto Tim/Estado de Minas-Grandes Escritores é uma conversa. Chama-se,inclusive, no caso, ‘Conversa com Marina’. A intenção do Projeto não é trazer um produto pronto, mas tornar o escritor acessível ao público, justamente para conversar, responder perguntas, para debater, uma coisa bem fraterna”. E por aí foi ela começando pelo começo que é onde se começa quando não se tem medo do avesso.

“Eu vim a Cataguases pela primeira vez trazida por Ronaldo Werneck, em 1970, pro Festival de Música. Eu vim pro júri, vim com o Affonso, nós não éramos nem casados, estávamos começando a namorar. E viemos pro Festival, há trinta anos ou mais. Cataguases era outra cidade, vai ver que eu também era outra pessoa. Éramos todos (e os olhos de Marina sorriem, ardósia e cumplicidade) outras pessoas, né?

É quando alguém pergunta “Sobre o Amor”, um de seus títulos e tema recorrente na escritora, se o amor ainda a inspira muito. “Olha, eu espero que o amor seja um componente constante de minha vida e não apenas uma fonte de inspiração profissional. A gente deveria perguntar isso aos meus amigos, à minha família, né? Se isso acontece ou não. Mas em matéria de trabalho, não sei se a gente chama isso de inspiração ou não, de lá pra cá trabalhei muito, publiquei muitos livros, abri caminhos novos pra mim, porque naquela época não fazia poesia e este ano está saindo meu terceiro livro de poesia... abri novos rumos profissionais pra mim, novas portas. 

“O amor é sempre muito importante. Já a poesia foi uma coisa curiosa. Eu sempre fui uma leitora de poesia. Sempre. A vida inteira, desde garota. Uma das coisas que me levou a investigar Affonso era o poeta (risos). Eu me surpreendi muito com a qualidade da poesia dele, quando ele me apresentou. Mas eu tinha uma postura muito reverencial em relação à poesia, exatamente porque eu a amava tanto. Eu nem ousava pensar nisso. Tinha feito (poesia) quando garota, como todo mundo, mas não pensava em fazer poesia. Eu acho que ela aconteceu pra mim quando eu estava pronta. Eu não fiz ensaios para a minha poesia, quando entrei nela ela já era o que tinha de ser, para o bem ou para o mal. Não estou fazendo juízo de valores. Estou dizendo como aconteceu. Aí, eu saí pra fazer o primeiro livro. Eu comecei e pronto. Não sei em que momento exato”.


 A vida assoberbada

      

Ronaldo Werneck – Havia uma linha nesse primeiro livro, ou eram poemas que foram reunidos, formando um livro?

Marina Colasanti – É, ele não tinha uma ossatura temática, como o segundo livro.  No segundo livro de poemas eu trabalhei com um tema muito pouco palatável, e estava consciente disso, que é a decapitação, a cabeça cortada, essa coisa humana de cortar as cabeças. Tanto que ele se chama Gargantas Abertas. O primeiro, não. Eu fui trabalhando, fazendo poemas, e fiz o livro. O terceiro também não é temático. Sai agora este ano, chama-se Fino Sangue. Eu acho que eu tenho temas recorrentes que aparecem na poesia, aparece o mesmo tema nos contos, nos contos de fada. Eu retomo o mesmo tema nos vários gêneros.

RW – Acontece com todo mundo. A gente está sempre reescrevendo, mesmo fazendo contos ou poemas...

MC – Muitas vezes não aparece quando a pessoa é só poeta. Ou quando é só ficcionista. Quando trabalha só com um gênero. Mas para quem trabalha em vários gêneros isso é flagrante.

RW Mas eu falo não é só nesse sentido, não. É quando você está reescrevendo sempre a mesma coisa, retrabalhando sempre o mesmo livro. Lembro do Murilo Rubião, naquele livro  que ele reescreveu a vida inteira (“O Pirotécnico Zacarias”), aquele cuidado do Murilo em reescrever durante 30 anos os mesmo seis contos.

MC – É, eu gosto muito do Murilo. É um livro maravilhoso, tinha a história da mulher que comia, comia, queria a lua e ele vai buscar para ela. É fantástico, eu gosto muito do Murilo. Mas, eu não. Eu burilo só até um certo ponto. Até mesmo porque eu me imponho tarefas. Não tem ninguém me cobrando nada, né? Esse ano eu vou escrever um livro assim... isso porque, como eu trabalho em vários gêneros, eu tenho que operar neles todos, senão fica um buraco muito grande. Então, chega um momento em que eu digo: não, agora está na hora de fazer... contos de fada, há muitos anos que não faço contos de fada. Então, estabeleço. Vou fazer um livro de contos de fada, é minha tarefa desse ano. Esse ano vou trabalhar em poesia. Eu imponho, porque, como a vida, ao contrário do que eu pensava... eu pensava que ela fosse ficando mais mansa e me deixando mais tempo folgada pra escrever... mas é ao contrário, a vida vai ficando cada vez mais assoberbada, porque primeiro a gente tem mais solicitações  profissionais externas; segundo, a gente tem que administrar a profissão, falar com o agente, falar com o editor, publica uma coisa, tira outra, enfim, administrar a vida, eu não tenho ninguém que faça pra mim, a vida vai ficando com pouco tempo disponível. Se eu não estabelecer como uma tarefa, eu não faço. E eu nunca trabalhei... como eu trabalho com texto curto, eu poderia ter aquela coisa de “hoje escrevo um conto e guardo, amanhã escrevo um poema e guardo, depois de amanhã escrevo um miniconto e guardo”... e depois vou juntando esse material todo e faço um livro. Eu não trabalho assim, eu trabalho como se estivesse escrevendo um romance...

RW – Tem um fio...

MC – É. Eu sento... os livros de minicontos, os três, são temáticos, eu sento e vou fazer aquele livro, começo e fim. Eu tenho anotações pra ele, numa gaveta, numa caixa, eu vou... tenho uma ideia, parece que isso dá uma coisa, anoto, jogo na caixa e  esqueço... quando vou trabalhar no livro, abro a caixa e vou recolher aquilo que eu já preparei... escrevo em cima “conto”, “miniconto”, só pra eu saber quando eu for mexer na caixa.  E aí eu sento e é um projeto fechado. Só paro quando eu acabar.

RW Você já procurou dar nome a essa caixa? Pois é uma caixa fantástica, né?

MC – (Risos)... não. “Querida”.

RW Pois é, é uma “caixa básica”, né? (risos)

MC(Risos)... é uma caixa básica, né? (risos). Tudo ali...

RW Você escreve independente da inspiração? 


Baixa o Espírito Santo

MC – É, eu fico tentada a dizer que a questão da inspiração, como as pessoas pensam, é um mito romântico, não é? Baixa igual Espírito Santo. O pombo desce, pousa na sua cabeça e você... mas não posso dizer isso porque de fato há escritores que trabalham assim. Adélia Prado sempre disse que ela trabalha assim, que está na cozinha fazendo o feijão e, pum!, cai o poema pronto na alma dela, ou sai da alma dela pronto.

RW Mas Adélia fala com Deus, né? (risos) Ela me falou isso uma vez, e eu disse ‘Adélia, não acredito’... e ela: ‘ Não? Deus me deu esse poema, Ronaldo! Simplesmente escrevi, mas esse poema me foi dado’... Bem, pensei eu cá, com meus botões: ‘assim não dá, né mesmo?’.

MC – Deus entra em faixa de risco...

RW É, entra em sintonia total... eu disse: ‘Adélia, esse trânsito com as esferas’  ...

MC – Ela tem essa posição. É muito ligada à religião. Então, isso seria justamente o Espírito Santo, como eu disse. Você pode botar o nome... Santa Bárbara... Mas é o  Espírito Santo. OK. Eu não trabalho assim. Ou seja, a inspiração é uma coisa... cada escritor trabalha de um jeito, seja dito isso. Você, Ronaldo, pode ser que trabalhe de forma totalmente diferente... a inspiração é uma coisa que você provoca ou propicia, você se coloca num estado de abertura para dialogar com seu inconsciente e utilizar o material que aflora. Teoricamente, é isso que acontece. Dependendo da  coisa que eu faço, eu preciso mais ou menos de conexão com o inconsciente. Por exemplo, se eu for fazer um ensaio, um livro de ensaios, eu preciso menos do inconsciente, porque eu vou trabalhar fundamentada, vou trabalhar com pesquisa, com bibliografia, com dados. Então, preciso menos de convocar o inconsciente. Mas se vou trabalhar com poesia, por exemplo, ou com ficção, eu preciso estabelecer esse diálogo. Dependendo, se eu for trabalhar com contos de fada é só esse diálogo. A razão tem que ser jogada fora. A razão tem que tomar férias lá longe e não me aborrecer, porque os contos de fada não podem ter interferência da razão...

RWTranscendem...

MC – Eles não funcionam assim. É a diferença entre contos de fada e contos com fada. Os contos de fada são outro produto. Dependendo do que eu vou trabalhar, é uma outra aproximação. Aquilo que você chama inspiração, nos contos de fada eu fico suplicando a mim mesma, a abertura do inconsciente, para que aflore, porque às vezes eu fico... ah, meu Deus!... nunca mais vou conseguir escrever conto de fada... então, esses você realmente tem que “receber”, porque você psicografa de uma certa maneira...

RW Do imaginário...

MC – Do imaginário. Você tem que dar um “click”. É uma descarga que você dá no imaginário e bota pra funcionar. E ele funciona e você recolhe. Ou ele tá preguiçoso e não funciona e não te dá troco. Às vezes, você fica um mês com uma idéia que não se concretiza. Você ligou o start e o carro... engasga. Você tenta de novo e ele afoga. Um dia, você está pensando em outra coisa, está dirigindo o carro, andando na beira da praia pra fazer exercício e estala a sua cabeça: ele entrou. Ele entra como um e-mail em seu computador. Ele entra e aí você tem que sair correndo, anota em qualquer pedaço de papel e tal, dá uma euforia desgraçada, é muita adrenalina, os contos de fada jogam uma adrenalina na minha alma, uma coisa, uma coisa, eu tenho que sair, respirar fundo...

RW Como um poema...  até mais forte?

MC – É. Mais forte. Sabe por quê? O poema... eu gosto de uma poesia que chamo de “poesia de ideias”, uma forma presunçosa de me referir a isso, mas o quero dizer é que não gosto de poesia só forma, não gosto de poesia só lírica. Eu gosto de poesia. Claro que todo mundo comete um ou outro poema lírico ou formal, mas eu gosto de uma poesia que diga alguma coisa, que tenha um outro olhar. Está bom. Eu estou olhando aquela palmeira, mas não basta só aquela palmeira, tem que ter uma outra coisa qualquer, uma outra visão... dois e dois são cinco... você tem que somar dois elementos e obter um terceiro. Então, essa poesia vem atrelada à razão. Ela é uma poesia de razão. Não pode ser só de emoção. Já os contos de fada, não. Pura emoção. 


Não há fadas nas Mil e Uma Noites

RW Você falou que “há contos de fada e contos com fada”. Como diria o Verissimo, “desenvolve!”.

MC(Risos) É, porque quando a gente diz “eu escrevo contos de fada”... Affonso já me falou várias vezes, “não diz contos de fada, diz que v. faz literatura fantástica”.  Mas eu considero uma traição ao gênero, que é um gênero... real. É um gênero de primeira grandeza e que foi sendo varrido pro quarto das crianças, indevidamente. Então, faço questão de dizer “contos de fada” e reforçar o que é o gênero. Quando você diz “eu faço conto de fada”, a pessoa acha que você conta a história da “menininha que tinha um gatinho não sei o quê, o gatinho ficou doente, um dia o gatinho miau-miau, eu sou uma fada, sou sua fada madrinha”. Isso não é nada, isso são continhos com fada, são uma porcariazinha destinada a criança. Às vezes, podem ser até bons. Mas, enfim. Isso é só pra criança mesmo. Já os contos de fada não têm fadas. Se você pega as “Mil e Uma Noites” não há fadas. Há gênios, há entidades. Entidades não são fadas, porque a fada ficou pra nós... ela originalmente é uma entidade, mas a nossa cultura estereotipou-as tanto, com aquele chapéu pontudo, com aquela estrela, e Disney acabou de destruir o que seriam as fadas, acabou de transformar num chiclete cor-de-rosa. Então, se você fala em conto de fada, a pessoa imediatamente pensa nessas criaturas horrorosas... e os contos de fada não têm essas criaturas. Eu nunca trabalhei com fadas. Não tem nenhuma. O conto de fada é uma narrativa de fundo mítico, de leituras infinitas, tem que funcionar para qualquer idade... estou dando os requisitos pra que um conto seja um conto de fada... ele tem que estar fora do tempo, quer dizer, fora do tempo real, e  em localidade não existente, um lugar imaginário, no alto de um montanha, à beira de um rio..  você não está em Paris... ou em Cataguases... pra dizer de duas cidades-irmãs...

­­RW Claro que são irmãs! (risos)

MC – (risos) Como você dizia ainda há pouco (Marina referia-se a uma brincadeira que eu fizera, dizendo ser Cataguases a “Paris da Zona da Mata”)... a Paris da Zona da Mata,  né? (risos) Então, o conto de fada é isso. E ele tem um conteúdo que é maravilhoso... eu tenho certeza de que faço conto de fada e não continhos com fadas, hoje, pelo seguinte: porque eles funcionam... eu acabei, com o tempo, com as pessoas trabalhando os contos... eles funcionam com os curumins, que nunca viram o rei, que nunca viram o castelo, que não sabem o que é uma princesa... eles funcionam com os curumins e funcionam com os meninos africanos de Moçambique. Eu sei por causa de arte-educadores que estiveram nos dois lugares e me disseram que têm um resultado esplendoroso com os contos. Acabei de receber um e-mail mês passado de Moçambique me dizendo isso, de um resultado esplendoroso, diferente, com os meus contos. E eu pensei... então é verdade. Então eles realmente são contos de fada. Porque num conto qualquer pra crianças, o rei é um rei. Mas num conto de fada, o rei é simbolicamente o poder maior. Só isso. As personagens são simbólicas, você está sempre falando simbolicamente, metaforicamente, e há um outro discurso denso que se faz por trás do conto...

 De inconsciente para inconsciente

RWUm subtexto?

MC – É. Como ele surge, imagino que seja isso, como ele surge diretamente do inconsciente, ele engancha no inconsciente do outro. O diálogo se estabelece por  trás, ou por baixo do conto, num outro nível, de inconsciente para inconsciente, então...

RW Houve um tempo, nos anos 80, em que se falava muito na teoria da estética da recepção, o tratamento era mais do leitor, de como a obra de arte era recebida... então é nesse  sentido que você quer dizer? Isto é, como é lido o meu conto? Quer dizer, ele tem assim vários tipos de leitura, depende do leitor para ser apreendido?

 MC – É, eu acho que cada leitor lê de um jeito. Não sei te dizer, mas há uma comunicação que acontece. Quando eu comecei a escrever esses contos foi uma teimosia minha muito grande, porque eu sabia que na época ia encontrar muita oposição. É a época em que se publicavam... lembra da editora... do “Menino e o Pinto do Menino”? Que foi feita em Belo Horizonte...

RW ... do Wander Pirolli...

MC – ... o que era aquilo? Aquilo era o resultado de um momento em que se dizia que tinha que se dar realidade para as crianças, que essas coisas dos contos de fada eram completamente ultrapassadas pela modernidade, que isso falava de tempos muito antigos, que as crianças queriam realidade. Então, veio uma onda de textos realistas para crianças, tanto que o Wander Pirolli chamou o Ignácio de Loyola, chamou o Torres (Antônio), não sei, chamou vários escritores da faixa adulta para escrever textos realistas para crianças. Então eu sabia que os meus contos não iriam encontrar solo fértil de jeito nenhum no mercado editorial. E de fato eles ficaram cinco anos sem ter editor. Quando eu dizia, “olha eu escrevo contos de fada”, o editor arrepiava. Dizia: “as professoras não vão gostar”; o outro me dizia: “eu não publico divertissement”. Eu nunca mais esqueci essa frase embora eu gostasse muito do editor, gosto até hoje, mas essa é uma frase de diversidade terrível e, ao cabo desses cinco anos, finalmente o livro foi editado e na época eu já tinha editor era uma... não tinha problemas nesta área, o livro foi editado e aí, para minha alegria, ganhou todos os prêmios possíveis.

 Essa Cataguases única


 Dias depois de nosso papo, recebo email de Marina: “Ronaldo querido, Affonso ainda não chegou, virá tarde hoje à noite, estou repassando tudo para o computador dele (eu mandara alguns textos, alguma coisa sobre Cataguases que ela me pedira). Obrigada pelo carinho e generosidade. Ainda bem que Cataguases gostou de mim, porque também gostei dela. E um beijo para Mônica (Botelho), fiquei entusiasmada com ela, com sua atividade, com o perfil que está imprimindo à cidade”. Dias depois, era Affonso Romano quem me escrevia: “Ronaldo, Marina voltou encantada de conhecer melhor essa parte viva, pulsante de Minas, essa Cataguases única”. Mas que nada, Affonso. Única é mesmo a Marina. Quer dizer, tem também aquela frota de ônibus, a Única, mas isso é outra história.

Ronaldo Werneck

Texto publicado em 2006

 na Revista Usina Cultural

Fundação Ormeo Junqueira Botelho


 O ARROZ DOCE DO HOTEL

& O IDÍLIO EM CATAGUASES

 


 

“Inspiração é coisa que você provoca ou propicia: você se coloca num estado de abertura para dialogar com seu inconsciente e utilizar o material que aflora”. Quem me fala assim, inspirada pelo arroz doce, é Marina Colasanti. O doce de arroz doce do Hotel Cataguases, que só se deve comer em transe de branda meditação. E, como Vinicius, de joelhos e pensando – no máximo! – na mulher amada.

Estamos sentados na, vamos dizer, pérgola da piscina do Hotel Cataguases, e Marina veio para uma palestra no Centro Cultural Humberto Mauro, dentro do Projeto Tim/Estado de Minas - Grandes Escritores. Há muito não nos víamos, mas os olhos – de ardósia! Não: um semitom verde-azul, pautado pela claridade – mantêm-se plácidos e contemplativos, ativados num átimo por um bravo solzinho de outono chegado a fim-de-tarde em Cataguases. Ela se lembra do hotel e voltamos velozes aos anos 70.

Foi então, exatos 34 anos atrás, que estive com o poeta Affonso Romano de SantAnna na velha sede do Jornal do Brasil, na Avenida Rio Branco. Já meu conhecido, o poeta trabalhava na área internacional e aceitou de imediato o convite para compor o júri do Festival Audiovisual de Cataguases, que eu estava organizando junto com o poeta Joaquim Branco.  Mais ainda: pediu que eu convidasse também Marina Colasanti, do caderno B. Já em Cataguases, noite da abertura, estava eu a tomar meu banho, quando Affonso e Marina adentraram a casa da Dr. Sobral, perdidos na “cidade grande”. Enquanto o poeta, este, saía do banho de saturday night, o outro poeta e sua partner tomaram um uísque com papai Hisbelo, que era noite de festa. Levei-os depois ao Hotel Cataguases, mas acho que não deu tempo pro arroz doce: o Festival nos chamava.

Estive pouco com Marina ao longo das últimas décadas. Algumas vezes em Ipanema, na casa dela e do poeta, geralmente levado por algum compromisso com Affonso, de quem me tornei amigo. Nunca mais falamos do Festival de 70.  Agora, assim que a reencontrei no hall do hotel, a primeira coisa de que se lembrou foi daquela “cantora altíssima e fantástica”. Quem, Marina? Não é que era a nossa Maria Alcina? Comecei a duvidar de sua memória. Fantástica, sim; mas “altíssima”, a Alcina? Mas logo Marina entrou em detalhes que nem mesmo eu me recordava. Descreveu a sala da casa da Dr. Sobral como se lá estivéssemos ainda agora – e foi ela quem se lembrou do banho do poeta, este. E depois, romântica: “estávamos em início de namoro, início mesmo: nunca mais me esqueci de Cataguases. Nem Affonso”.

E já do inconsciente o arroz doce aflora e Marina assume seu jeito Colasanti de ser: “dependendo do que faço, preciso de mais ou menos conexão com o inconsciente. Ao escrever um ensaio trabalho fundamentada, com a razão, e convoco menos o inconsciente. Mas se faço poesia ou ficção, preciso estabelecer esse diálogo. Se for trabalhar com contos de fada, então, é só esse diálogo. A razão tem que ser jogada fora. A razão tem que tomar férias lá longe e não me aborrecer, porque os contos de fada não podem ter interferência da razão. Suplico a mim mesma a abertura do inconsciente para que aflore aquilo conhecido como inspiração, ou o que seja. É uma descarga que você dá no imaginário e bota pra funcionar. E quando ele funciona, dá uma euforia danada, é muita adrenalina, Os contos de fada jogam uma adrenalina na minha alma, uma coisa, uma coisa, eu tenho que sair, respirar fundo”. 

Marina é agora entrevistada por Vera Maciel, pro jornal “Cataguases”, e lá pelas tantas me cita, entre sorrisos: “Os contos de fada não têm fadas. Se você pega as “Mil e Uma Noites”, não há fadas. Há gênios, há entidades. O conto de fada tem que estar fora do tempo. Quer dizer, fora do tempo real, e em localidade não existente, um lugar imaginário, no alto de um montanha, à beira de um rio. Você não está em Paris, ou em Cataguases. Isso pra dizer de duas cidades-irmãs, como dizia ainda há pouco o Ronaldo. Porque Cataguases é a Paris da Zona da Mata, ou alguém duvida?”. Dou um sorriso e de repente penso o que jamais ousaria dizer. Mas como não sou lá de dizer – só de acá escrever – então vem cá, Luísa, me exorcisa. Ou vá lá, Marina, me contamina. No princípio, era Cataguases. Ou o arroz doce. O mundo veio depois.

 

Ronaldo Werneck

Jornal Cataguases

27.06.2004

In Há Controvérsias 2/ 2011 

Um comentário:

Acir Vidal disse...

Adorei, poeta - vc sempre brilhante!