21 de mar. de 2018

Show do Chico 1: epifania & futebol


“Chico Buarque vive no tempo próprio da delicadeza, sem deixar de dar pernada a três por quatro se alguém lhe desafia, como diz em 'Partido Alto'. A música está presente no show Caravanas, baseado em seu disco mais recente, que inicia temporada em São Paulo” – dizia o texto “paulista” de divulgação do show do Chico. Foi quando o imponderável, repentino Tom Zé mandou um recado:
“Chico, ´Tua Cantiga´, que coisa! Chico, que Deus lhe abençoe! Quando Chico cantou essas canções parecia a voz dele quando era jovem. Parece um homem que depois de chegar aos 80 anos (não sei se ele tem 80 anos, eu tenho 81)... um homem quando chega aos 80 anos o Tai-Chi diz, a concepção oriental de vida diz que nasceu de novo, está começando tudo de novo. Novamente cantando como se fosse criança, capaz de se apaixonar. Ter visto esse renascimento seu, que coisa pra nossa vida, que bênção! Que maravilha!”.
Danuza Leão escreveu outro dia que estava certa vez tomando uma chá em Paris, no Flore (como, íntima que só ela, chama o famoso Café de Flore de Saint-Germain-des-Prés), quando lembrou-se de uma canção da Piaf e começou a “cantarolar em silêncio”, pra dentro de si – se é que me faço (ou ela me fez) entender. Ela estava “em êxtase”. Mas, pra quê! Logo sentiu que rolavam insistentes lágrimas por suas faces. E percebeu que eram lágrimas de alegria, um momento único. Uma amiga lhe disse depois que ela havia tido uma epifania.  Danuza foi então ao dicionário procurar por epifania. Se vocês não sabem o que é, sugiro fazerem o mesmo. De certa forma, foi o que aconteceu comigo em janeiro ao ver no Rio o show Caravanas.
Um alumbramento, diria Manuel Bandeira. Mas existem também alumbrados outros, como o sujeito que confessou (è vero!) ter visto Chico Buarque em Paris, sentado numa mesa do Café de Flore. Ele estava numa mesa atrás daquela do Chico e ficou ali de vigia até que seu ídolo foi embora. O cidadão levantou-se de um jato e sentou-se na cadeira que o Chico ocupava. “Só pra sentir o quentinho do Chico”, como declarou depois. Haja!

Nunca cheguei a tanto, mesmo porque nas raras vezes em que estive em Paris, e algumas no “Flore” (olha a intimidade aí!), jamais vi o Chico sentado em uma de suas mesas (quem sabe um dia?). Mas me orgulho de um autógrafo que recebi dele em 1990, no livro “Letra e Música 1”, organizado pelo escritor Humberto Werneck (que me chama de “primo rico”, ora vejam só!). Na época, andei agarrando no gol do time do Chico, o Politheama, daí o porquê do autógrafo: “Para o grande poeta e goal-keeper Ronaldo Werneck, um grande abraço do center-forward Chico Buarque”. 


Comunhão & castigo
Chico estudou como interno no Colégio Cataguases durante o segundo semestre de 1959, mas me lembro muito pouco dele nessa época, pois éramos de turmas diferentes: ele estava no quarto ano do ginásio e eu já no primeiro científico. E Chico também não tem lá muitas lembranças daquele tempo em Cataguases, mesmo porque veio para cá de castigo. Como escreve Humberto Werneck, um pouco antes Chico e seu amigo Joaquim de Alcântara Machado embarcaram num movimento religioso, os Ultramontanos, que viviam ancorados na Idade Média e anunciavam para já o Juízo Final, quando a espada justiceira dos anjos do Senhor não pouparia mais que uns poucos eleitos. Para merecer ingresso nessa reduzida elite de sobreviventes, Chico e seus colegas puseram-se a comungar desenfreadamente.
Nas férias de julho de 1959, passadas na fazenda dos Alcântara Machado, os dois amigos empreendiam caminhadas de oito quilômetros, verdadeira peregrinação, para assistir à missa – todos os dias. Alarmados, os pais acharam que já era demais tamanha santidade. Os de Chico foram buscá-lo e o despacharam para o internato em Cataguases. É possível avaliar a irritação que tomava conta de sua mãe, dona Maria Amélia, ao preencher a ficha de inscrição do filho no Colégio: “De modo geral: influenciabilidade – desordem – faroleiro. Nas circunstâncias atuais: falta de solidariedade humana. Desinteresse pelas ocupações próprias do estado e da idade”.
Mas em Cataguases o aluno Chico Buarque iria logo se destacar. Havia no pátio do Colégio um quadro de honra onde eram colocados no final de cada mês os nomes dos alunos com as melhores notas. Nunca o nome de um interno surgiu ali. Até que um dia um tal de Francisco Buarque de Hollanda apareceu em primeiro lugar entre todos os alunos do Colégio. Lembro que eu estava olhando o quadro de honra, rodeado por um bando de alunos curiosos. Foi quando um deles soltou sua máxima: “Também, pudera, o cara é filho do homem do dicionário!”. Contei isso pro Chico quando voltávamos de um jogo do Politheama. Ele estava dirigindo e quase bateu com o carro de tanto rir. Na verdade, seu pai, o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, não tinha nenhum parentesco com o “homem do dicionário”, o filólogo Aurélio Buarque de Holanda.


Footing & futebol
Ainda em Cataguases, sob o pseudônimo “Bananal”, Chico escreveu crônicas para o jornalzinho O Pirilampo, “que não guardou”, segundo Humberto Werneck. Mas eu consegui uma coleção do Pirilampo com seu editor, Eduardo Lunardelli, e cheguei mesmo a publicar algumas dessas crônicas do Chico (autorizadas por ele) na edição especial sobre Cataguases que organizei em 2013 para o Suplemento Literário Minas Gerais.   Naquela época do Colégio, como nós todos, também Chico fazia o footing nos fins de semana na Praça Rui Barbosa   é possivel que tenha visto a Banda do maestro Rogério Teixeira desfilar pela cidade. E não perdia jogo do Flamenguinho, onde nosso colega, o também interno Alfredo Napoleão, enfiava sucessivos gols no “Operal, Campeão local”, o meu pobre Operário Futebol Clube. “Mui modestamente”, é claro, foi no juvenil do Operal que eu “despontei” para a minha esporádica carreira de goal-keeper, finalizada décadas depois num fatídico jogo do Politheama do Chico.
 Meu contato com o Chico nos anos 1990 foi em face do futebol. E deveu-se ao meu querido amigo, o compositor Carlinhos Vergueiro, médio-apoiador e um dos destaques do Politheama, ao lado do Vinicius França, empresário do Chico, que nasceu aqui do lado, em Leopoldina. Foi Carlinhos quem me indicou como goleiro do Politheama. “Ali está o goal-keeper, fazendo cinema”, disse um dia o também goal-keeper Ary Barroso, que atuava portando impávido seus óculos – e não sei como conseguia enxergar aqueles cocos chutados do coqueiro que dava os próprios.
E foi “fazendo cinema” que eu defendi um dia um potente tirambaço num dos jogos do Politheama. Mas quebrei duas costelas naquela “magnífica ponte”, o que só percebi quando cheguei em casa: o corpo quente escondera a dor. Dias depois, num show do Carlinhos Vergueiro, eu estava em uma mesa com uma amiga quando alguém bateu às minhas costas: “E aí, você não aparece mais no Politheama?”. Era o Chico, o próprio. Minha amiga falou depois, com cara de espanto: “Ronaldo, o Chico Buarque levantou da mesa dele só pra vir falar com você!”. Foi quando disse pra ela que aquele não era o Chico Buarque que ela pensava, o compositor. Quem veio falar comigo foi o center-forward Chico Buarque.  


Apoteose




“O show do Chico tem sido uma apoteose atrás da outra. O público ovaciona o talento do Chico e o outro Brasil que ele representa”, escreveu Luis Fernando Veríssimo no Globo. E também Zélia Duncan, no mesmo jornal: “Chico andou passando poucas e boas apenas por se colocar, mas o que nos devolve dessas fases sombrias é um sol que, como sempre foi, ilumina e aquece. Os cães ladram e o Caravanas de Chico passa... e sempre vai passar”.
Chico já disse que gosta de caminhar e, "por onde caminho, nos bairros chiques do Rio, as pessoas finas passam com seus carros grandes e gritam: ´viado filho da puta!´, ´viado, vai pra Cuba´, vai pra Paris, viado. O único consenso é o viado”. No show do Rio, ao cantar ´Partido Alto´ – quando diz “Mas se alguém me desafia e bota a mãe no meio/ Dou pernada a três por quatro e nem me despenteio/ Que eu já tô de saco cheio!” –, Chico dá uma pausa, meio que um breque. E frisa e repete umas duas vezes: “e bota a mãe no meio”. A plateia vem abaixo.
Como registrou o crítico Carlos Marcelo em dezembro, quando da estreia do show em Belo Horizonte: "Vai pra Cuba!", ordenam os críticos do cantor nas redes sociais. Pois Chico foi. Voltou de lá para o novo show com a tabelinha entre ´Iolanda´ e ´Desaforos´, resposta enviesada aos agressores virtuais (´Custo a crer que meros leros-leros de um cantor possam te dar tal dissabor´), reforçada pela inclusão de ´Injuriado´ (´Não entendo/ Porque anda agora falando de mim´). Durante ´As vitrines´, na qual surge o vigia que tanta polêmica histérica rendeu na linda ´Tua Cantiga´, a moça ao meu lado, não mais do que 20 anos, tira os óculos e enxuga as lágrimas. Como ele já dizia em Jorge Maravilha: “Você não gosta de mim, mas sua filha gosta”.
Fecho com a voz rediviva de Vinicius de Moraes, surgida há exatos 50 anos: “Outro dia saímos em passeata cívica, e éramos 100 mil na Avenida Rio Branco, estudantes, intelectuais, clero, donas de casa, protegidos por um extraordinário esquema de segurança bolado pelos próprios garotos. Uma beleza. Se alguma coisa de bom tem que sair deste país, vai ser à base do novo movimento estudantil. E, naturalmente, Chico Buarque de Hollanda”. (Prefácio do livro O jornal de Antônio Maria, julho de 1968).
Continua na próxima semana


8 comentários:

Anônimo disse...

Grande texto, Werneck. Coisa de quem viu Chico ao vivo.
W. J. Solha

Unknown disse...

Que texto incrível!!!!!!!!

fernanda lopes disse...

estou tentando desde ontem postar um comentário, queria dizer, que história!! que lembrança mais feliz!! que belo texto!! obrigada Ronaldo Werneck!!!

Anônimo disse...

Estou maravilhado com o texto; parece que estou vendo o Chico em carne e osso. Vc, como sempre, perfeito, fluido, cirúrgico, lírico e amoroso. Aplausos!
Tanussi

Unknown disse...

Caríssimo Ronaldo,
Adorei seu texto com cara de curta metragem. Quase pude "ver" as cenas transcritas do seu relato.
Aguardando o próximo texto.
Saudades, amigo!

luciano de andrade disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
luciano de andrade disse...

não dá pra trazer o chico a cataguases pra uma pelada e umas palinhas do caravanas não? ele precisa saber que agora quem tá caminhando pruma "religiosidade" radicalmente burra somos nós, e precisamos da recíproca... ...parabéns, ronaldo, pelo texto, e pelas vivências relatadas!

Edir Vidal disse...

Ronaldo,meu amigo,assim você me mata do coração!Você trouxe o Chico pra mais perto da gente! Parabéns!