20 de fev. de 2018

Deserto aborrecido?



“O mundo, meu filho, é um deserto aborrecido”, já dizia o pai de meu amigo, o contista Carlos Alberto Castelo Branco. Um deserto aborrecido! Que bela sacada essa do patriarca das figuras castelares, do Castelão-mór! Um tédio só, esse mundo. Les événements m’ennuient, lembrava Drummond na epígrafe de Claro Enigma, citando o poeta Paul Valéry. Sim, os acontecimentos me entendiam. Ou, mais simples e sucinto, como o Castelo-pai: me aborrecem, tout court. “Nada de novo sob o sol”: o mundo hoje se repete como no novelhíssimo Eclesiastes. Pelo menos esse mundo que me chega por satélite ou pelo Correio. Falar nisso, palmas pro Correio de Cataguases – por enquanto, e desde que voltei, infalível na entrega de minha correspondência, dos jornais, livros, revistas & quejandos. Mas, vamos aos fatos que povoam esse deserto aborrecido.
“Armados & Perigosos” é a manchete de capa da Revista Time que recebi hoje, com data de 6 de abril: sorridente dentro de sua “roupinha pueril”, cópia debilóide de um uniforme do exército americano – semelhante em tudo ao traje de qualquer soldadinho desse mundão aborrecido –, um menino que mal mudou as fraldas segura em suas “inocentes” mãozinhas um rifle imenso.
O molecote é o espelho ideal para a matéria que começa na página 11 da Time, onde ele rides again com a carinha matreira, seu chapéu de caubói, a camisa xadrez & o longo capote à la John Wayne. Um protótipo de pistoleiro que se confirma quando percebemos estar a figurinha displicentemente apoiada em uma de suas três pernas, na clássica pose dos mocinhos do faroeste: a terceira perna é, naturalmente, um rifle maior que as outras duas.
Notem que chamo indiscriminadamente as duas armas de “rifle”. porque delas nada entendo, nem nunca por elas me interessei. Chamo isso de rifle, boa rima para patife. Ao lado do nosso fedelho que imita John Wayne – o mesmo que já vimos na capa da revista – em foto de igual porte, ocupando 2/3 da página, encontra-se um robusto pré-adolescente, com as faces extremamente rosadas de um típico little boy americano. Seus cabelos estão no rigor da moda, esse corte de marginais idiotas, ditado pela máquina de raspar nº 4 e copiada em toda a “aborrecida & aborrecente” aldeia global. Mas o que salta mesmo à vista é que, ao contrário do fedelho que vemos na página ao lado, nós não o olhamos; somos, ao contrário, mero objeto de seu olhar. Esse menino nos olha com olhos frios, com uma inesperada arrogância que brota de seu sorriso rosado e desafiante.


Esse olhar fixo e penetrante agora nos dá medo. Agora que sabemos pertencer a Mitchell Johnson, um adolescente de 13 anos que, com seu “fiel companheiro” Andrew Golden, 11 anos – o frangote do rifle, o little patife da capa – foi o responsável pela chacina de várias colegas e de uma de suas professoras na escola onde estudavam em Jonesboro, no Arkansas.
The Hunter and the Choirboy é o título que Time dá a matéria sobre a matança. “O caçador e o menino do coro”. Quer dizer, o “patife do rifle”, já nosso conhecido, e o gordote de olhar frio, o “menino do coro”, assim chamado porque acabara de “aceitar Jesus e sua salvação”, segundo o jovem pastor Christopher Perry, ministro da Igreja Batista de Jonesboro. O jovem Mitchell – que gracinha! – deleitava os fiéis da congregação Batista de Jonesboro com a suavidade de sua voz de menino do coro.
“Eu era como um menino diante de um palco/Odiando a cortina como se ela vedasse meu sonho”. Time usa como epígrafe de sua matéria esses dois versos extraídos de “As Flores do Mal”, de Charles Baudelaire, que ouso “transcriar” do inglês da revista, pois meu original de Les Fleurs du Mal de Baudelaire ainda está perdido entre as caixas de livros que trouxe do Rio e sequer comecei a abrir.
Uma epígrafe mais que expressiva, iluminada como se sob a luz de um spot sobre a cena onde explode a raiva do jovem Mitchell Johnson ao receber um fora da namorada – pano que fecha rápido, bloqueando o palco de seus anseios. Junte-se essa raiva à facilidade cotidiana no manejo das armas, qualquer arma, possibilitada a qualquer frangote, a qualquer american (cow)boy. Junte-se ainda essa raiva, esses rifles, ao encontro com o outro little patife e teremos o script mais do que óbvio da nova tragédia americana.



Nova tragédia americana? Não, que bobagem! Ela é novelhíssima, como o surrado Eclesiastes aqui citado. A mesma Time constata em outra matéria (“Através da Rota do Diabo”) a aberração representada por esses massacres escolares e repete a velha e inquietante pergunta: “Por que crianças matam?”, Ora, direis, para ver estrelas! Para ver reluzindo as estrelas dos xerifes do faroeste que fizeram de suas mentes.
Pearl, Mississipi, 1º de outubro de 1997: Luke Woodham, 16 anos, mata a própria mãe e dois colegas de classe com um rifle calibre 22. West Paducah, Kentucky, 1º de dezembro de 1997: armado com uma pistola Ruger calibre 22, Michael Carneal, 14 anos, abre fogo sobre os participantes de um culto religioso em sua escola, momentos antes do início das aulas. Ao ser empurrado contra uma parede por um colega que tentava impedir o massacre, Carneal lhe diz: “Mate-me, por favor. Não posso acreditar que fiz isso”. Stamps, Arkansas, 15 de dezembro de 1997: Joseph Todd, 14 anos, apelidado de “Colt”, é acusado de atirar “casualmente em dois colegas de escola”. O xerife da localidade disse que Todd atirara a esmo, não se importando com quem pudesse atingir: “o que ele queria era ferir alguém, qualquer alguém”.


      Pois é, esses mal resolvidos meninos americanos & seus rifles – pênis sub-reptícios mais que simbólicos. Time aborda também a venda indiscriminada de armamento americano usado por países que praticam a tortura; o susto & a gafe do presidente Bill Clinton ao temer um ataque da negritude de Gana, que na verdade tentava aclamá-lo; a inesperada compra da Random House, a mais tradicional editora norte-americana, pela Bertesman AG alemã, um dos gigantes da mídia mundial. E saúda ainda em página inteira três poetas & seus novos livros: JD. McClatchy, Yusef Komunyakaa e Deborah Garrison. Deserto aborrecido? Há controvérsias.



Ronaldo Werneck
Jornal Cataguases/12-04-98


Um comentário:

maria helena leal lucas disse...




¡¡¡ MUNDO PERRO !!! ¿" Qué mundo é esse "?¡?!