Mal chego a Cataguases para o fim de semana e Tia Dalila vem logo dizendo: “O Dounê esteve aqui te procurando junto com dois amigos: um ‘tal de Sabrino’, mais seu filho. Disse que você morava no Rio, ofereci um café, mas parece que estavam meio apressados: foram logo embora. Deixaram um abraço”. Quando foi isso? Acho que em algum ano dos 1990, mas há controvérsias. O “Dounê” é o meu amigo Dounê Spínola – hoje meu vizinho aqui do prédio, em Cataguases –, esse grande designer que fez a capa de vários de meus livros, inclusive do mais recente, a ser lançado em breve. Os “tais de Sabrino” eram o Bernardo – meu companheiro de noitadas no Baixo Leblon – e seu pai, Fernando. “Sabino”, a bem da verdade, o escritor para quem Dounê também fizera várias e várias capas, e que viera a Cataguases para tocar bateria num show. “A minha verdadeira vocação seria a de ser baterista de jazz. Eu sofro muito para escrever e me divirto muito com o jazz”, disse um dia Fernando.
Penso nisso agora, quando acabo de reencontrar o Bernardo, que esteve recentemente aqui para o lançamento da exposição “Encontro Marcado com Fernando Sabino”. E também porque o pessoal do Proler/Cataguases me pediu um texto para ser apresentado na abertura do evento, dia 28 de junho. “Dito e feito”, como no nome daquela coluna assinada no Globo pelo próprio Fernando Sabino. O texto que entreguei para o Proler não é meu, mas resultado de “um esforço meu”: apenas uma collage e edição que fiz de vários dos textos do escritor. Isso tudo me recordou alguns de meus contatos com o “colega” Fernando, como ele me chamava na dedicatória da “modesta lembrança” que me mandou no ano 2000 – seu livro A chave do enigma: “A Ronaldo Werneck, esta modesta lembrança, com o melhor abraço mineiro do seu amigo e colega Fernando Sabino/Rio, 01/09/2000”.
Nosso primeiro contato foi um verdadeiro (des)encontro (des)marcado. Eu ia para a Argélia em setembro de 1979 e lá passaria cerca de um mês, representando o Banco do Brasil/Cacex na Feira Internacional de Argel. No dia 05 de abril, em Cataguases, no jantar dos setenta anos do escritor Francisco Inácio Peixoto, comentei com ele sobre minha viagem. Chico Peixoto, amável como sempre, disse para eu procurar o Fernando Sabino, que fizera um filme sobre a Feira de Argel, e também o Oscar Niemeyer, que estava com algumas obras na Argélia. No Rio, telefonei primeiro para o Fernando. Não estava. Deixei recado, dizendo que voltaria a ligar (e também meu número, o do trabalho, pois estava morando em Itaipu, uma praia distante de Niterói, e sem telefone em casa).
Fernando retornou a ligação, e várias vezes, mas acontecia de não me encontrar. Meus colegas de redação da Revista Cacex diziam: “Ligou um tal de Fernando Sabino. Liga depois. É mesmo o Fernando Sabino?”. “Era” – e eu dizia isso meio sem jeito. Jamais poderia pensar que o romancista daquele Encontro marcado que tanto me marcara na adolescência pudesse estar agora a me ligar, assim como quem, insistentemente, liga para um amigo. Ainda não o conhecia, e não sabia desse lado absolutamente cortês de sua personalidade – como se ele antecipasse na vida real aquela passagem de O menino no espelho (1982), aquele “Pense nos outros” – o segredo “de ser um menino feliz para o resto da vida” que o misterioso homem (o próprio Sabino) passou para aquele menino (o próprio Fernando).
Finalmente conseguimos nos falar por telefone. Ele me deu várias dicas sobre Argel, contou sobre o filme que lá fizera no ano anterior com o David Neves (que eu conhecera mais de perto em 1975, ao lado de Humberto Mauro, durante as filmagens de “A Noiva da Cidade”, em Volta Grande – mas de quem só ficaria amigo mesmo anos mais tarde). Marcamos de nos encontrar em Copacabana, para um possível chope no velho Alcazar da Avenida Atlântica. Não só porque Fernando gostava do bar, mas também porque era próximo do escritório de Oscar Niemeyer, que ele queria me apresentar: “o Oscar é o homem certo para te falar sobre Argel. Está com obras no país, tem uma equipe lá, pode te ajudar muitíssimo”.
Disse para ele que o Chico Peixoto dera a mesma indicação. Fernando ficou então de marcar nosso encontro com o Oscar. Qual o quê! Nem no Alcazar nos encontramos, nem nunca naquele ano. Uma série de contratempos dos dois lados, e acabou que acertamos por telefone o encontro com Niemeyer. Fernando não conseguiu ir, mas agendou tudo com uma precisão inacreditável. Ligou várias vezes para mim, confirmando data e hora para eu estar no escritório do Oscar. E lá me recebeu um afável Niemeyer, de pé em sua prancheta, trabalhando e conversando comigo sobre o Colégio Cataguases, o Chico Peixoto e sua casa, “a casa do Oscar”, como diria o Chico Buarque. E principalmente sobre Argel. “Procure primeiro o Kurt, em Paris”, disse Oscar. “Ele fará contato com o meu pessoal em Argel. Kurt é o contato perfeito, ele vai abrir caminho para você”.
E me deu o telefone do Kurt e o do pessoal de sua equipe em Argel. Aquilo me pareceu qualquer coisa meio Hitchcock, meio “intriga internacional”, coisa de agentes secretos socialistas com conexões Paris-Argel e sei lá mais onde. Saí do escritório do Oscar fascinado não só pelo próprio, por sua genialidade (palavra gasta, mas que no seu caso não tem mesmo outra), como pela possibilidade de uma intrincada aventura em Paris, caso conseguisse fazer contato com o misterioso Kurt. Não consegui. Meu voo faria apenas uma conexão em Paris com a Air Algerie, e sequer saí do aeroporto de Orly. Nunca mais soube do famigerado Kurt.
Mas Oscar se antecipara: quando, já em Argel, procurei o seu pessoal – Niemeyer lá traçara também o fantástico projeto de uma mesquita em pleno mar – eles já estavam me esperando, extremamente solícitos. Mostraram toda a obra na Universidade da capital e queriam porque queriam me levar até Constantine para que eu conhecesse a Universidade, que fora projetada em 1969. Não pude ir, e até hoje me arrependo. Era uma chance não só de conhecer a Universidade como de sobrevoar o deserto do Saara. Ficou para outra vez. Outra nunca vez. Como para outra vez – mas outra vez mesmo, espero que na próxima semana – ficam os finalmentes desse nosso/ meu encontro marcado com Fernando Sabino.