Ulla
me liga da Califórnia: “Papi, estou em San Francisco. O que você quer
daqui?”. “De San Francisco? Bem,
querida, vamos dizer... uma foto sua com a Golden Gate Bridge ao fundo. Você bem
sabe como o papai adora pontes: a Ponte Velha daqui, sobre o Pomba; a Ponte Vecchio
sobre o Arno em Florença; as do Porto sobre o Douro em Portugal; e até a do
poeta Sá-Carneiro, aquele “qualquer coisa de intermédio”, aquele “pilar da
ponte do tédio”.
“De San Francisco?”
– volto a repetir. “Fora a Golden Gate, não deixe de visitar a livraria fundada
por Lawrence Ferlinghetti, um de meus poetas preferidos, a City Lights Books”. No outro dia, Ulla de novo: “Papi, estou na City Lights, maravilhada, que bela
livraria! Praticamente um andar só de poesia (vejam acima o vídeo que Ulla fez na livraria). Qual livro do Ferlinghetti
você quer de presente?” – Algum de seus livros de poemas, Ulla. Menos A Coney Island of the Mind, que já li e
tresli.
Autêntica MP, de um só jato (palavra certa) Ulla deixa San Francisco e já está no Canadá. MP? Sim, “Mala Pronta”, pois ela curte mesmo é viajar, que nem nossa prima Regina – essa sim, a reconhecida e internacional rainha das MPs. E logo Ulla me liga do Panamá. “Do Panamá? Mas o que você está fazendo aí, minha filha?” “Meu voo de volta faria uma conexão aqui, mas houve um problema e vou ter que dormir no Panamá, pois só voo amanhã. O que você quer do Panamá, papi?” Brinquei com ela: “Vai ver o Canal, e já que não há ponte à vista me traga um chapéu, pois ninguém sai daí sem trazer um dos famosos chapéus do Panamá.
Dias depois, meus
filhos Ulla e Pablo e minha nora Juliana chegam para o fim de semana aqui no
Shangrilá. Surpresa: Ulla não só me trouxe dois livros de Ferlinghetti como um
Panamá autêntico, um chapéu impecável: um sombrero
de alta calidad. Pra ninguém botar
defeito. Chapéu na cuca, Ferlinghetti
nas mãos, começo a folhear os livros que me presenteou: A Far Rockaway of the Heart e Ferlinghetti
a Life, uma edição ampliada de sua biografia, por Neeli Cherkovski.
Na verdade, já li e
tenho ainda hoje a edição bilíngue da Mondadori (inglês-italiano, 2000) de A Far Rockaway of the Heart/ Un luna park
del cuore – que comprei em Roma, em 2006, e foi tema de uma crônica que
está em meu livro “Há Controvérsias 2”, de 2009, republicada em 2021 por
ocasião da morte do poeta em 22 de
fevereiro de 2021, aos 101 anos. Vejam link para essa crônica, que está aqui em meu blog,
ao final deste texto.
Ali, eu me arrisco
até mesmo a traduzir um dos poemas de que mais gosto, exatamente o de abertura
do livro: Everything changes and nothing
changes/ Centuries end/ and all goes on/ as if nothing ever ends. “Tudo
muda e nada muda/ séculos findam/ tudo continua/ como se nada findasse”. Que no italiano do livro que eu trouxe de Roma
resultou em Tutto cambia e niente cambia/
Finiscono secoli/ e tutto continua/ come nulla finisse.
Poema que desde aquela
primeira leitura romana me lembrou o Eliot de “East Coker”: In my beginning is my end. Now the light
falls./ You say I am repeating/ something I have said before. I shall said it
again./ In my beginning is my end. Now the light falls. Palavras que também
não sei bem o porquê me levam àquele Caetano Veloso de “Tudo ainda é tal e
qual/ e, no entanto, nada igual”.
Aliás, Eliot era um
dos muitos poetas “do coração’ de Ferlinghetti, como diz seu biógrafo
Cherkovski, a páginas tantas do livro que a Ulla me trouxe – que leio numa
rápida passada e que repasso a vocês nessa tradução apressada: “Para sua tese La Cité: Symbole dans la poesie moderne: À
la recherche d´une Tradition Metropolitaine (“The City as a Symbol in
Modern Poetry: In Search of a Metropolitain Tradition”), Ferlinghetti leu
centenas de textos, concentrando-se em T.S. Eliot (The Waste Land), no Hart Crane de The Bridge, no poema de Maiakovski sobre a Ponte do Brooklyn, em
García Lorca (The Poet in New York),
no Whtman de Leaves of Grass.”.
Ferlinghetti
escreveu essa sua tese quando morou por um tempo em Paris. Foi nos anos 1940, e
em Montparnasse, a alguns quarteirões do Boulevard St. Germain, que chamava de
“terra de Hemingway”, onde frequentava o Café Dôme, um dos preferidos do
romancista.
Face a seu profundo
interesse por Ezra Pound e Eliot, além de outros poetas americanos (e aqui
acrescento Allen Ginsberg, de quem lançou em 1957 a primeira edição de seu
famoso poema Howl/ “O Uivo”), além de
vários poetas da beat generation,
Ferlinghetti pesquisou sobre poesia em praticamente toda a literatura mundial, não
somente para sua tese, mas também para subsidiar seu próprio desenvolvimento
como poeta.
Um poeta com a força
de versos como os que traduzi na abertura de seu A far Rockaway of Mind que a Ulla me trouxe e que releio agora aqui
no Shangrilá, sob a sombra de meu elegante chapéu Panamá:
Link para a crônica
publicada em meu blog quando da morte de Lawrence Ferlinghetti:
https://ronaldowerneck.blogspot.com/2021/05/tudo-muda-nada-muda-na-cabeca-e-no.html