Tem dias que a gente se sente a cismar: o que
será, que será que andam combinando no breu das tocas? Dias em que não tem
discussão, não, a minha gente falando de lado e olhando pro chão. Mas você que
inventou esse estado e inventou de inventar a escuridão: eu pergunto a você
onde vai se esconder da enorme euforia. Como vai proibir quando o galo insistir
em cantar. Amanhã há de ser outro dia: inda pago pra ver o jardim florescer
qual você não queria. Outros e outros
dias em que a gente vai contra a corrente até não poder resistir. Outros em que
a gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar. Você vai se amargar vendo
o dia raiar sem pedir licença.
Mas
não é dessa collage apressada de trechos de duas das canções emblemáticas de
Chico Buarque de Hollanda que quero falar aqui. Talvez de um tempo, página
infeliz de nossa história, os olhos (indevidamente) embotados de cimento e
lágrima. Difícil esquecer, mas vamos
tentar não falar de “pedras-de-toque” como aquele “Se entornaste a nossa sorte pelo chão/ Se na bagunça do teu
coração/ Meu sangue errou de veia e se perdeu/ Como, se na desordem do armário
embutido/ Meu paletó enlaça o teu vestido/E o meu sapato inda pisa no teu”.
Ou de pontos luminosos como os daquela construção de
alexandrinos com cesura perfeita, realçados pela profusão de proparoxítonos, de
quem ergueu no patamar quatro paredes mágicas. De quem
tropeçou no céu como se fosse um bêbado e flutuou no ar como se fosse um pássaro. Ou, ainda, da bela e injustiçada Sabiá, uma elaborada canção de “in-exílio”: “Vou voltar/ Sei que ainda vou voltar/Para o meu lugar/ Foi lá e é ainda lá/Que eu hei de ouvir cantar/ Uma sabiá”.
Chico vai voltar sempre, que aqui é o seu lugar. E sempre e sempre
nos surpreender com novas canções e romances. É também muito em função desses
que ele acaba de se tornar o mais novo laureado com o Prêmio Camões de
Literatura, o mais importante da língua portuguesa. Tanto mar. Por mares de
nunca de antes navegados, diz de lá o vate, são muitos os Chicos num só Chico
Buarque de Hollanda. Muitos Chicos em perigos e guerra esforçados, mais do que
prometia a força humana.
Instituído em 1988, o Prêmio Camões tem o objetivo de reconhecer um
autor de língua portuguesa que tenha "contribuído para o enriquecimento do
patrimônio literário e cultural" do idioma através de seu conjunto da
obra. Chico foi logo saudado pela multidão de fãs, e até
mesmo pelo presidente: “pelo empenhamento político, pelo amor ao Rio de Janeiro
e ao Brasil, pelo trabalho sobre uma língua que, atravessando tanto mar, nos
une”. Pelo presidente português Marcelo Rebelo de Sousa, diga-se de passagem, porque
– aqui, ó! – o ex-Capitão Talkey fez cara de paisagem. E paisagem nebulosa. Quer dizer, cara de escuro como no breu das tocas onde inventou
de inventar a escuridão,como não podia deixar de ser. O
Prêmio Camões ganho por Chico foi um tapa de luva (de boxe, claro, um jab mais-que-perfeito) na ignorância que
grassa nos gramados do Planalto.
Eu li a maioria dos romances de Chico Buarque, livros
significativos que lhe valeram o Prêmio Camões: Benjamin, Estorvo, Leite
Derramado. Mas o que chamou mais minha atenção, aquele ao qual me debrucei
quase magnetizado pela sutileza do enredo, por seus ardis na escrita e pela
trama das palavras urdidas com rara beleza, foi mesmo Budapeste. José Miguel
Wisnik diz melhor do que eu: “Chico Buarque teceu uma variação inusitada
(poderíamos dizer diabólica, se considerarmos que o húngaro é a única língua do
mundo que, segundo as más línguas, ´o diabo respeita´), sobre o escritor e seu
duplo, sobre a fama e o anonimato, sobre identidade e impostura, sobre
quem-é-quem e ninguém”. E Wisnik finaliza:
“É que há romances que, no exato momento em que terminam, transformam-se em
poesia. O romance esconde a versão oculta de si mesmo, e se soletra todo, num flash
extremo, como uma língua-música, que se desse de uma vez, por inteiro”.
A leitura de Budapeste me levou também à minha infância, ao
jogo de botões (uma das especialidades do próprio Chico), pois os nomes dos
personagens do livro homenageiam a lendária seleção da Hungria dos anos 1950.
Exatamente como meus botões entravam em campo, acompanhando as partidas como se
ao vivo, com aquela escalação diabólica comandada por Ferenc Puskás, meu melhor
botão, além, naturalmente, de astro maior do scratch magiar. Na ocasião, publiquei uma crônica falando do livro
Budapeste e de meus botões. Foi quando meu amigo Walter Carvalho, que filmava o
romance, me disse que gostara muito do texto
e que iria mostrar pro Chico.
Tempos depois, Waltinho me convidou para uma exibição privê
no Rio, pré-lançamento do filme, uma sessão matinal num cinema de Botafogo. Na
verdade, o filme Budapeste me deixou gratamente surpreso pela condução da trama
e pela qualidade das imagens, o que não é lá muito novidade quando se trata de
um filme com a grife Walter Carvalho, possivelmente nosso melhor diretor de
fotografia. Isso além de meu amigo, o cineasta húngaro Miklós Palluch, aparecer
subitamente numa ponta. Ao que soube, Miklós auxiliou a produção na
transposição para o húngaro de alguns diálogos. O filme de Waltinho é
“mortífero” – e vocês vão entender o que quero dizer quando lerem minha citada
crônica, publicada em meu livro “Há Controvérsias 2”, que reproduzo a seguir,
em homenagem ao Chico e aos dois Waltinhos: o Carvalho, e o Jones Walter Melo, meu
parceiro dos jogos de botões da infância em Cataguases.
Chico, Puskás, Jones:
sempre mortíferos
Comecei a ler “Budapeste” no Rio, há
cerca de dois meses. Quase viro a noite,
não fora o cansaço do dia-noite de viagem & trabalho e a já nova madrugada
& dia e seus compromissos: algumas reuniões cariocas e textos & mais
textos por fazer – lá e em acá/taguases. Abraçado ao mais novo romance de Chico
Buarque, dormi sonhando com o time da Hungria na Copa de 1954, o famoso scratch húngaro entronizado por Armando
Nogueira, com seus Ferenc Puskás, Kocsis, Hidegkuti, Zoltan Czibor e outros
craques cujos nomes Chico embaralha no Rio-Budapeste de sua trama e faz
personagens de seu livro. Mais dias-noites em trânsito, mais textos em transe
madrugadas afora & compromissos noite-dia adentro – e só agora retomo
Budapeste, semanas após a primeira empreitada.
“Aí eu estou chegando quase”, diz o
escritor “fantasma” José Costa, ou Zsoze Kósta, tentando “falar” húngaro para a
namorada magiar, que sorri imaginando sua chegada “em pedaços”, ou quase. O personagem de Chico Buarque voltava de um
“encontro anual de autores anônimos em Melbourne, encontro de profissionais
que, por princípio, princípios não têm” e, no Rio, passa a criar
“autobiografias, mercadoria com farta demanda reprimida”. No romance de Chico nomes
e lugares remetem a lugares e nomes reais ou fictícios, mas interligados a cada
virar de página, e acabamos às vezes até fazendo associações onde talvez não
existam.
Seria como dizer com sofisticação eu te
amo: “Me diz pra onde é que inda posso ir/
Se nós, nas travessuras das noites eternas/ Já confundimos tanto as
nossas pernas/ Diz com que pernas eu devo seguir”. E, língua nativa
ou não, pernas pra lá e pra cá, Bandeira ou não, Chico acaba passando poesia:
“Zelosa dos meus escritos, só ela os sabia ler, mirando-se no espelho, e de
noite apagava o que de dia fora escrito, para que eu jamais cessasse de
escrever meu livro nela. E engravidou de mim, e na sua barriga o livro foi
ganhando novas formas, e foram dias e noites sem pausa”.
“Mortífero”. No jargão da juventude
húngara vista pela ficção de Chico, a palavra significa “o máximo’, que tanto
pode ser “o máximo de bom, como o máximo de mau”. Alguém lê o livro que Zsose
Kósta escrevera, livro dentro do livro, e diz “Mortífero”! Mortífero bom ou
mau? “Mortífero assim-assim”, é a resposta. Pois é, Budapeste é mortífero de
muito bom. “Agora eu lia o livro ao mesmo tempo em que o livro acontecia”, diz
Chico-Zsose Kósta lá pelas tantas. “Da língua que não estima”, diz ele sobre
seu personagem-escritor-anônimo, “ele mastigará as palavras bastantes ao seu
ofício e ao dia-a-dia, sempre as mesmas palavras, nem uma a mais. E mesmo
essas haverá de esquecer no fim da vida, para voltar ao vocabulário da infância”.
E Budapeste acontecia em mim, como se num repente eu voltasse à infância.
Os craques húngaros adentram o gramado de Budapeste sem que se diga quem são nem de onde surgiram esses nomes: o poeta Kocsis Ferenc (Kocsis, era atacante do scratch; Ferenc, o primeiro nome de Puskás, o mais famoso craque húngaro de todos os tempos, que acabou defendendo a seleção espanhola e que vi atuar no Maracanã nos anos 60, numa noite de um inesquecível Santos x Real Madrid. Vi mesmo ou foi sonho meu?); o escrivão Puskás Sándor (o meia-armador Sándor era o primeiro nome de Kocsis), o prosador Hidegkuti István (o centro-avante da equipe de 54); a praça Czibor (Zoltan Csibor, extrema-esquerda), a avenida Bozsik (József Bozsik, o genial meio-de-campo), “com suas bétulas em flor”, segundo Kósta. A cada nome, o nome de Jones Walter Melo me surgia. A cada craque relembrado por Chico, Waltinho aparecia como se sorrisse, o sorriso morto de meu velho amigo recém-falecido.
Os craques húngaros adentram o gramado de Budapeste sem que se diga quem são nem de onde surgiram esses nomes: o poeta Kocsis Ferenc (Kocsis, era atacante do scratch; Ferenc, o primeiro nome de Puskás, o mais famoso craque húngaro de todos os tempos, que acabou defendendo a seleção espanhola e que vi atuar no Maracanã nos anos 60, numa noite de um inesquecível Santos x Real Madrid. Vi mesmo ou foi sonho meu?); o escrivão Puskás Sándor (o meia-armador Sándor era o primeiro nome de Kocsis), o prosador Hidegkuti István (o centro-avante da equipe de 54); a praça Czibor (Zoltan Csibor, extrema-esquerda), a avenida Bozsik (József Bozsik, o genial meio-de-campo), “com suas bétulas em flor”, segundo Kósta. A cada nome, o nome de Jones Walter Melo me surgia. A cada craque relembrado por Chico, Waltinho aparecia como se sorrisse, o sorriso morto de meu velho amigo recém-falecido.
Os anos 50 sobrevinham em mim, marcados
pelo mover dos botões mágicos e de nomes idênticos manipulados por Jones Walter
Melo na varanda da casa de meus pais na Rua Dr. Sobral. Também em Cataguases o nosso scratch húngaro era “mortífero”. Eu e
Jones, o meu amigo Waltinho, formávamos o mais invejável cartel de botões da
cidade. Ele vinha do Bairro Granjaria para somar seus craques aos meus, no mais
poderoso button´s association da
história catuauá. Tão “mortíferos”, tão imbatíveis éramos que acabamos não mais
dando colher-de-chá aos outros meninos: só enfrentávamos a nós mesmos, pois com
os outros era pura covardia.
Acompanhávamos a Copa enquanto ela
acontecia, jogávamos os botões de nossa Copa, enquanto a varanda da rua Dr.
Sobral transformava-se na Suíça onde corriam os outros craques em tempo real.
Quem eram os craques verdadeiros, os de Melbourne ou os de Cataguases? Há controvérsias ainda hoje, pelo menos entre
esses marmanjos que às vezes reencontro pelas ruas da memória, de volta ao
vocabulário, sempre mortífero, da infância. Olhaí, Waltinho, como é que você foi
fazer uma coisa dessas, abandonar o campo assim sem se despedir, sem sequer dar
uma volta olímpica? Mortífero, esse seu jogo. Bem, assim-assim: aí eu estou
chegando quase.
23.05.2004