29 de mai. de 2019

Chico, Camões & meus botões



          Tem dias que a gente se sente a cismar: o que será, que será que andam combinando no breu das tocas? Dias em que não tem discussão, não, a minha gente falando de lado e olhando pro chão. Mas você que inventou esse estado e inventou de inventar a escuridão: eu pergunto a você onde vai se esconder da enorme euforia. Como vai proibir quando o galo insistir em cantar. Amanhã há de ser outro dia: inda pago pra ver o jardim florescer qual você não queria.  Outros e outros dias em que a gente vai contra a corrente até não poder resistir. Outros em que a gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar. Você vai se amargar vendo o dia raiar sem pedir licença.
Mas não é dessa collage apressada de trechos de duas das canções emblemáticas de Chico Buarque de Hollanda que quero falar aqui. Talvez de um tempo, página infeliz de nossa história, os olhos (indevidamente) embotados de cimento e lágrima. Difícil esquecer, mas vamos tentar não falar de “pedras-de-toque” como aquele “Se entornaste a nossa sorte pelo chão/ Se na bagunça do teu coração/ Meu sangue errou de veia e se perdeu/ Como, se na desordem do armário embutido/ Meu paletó enlaça o teu vestido/E o meu sapato inda pisa no teu”.
Ou de pontos luminosos como os daquela construção de alexandrinos com cesura perfeita, realçados pela profusão de proparoxítonos, de quem ergueu no patamar quatro paredes mágicas. De quem tropeçou no céu como se fosse um bêbado e flutuou no ar como se fosse um pássaro. Ou, ainda, da bela e injustiçada  Sabiá, uma elaborada canção de “in-exílio”: “Vou voltar/ Sei que ainda vou voltar/Para o meu lugar/ Foi lá e é ainda lá/Que eu hei de ouvir cantar/  Uma sabiá”.
Chico vai voltar sempre, que aqui é o seu lugar. E sempre e sempre nos surpreender com novas canções e romances. É também muito em função desses que ele acaba de se tornar o mais novo laureado com o Prêmio Camões de Literatura, o mais importante da língua portuguesa. Tanto mar. Por mares de nunca de antes navegados, diz de lá o vate, são muitos os Chicos num só Chico Buarque de Hollanda. Muitos Chicos em perigos e guerra esforçados, mais do que prometia a força humana.
Instituído em 1988, o Prêmio Camões tem o objetivo de reconhecer um autor de língua portuguesa que tenha "contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural" do idioma através de seu conjunto da obra. Chico foi logo saudado pela multidão de fãs, e até mesmo pelo presidente: “pelo empenhamento político, pelo amor ao Rio de Janeiro e ao Brasil, pelo trabalho sobre uma língua que, atravessando tanto mar, nos une”. Pelo presidente português Marcelo Rebelo de Sousa, diga-se de passagem, porque – aqui, ó! – o ex-Capitão Talkey fez cara de paisagem. E paisagem nebulosa. Quer dizer, cara de escuro como no breu das tocas onde inventou de inventar a escuridão,como não podia deixar de ser. O Prêmio Camões ganho por Chico foi um tapa de luva (de boxe, claro, um jab mais-que-perfeito) na ignorância que grassa nos gramados do Planalto.

Budapeste: o livro, o filme



Eu li a maioria dos romances de Chico Buarque, livros significativos que lhe valeram o Prêmio Camões: Benjamin, Estorvo, Leite Derramado. Mas o que chamou mais minha atenção, aquele ao qual me debrucei quase magnetizado pela sutileza do enredo, por seus ardis na escrita e pela trama das palavras urdidas com rara beleza, foi mesmo Budapeste. José Miguel Wisnik diz melhor do que eu: “Chico Buarque teceu uma variação inusitada (poderíamos dizer diabólica, se considerarmos que o húngaro é a única língua do mundo que, segundo as más línguas, ´o diabo respeita´), sobre o escritor e seu duplo, sobre a fama e o anonimato, sobre identidade e impostura, sobre quem-é-quem e ninguém”.  E Wisnik finaliza: “É que há romances que, no exato momento em que terminam, transformam-se em poesia. O romance esconde a versão oculta de si mesmo, e se soletra todo, num flash extremo, como uma língua-música, que se desse de uma vez, por inteiro”. 
A leitura de Budapeste me levou também à minha infância, ao jogo de botões (uma das especialidades do próprio Chico), pois os nomes dos personagens do livro homenageiam a lendária seleção da Hungria dos anos 1950. Exatamente como meus botões entravam em campo, acompanhando as partidas como se ao vivo, com aquela escalação diabólica comandada por Ferenc Puskás, meu melhor botão, além, naturalmente, de astro maior do scratch magiar. Na ocasião, publiquei uma crônica falando do livro Budapeste e de meus botões. Foi quando meu amigo Walter Carvalho, que filmava o romance, me disse que  gostara muito do texto e que iria mostrar pro Chico.
Tempos depois, Waltinho me convidou para uma exibição privê no Rio, pré-lançamento do filme, uma sessão matinal num cinema de Botafogo. Na verdade, o filme Budapeste me deixou gratamente surpreso pela condução da trama e pela qualidade das imagens, o que não é lá muito novidade quando se trata de um filme com a grife Walter Carvalho, possivelmente nosso melhor diretor de fotografia. Isso além de meu amigo, o cineasta húngaro Miklós Palluch, aparecer subitamente numa ponta. Ao que soube, Miklós auxiliou a produção na transposição para o húngaro de alguns diálogos. O filme de Waltinho é “mortífero” – e vocês vão entender o que quero dizer quando lerem minha citada crônica, publicada em meu livro “Há Controvérsias 2”, que reproduzo a seguir, em homenagem ao Chico e aos dois Waltinhos: o Carvalho, e o Jones Walter Melo, meu parceiro dos jogos de botões da infância em Cataguases.

 

Chico, Puskás, Jones:  

sempre mortíferos




     Comecei a ler “Budapeste” no Rio, há cerca de dois meses.  Quase viro a noite, não fora o cansaço do dia-noite de viagem & trabalho e a já nova madrugada & dia e seus compromissos: algumas reuniões cariocas e textos & mais textos por fazer – lá e em acá/taguases. Abraçado ao mais novo romance de Chico Buarque, dormi sonhando com o time da Hungria na Copa de 1954, o famoso scratch húngaro entronizado por Armando Nogueira, com seus Ferenc Puskás, Kocsis, Hidegkuti, Zoltan Czibor e outros craques cujos nomes Chico embaralha no Rio-Budapeste de sua trama e faz personagens de seu livro. Mais dias-noites em trânsito, mais textos em transe madrugadas afora & compromissos noite-dia adentro – e só agora retomo Budapeste, semanas após a primeira empreitada.
     “Aí eu estou chegando quase”, diz o escritor “fantasma” José Costa, ou Zsoze Kósta, tentando “falar” húngaro para a namorada magiar, que sorri imaginando sua chegada “em pedaços”, ou quase.  O personagem de Chico Buarque voltava de um “encontro anual de autores anônimos em Melbourne, encontro de profissionais que, por princípio, princípios não têm” e, no Rio, passa a criar “autobiografias, mercadoria com farta demanda reprimida”. No romance de Chico nomes e lugares remetem a lugares e nomes reais ou fictícios, mas interligados a cada virar de página, e acabamos às vezes até fazendo associações onde talvez não existam.
    É o caso de Teresa, que lembra Manuel Bandeira. Zsoze Kósta: “A escrita me saía espontânea, num ritmo que não era o meu, e foi na batata da perna de Teresa que escrevi as primeiras palavras na língua nativa”. Bandeira: “A primeira vez que vi Teresa/ Achei que ela tinha pernas estúpidas/Achei também que a cara parecia uma perna”. É intencional a perna de Teresa ou mera coincidência?
     Seria como dizer com sofisticação eu te amo: “Me diz pra onde é que inda posso ir/ Se nós, nas travessuras das noites eternas/ Já confundimos tanto as nossas pernas/ Diz com que pernas eu devo seguir”. E, língua nativa ou não, pernas pra lá e pra cá, Bandeira ou não, Chico acaba passando poesia: “Zelosa dos meus escritos, só ela os sabia ler, mirando-se no espelho, e de noite apagava o que de dia fora escrito, para que eu jamais cessasse de escrever meu livro nela. E engravidou de mim, e na sua barriga o livro foi ganhando novas formas, e foram dias e noites sem pausa”.
     “Mortífero”. No jargão da juventude húngara vista pela ficção de Chico, a palavra significa “o máximo’, que tanto pode ser “o máximo de bom, como o máximo de mau”. Alguém lê o livro que Zsose Kósta escrevera, livro dentro do livro, e diz “Mortífero”! Mortífero bom ou mau? “Mortífero assim-assim”, é a resposta. Pois é, Budapeste é mortífero de muito bom. “Agora eu lia o livro ao mesmo tempo em que o livro acontecia”, diz Chico-Zsose Kósta lá pelas tantas. “Da língua que não estima”, diz ele sobre seu personagem-escritor-anônimo, “ele mastigará as palavras bastantes ao seu ofício e ao dia-a-dia, sempre as mesmas palavras, nem uma a mais. E mesmo essas haverá de esquecer no fim da vida, para voltar ao vocabulário da infância”. E Budapeste acontecia em mim, como se num repente eu voltasse à infância.
     Os craques húngaros adentram o gramado de Budapeste sem que se diga quem são nem de onde surgiram esses nomes: o poeta Kocsis Ferenc (Kocsis, era atacante do scratch; Ferenc, o primeiro nome de Puskás, o mais famoso craque húngaro de todos os tempos, que acabou defendendo a seleção espanhola e que vi atuar no Maracanã nos anos 60, numa noite de um inesquecível Santos x Real Madrid. Vi mesmo ou foi sonho meu?); o escrivão Puskás Sándor (o meia-armador Sándor era o primeiro nome de Kocsis), o prosador Hidegkuti István (o centro-avante da equipe de 54); a praça Czibor (Zoltan Csibor, extrema-esquerda), a avenida Bozsik (József Bozsik, o genial meio-de-campo), “com suas bétulas em flor”, segundo Kósta.  A cada nome, o nome de Jones Walter Melo me surgia. A cada craque relembrado por Chico, Waltinho aparecia como se sorrisse, o sorriso morto de meu velho amigo recém-falecido. 
    Os anos 50 sobrevinham em mim, marcados pelo mover dos botões mágicos e de nomes idênticos manipulados por Jones Walter Melo na varanda da casa de meus pais na Rua Dr. Sobral.  Também em Cataguases o nosso scratch húngaro era “mortífero”. Eu e Jones, o meu amigo Waltinho, formávamos o mais invejável cartel de botões da cidade. Ele vinha do Bairro Granjaria para somar seus craques aos meus, no mais poderoso button´s association da história catuauá. Tão “mortíferos”, tão imbatíveis éramos que acabamos não mais dando colher-de-chá aos outros meninos: só enfrentávamos a nós mesmos, pois com os outros era pura covardia.
     Acompanhávamos a Copa enquanto ela acontecia, jogávamos os botões de nossa Copa, enquanto a varanda da rua Dr. Sobral transformava-se na Suíça onde corriam os outros craques em tempo real. Quem eram os craques verdadeiros, os de Melbourne ou os de Cataguases?  Há controvérsias ainda hoje, pelo menos entre esses marmanjos que às vezes reencontro pelas ruas da memória, de volta ao vocabulário, sempre mortífero, da infância. Olhaí, Waltinho, como é que você foi fazer uma coisa dessas, abandonar o campo assim sem se despedir, sem sequer dar uma volta olímpica? Mortífero, esse seu jogo. Bem, assim-assim: aí eu estou chegando quase.
23.05.2004



21 de mai. de 2019

Paris proibida? Viva a imaginação no poder


     E ponto final. Assim abro eu este texto, com um ponto que não fecha, pois vai de encontro a qualquer argumento. Exatamente como faz o desarticulado Capitão Talkei, que solta um “e ponto final” cortando perguntas que o incomodam e para as quais não tem argumentos. “Ponto final uma pinoia: o Brasil não é quartel”, diz Mario Sergio Conti em sua coluna do último sábado na Folha de S.Paulo, quando solta uma série de pontos e vírgulas: “O governo é integrado por beócios; aventureiros; idiotas inúteis; tratantes; bobalhões; Sérgio Moro; pintores de rodapé”.
Semana passada, os estudantes brasileiros em marcha por cerca de 200 cidades contra a (des)educação governamental, acompanhados por uma massa popular de mais de dois milhões de pessoas me levou de volta à Paris de 1968. Tal e qual. “Sejam realistas, busquem o impossível” foi um dos muitos slogans grafitados nos muros parisienses pelos jovens estudantes comandados por Daniel Conh-Bendit.  
“Era então maio e todas as tevês, todos os livros, jornais, revistas, toda a mídia, toda, todos, todos eles, toda Paris – só se falava daquele maio de 50 anos atrás. Daquele maio de 68 – daquele “carnaval”, daquele chienlit segundo De Gaulle – da força da palavra de (des)ordem de Daniel Cohn-Bendit. A Paris do maio de 1968, com os estudantes e operários tomando as ruas, as ruas que repercutiam com toda a força aquele ´é proibido proibir´: a imaginação no poder”.
      Com esse parágrafo eu terminava uma série de crônicas escritas em junho do ano passado, ao voltar de Paris, a maioria tendo a cidade e o maio de 68 como foco. Não sem antes reservar alguns tópicos para o poeta franco-suíço Blaise Cendrars, sobre quem encontrara num dos buquinistas das margens do Sena uma extensa e bem apanhada biografia escrita por sua filha. Cendrars acabou conectado a Cataguases, pois escrevera um poema em 1927 dedicado “aux jeunes gens de Catacases” (sic), aqueles companheiros de Rosário Fusco na aventura da Revista Verde.
Lembro que na época meu amigo Angelo Oswaldo, então Secretário de Cultura de Minas, mandou-me um poemail registrando minha crônica: “Caro Ronaldo,/ não só rosário/ ofusca paris/ de jeunes gens/ de catacases/ continuam a/ brilhar na cidade/ de cendrars/ e o rio pomba/ deságua na cena/ em que o poeta/ roneck atravessa/ o sena e acena/ para os que daqui/ aplaudimos o ás/ de cataguases”.

Jazer: o livre prazer


Gréco - Zaz - Montand

Mas, como disse Cendrars, “jazz vient de jaser” – das muitas vozes em dissonante andamento, às vezes em algaravia, em contínuo improviso – e Paris, digo eu, vem de lazer. Melhor, de “jazer” que é jazz e prazer. Turistas transgressores, deixemos – como no maio de 2018 – um pouco a cultura “oficial” de lado. Agora, nada de Louvre, nada de Versailles, nada de Beaubourg, apenas uma rápida passada pelo Orsay, que está no caminho,  e vamos lá, que Paris é também e ainda La Paris Canaille de Léo Ferré. A velha canção que ouvi primeira vez lá pelos anos 50 com Juliette Gréco e depois tantas e tantas vezes num velho vinil dos anos 60 de Yves Montand – e que volto a ouvir agora numa relativamente recente (2014) e vibrante gravação pop da jovem chanteuse Zaz (Isabelle Geffroy):
Paris marlou/ Aux yeux de fille/ Ton air filou/ Tes vieilles guenilles/ Et tes gueulantes/ Accordéon/ Ça fait pas d'rentes/ Mais c'est si bon // (...) // Paris flon flon/ T'as l'âme en fête/ Et des millions/ Pour tes poètes/ Quelques centimes/ A ma chanson/ Ça fait la rime/ Et c'est si bon”. Arrisco uma tradução “de prima” para esses dois fragmentos da canção, que é imensa: “Paris parasita/ Vista pela menina/  Seu ar que hesita/ Velho trapo que desafina/ E sua gana/ Acordeon/ Isso não gera grana/ Mas isso é bom// (...)// Paris cafetão/  Sua alma em festa/ E milhões/ Pra seus poetas/ Trocados em cima/ Pra minha canção/ Que tem rima/ Acordeon/ E isso é bom”.

Crazy Horse & rue des Ecoles



E foi nesse embalo que resolvemos encarar o show do Crazy Horse. O famigerado cabaré parisiense e seu strip-tease inaugural ficou conhecido mundialmente pelo filme Europa di notte (1959), de Alessandro Blasetti, que assisti com 17 anos – e, confesso, devidamente deslumbrado – aqui na Cataguases do início dos anos 60. Quer dizer, o Crazy Horse ainda estava num lugar meio difuso do imaginário. Tempos atrás havíamos assistido ao espetáculo do Lido, puro circo, salvando-se as piruetas no gelo ao som de Nino Rota e, mais recente, ao famigerado can-can do Moulin Rouge, absolutamente enfadonho.
“Totally Crazy”, o espetáculo em cartaz no Crazy Horse é um belo “divertissement”, termo que uso aqui em homenagem ao grande Erik Satie, com um número de sapateado dos irmãos gêmeos Roman & Slava simplesmente sensacional. Mas a grande vedete do show é mesmo a iluminação – o jogo de claro-escuro, de cores e luzes – delineando à la OP ART e dando forma aos corpos (e que corpos!) das apolíneas dançarinas, com o perdão da rima. Isso porque o desenho daquelas luzes moldando aqueles corpos de vedetes com nomes plenos de alusões & malícia como Kika Revolver, Enny Gmatic, Dekka Dance, Tina Tobago, me deixaram assim meio obnubilado.
O que de certa forma me remete a um porno-show da pesada visto em 1979 num pequeno teatro da rue des Ecoles, nas proximidades da Sorbonne – i.e., um pornógrafo literalmente de “escol/ástica”.  Havia uma rede, sob a qual ficavam as poltronas onde o público se sentava. No pequeno palco, atores começavam pudicamente a representar fragmentos de uma peça de Molière. Súbito, todos se despiam e começava uma endiabrada orgia sobre a rede e a cabeça dos extasiados espectadores. Uma loucura como só mesmo na Paris daqueles tempos. Não me lembro mais o nome do show, talvez “A rede de Molière”, ou coisa que o valha, só sei que ficou em cartaz por longos anos.
Acabei fazendo um poema sobre o show da rede, chamado “35 rue des écoles”, que está em meu livro “Doris Day by Night”. Um porno-poema a exemplo de outros que permeiam o livro, a ponto de Affonso Romano de Sant´Anna, a quem dediquei um deles, me escrever dizendo: “Você está virando o poeta mais sacana de nossa poesia, indo além do Bernardo Guimarães com esse "ELIXIR" de Copacabana. Coisa de doido, sô! como dizia o Hélio Pelegrino! No mais é província ideal fluindo dentro de nós. Abraço, ars”.
Para deleite dos distintos leitores, se é que los hay, reproduzo a seguir o “35 rue des écoles”:
no petit théâtre/ trinta étrangers/ & a porosa solidão do quartier/ sobre nós/ a rede/ nos transmuda em peixes/ sobrenadando/  sobre o nada/ no palco/ um vaudeville qualquer/ claro: molière!/ tout-à-coup/ coxas/ caras/ tout court tout/  há coup/  pernas/ paus/ tu/ tá/ coup/ vaginas varam o vau/ & trepam em vão/ sans cesse/ jusqu´à l´îvresse/ escorre/ sêmen/ mil migalhas entre mim e as malhas/  tout-à-coup/ pernas/  paus/  língua/  tu/  tá/ cu/  pinga porra nos espanhóis que pulam/ olé!

Jazz no Jardim e em Montparnasse


Bianca - Bechet

       Mas Paris gosta mesmo é de jazz. Há poucos anos, assistimos no Le Petit Journal Saint-Michel, um clube de jazz localizado no Quartier Latin, nas proximidades do Jardim do Luxemburgo, a uma fantástica apresentação de jazzistas em homenagem ao grande clarinetista e compositor americano Sidney Bechet (1897-1959), que morou e morreu em Paris. Foi uma noitada com direito a Petite Fleur, seu maior sucesso, e a uma retomada de Summertime, que Bechet gravou em 1952 com Armstrong e o grande violonista Django Reinhardt. De quebra, alguns sets com o Take Five de Paul Desmond, imortalizado por Dave Brubeck,  e ainda o Duke Ellington de Take the A Train, e o não menos Thelonious Monk de Round Midnight.
        Em maio passado, foi a vez de um ótimo show no Café Jazz Montparnasse com um grupo de jazzistas da pesada e a surpresa da jovem cantora parisiense Bianca Gallice. Com seu jazz manouche, um estilo de jazz cigano que se caracteriza pela liberdade, pluralidade e quebra de padrões, Bianca domina a noite e me lembrou muito Elis Regina, talvez por seu cabelo curtinho, à la homem. 
      No intervalo fui conversar com Bianca e disse isso, que ela estava parecida não só com Elis Regina (também pela movimentação em cena),  como com a Jean Seberg do Acossado de Godard. Para minha surpresa, ela adorou as comparações, pois também gostava muito do filme de Godard, e se mostrou “cheia de si”, quando me perguntou pela terceira vez se eu achava mesmo isso, pois era fã de Elis Regina.  

Rebocho, a Pide e 68 em Paris


Os estudantes e os slogans: maio de 68 em Paris.

Jazz manouche, liberdade, quebra de padrões, tudo isso me leva de volta ao maio de 1968, quando era “proibido proibir” e a imaginação estava no poder. Meu amigo, o poeta e jornalista português Nuno Rebocho (como ele mesmo diz, “português nascido em Moçambique, tendo vivido largos anos em Cabo Verde”), que esteve preso no Porto, na sede da Pide, enviou-me depoimento sobre aqueles tempos. É outra visada dos acontecimentos do período. Transcrevo alguns trechos a seguir.
“Maio de 68 apanhou-nos na prisão - era a sede da sinistra Pide no Porto, onde se entrava pela Rua do Heroísmo e saía pelo cemitério do Prado do Repouso (hoje é Museu Militar). Tinham acabado os interrogatórios pidescos e aguardávamos ser “julgados” no Tribunal Plenário de S. João Novo. Foramos detidos em novembro de 67 e seríamos o primeiro julgamento político da era de Marcelo Caetano. Recebíamos, sem censura, o Paris Match e uma revista espanhola. E, por elas, fomos acompanhando os acontecimentos na capital francesa, onde viviam muitos portugueses exilados, fugidos ao salazarismo, à tropa e às guerras coloniais. 
“Ocorrido dois anos depois do início da chamada ´revolução cultural proletária´ chinesa, o Maio de 68 estilhaçava a superestrutura cultural europeia (e não só), desbaratava mentalidades estabelecidas, despertava novas mentalidades e paradigmas. Era a sociedade dominante que estava em causa, embora a não subvertesse na sua essência. Na esquerda, questionava ferozmente o sovietismo que esbarrara na miserável acusação de “juif allemand” que o líder comunista francês, Georges Marchais, fizera a Bendit (estaremos disso esquecidos?). 
“O Maio de 68 – fundindo, num amplo movimento, o movimento sindical, a juventude estudantil e uma parte da intelectualidade –, ao não atacar diretamente as relações sociais estabelecidas, autolimitou-se, comprometeu-se e falhou. Mas fez abalar o sistema, rebentou com “princípios feitos” e “verdades estabelecidas” (“é proibido proibir” foi regra então emergente), espoletou novas mentalidades. Parecia confirmar teses que vínhamos defendendo. Estávamos entusiasmados”.
Rebocho possui também um blog de poesia, http://ibnmucanapoesia.blogspot.com/, onde destaca trabalhos de inúmeros poetas que escrevem na língua portuguesa. Vários poemas de poetas brasileiros foram ali publicados, inclusive alguns meus.  Mais recentemente, ele escreveu, a pedidos, um texto sobre nossa amizade e minha trajetória literária para a Revista “Olhares Amazônicos”, editada em Roraima por Roberto Ramos. Nos dados que enviou ao editor, diz Rebocho: “envio-lhe meu texto sobre Ronaldo Werneck – um bom poeta brasileiro que faz o favor de ser um dos meus amigos. Escrevi ao correr dos dedos e num modo simples, com o engulho de não dominar o português-brasileiro”. Vejam o texto de Nuno Rebocho a seguir.

REMOENDO BALDROCAS
SOBRE RONALDO WERNECK



Já lá vão anos que encontrei e conheci Ronaldo Werneck. Foi no sul de Portugal, em Lagos, durante o Festival de Cinema Lusófono que entre nós  começou duradoira amizade. Demorada correspondência e novo frente-a-frente em João Pessoa (lindíssima cidade) vincaram a amizade com o poeta de Cataguases. Os laços criados cimentaram-se.
Com Werneck, estreitaram-se ainda mais as muitas cumplicidades que já tinha em terras brasileiras. Haverei de delas vos falar, revelando amizades que construíram o meu mundo, incluindo os encontros com o saudoso Jorge Amado, tanto em Salvador da Baía como no Estoril português. Por enquanto, é o autor de “Há controvérsias” o motivo desta conversa convosco.
Ligava-nos o facto de ambos sermos jornalistas e poetarmos por desporto, embora eu sempre atirasse o taco fora nas questões do concretismo, velho ou neo. Ensaiara umas coisitas imitando-lhe o modo, mas cedo arrumara a manta no que toca tais aventuras. Outro era o meu fado, ao contrário de Werneck que eu vinha tratando por “Ronaldinho Mineirão”, para o destrinçar de outro Ronaldinho, o Gaúcho. E tínhamos ambos a mesma paixão pelo cinema, mais acentuada nele, não fora da terra de Humberto Mauro (com quem convivera) e já lhe ter espirrado para o sangue o cinéfilo vício.
Além de integrar a equipa responsável pelo Festival de Cinema Lusófono, Werneck corria léguas, mundo afora, com a sua máquina fotográfica, clicando em Paris, em Itália e sei lá onde mais. Volta não volta, choviam mensagens suas dando-me conta das paragens que cirandava: Ronaldo, como eu, era “viageiro de mundos”, vício que por certo também lhe viera trazido pela profissão.
Os livros que Werneck destilava ia-mos enviando pelo correio. Por eles, descobri a sua excelente poesia e, certa feita, chegámos a uma troca de galhardetes a pretexto de um poema meu, “Canto Finissecular”. Pena que me tenha desenvencilhado da obra sua, deixada nas ilhas de Cabo Verde na doação a uma biblioteca que ajudei a criar em S. Martinho Grande (Ribeira Grande de Santiago). Mas adoro o seu poetar feito de subtilezas e de associação de ideias que, de algum modo, me confortou com o concretismo.
Afinidade outra foi a do gosto que ambos mostrámos pelos textos de crónica: prosa livre a sua, em contraste com o sincopado tom da poética, escorrendo o convívio com grandes músicos quer em S. Paulo, na Baía ou no Rio de Janeiro. Ronaldinho ia dando azo, com génio, à sua muita criatividade, desforrando-se da vida nas bancas dos jornais e publicações por onde trabalhava. Também nisso achava na amizade nossa também algo em comum.
Enfim, Werneck deleita-me, com o seu rico linguajar que sempre me confundiu, escrevendo mesmo para um poema (publicado em Piracicaba) sobre o estranho significado que as mesmas palavras, redigidas no português desta riba do Atlântico, ganham nas bandas das terras de Santa Cruz. É um português sambado, divertido, molhado e doce – é, afinal, um português bem brasileiro.
Através de Werneck conheci outros vates do Brasil que entraram pelo meu mundo. Mas isso será tema para outras conversas se, eventualmente, houver para  elas oportunidade.
Nuno Rebocho
Lisboa, abril de 2018