18 de mar. de 2020

ELISETE CARDOSO: 100 ANOS DA DIVA


Vinicius de Moraes: A grande Elisete não comporta adjetivos. 
É Brasil no corpo, na ginga, no riso, no olhar, nos maneirismos.

Chico Buarque: Elisete é a nossa cantora mais amada. Voz de mãe, e mãe de todas as cantoras do Brasil.

No próximo dia 16 de julho a cantora Elisete Cardoso estaria fazendo 100 anos. Em sua homenagem, reproduzo a seguir o texto que escrevi para o programa da série de shows programada pelo CCBB Rio quando de seus 90 anos.

Machado de Assis da Seresta



Antes de surgir Magnífica, Enluarada, Noiva do Samba-Canção, Machado de Assis da Seresta, Lady do Samba, Mulata Maior, ou pura e eternamente Divina, a carioca Elisete Moreira Cardoso (1920-1990) não tocou surdo nem tamborim, mas viveu em grande dificuldade. Com 15 anos já fora balconista de charutaria, operária (“fazia sapólio cantando e, modéstia à parte, tinha meus admiradores”), empregada de peleteria, cabeleireira e manicure “profissional”. Mas em surdina – entre charutos, peles, sapólios, xampus – o samba pulsava na marcação: “Eu já nasci no meio do samba, se é que melhor não seria dizer que vim ao mundo com ele no sangue. Eu sou de São Francisco Xavier, a primeira estação de trens elétricos junto de Mangueira, lado da Zona Norte”.
  Na noite de seus 16 anos, a moça teve convidados ilustres – Pixinguinha, Dilermando Reis, Jacó do Bandolim – e cantou, encantou e acabou encantada. Jacó a “descobriu” para o rádio, onde logo estreia ao lado de seu ídolo Vicente Celestino e de nomes como Aracy de Almeida, Moreira da Silva, Noel Rosa e Marília Batista. Foi contratada na semana seguinte. Nunca mais charutos, xampus. Nunca mais peleterias. E claro: sapólios nunca mais.

“Eu cantava no peito”


    Em 1939, já “veterana” de várias emissoras cariocas, atua em circos, clubes e cinemas e faz com Grande Otelo o quadro “Boneca de Piche”, sucesso absoluto ao longo dos próximos dez anos. Torna-se taxi-girl e “crooner”, atividades de longo percurso e duração. Aos 20 anos, é uma das atrações do dancing Avenida, na Cinelândia. Dali vê a vida girar ao som de sua voz (“Como eu cantava!”), orquestrada por cordas e metais (“Eu cantava no peito, não precisava de microfone. Com a experiência, a tessitura de minha voz adquiriu quase que outra característica”). É também no dancing Avenida que sente nos calos o peso da cadência de seus “habitués”.
  Com a ajuda de Ataulfo Alves, grava em 1950 seu primeiro disco, mas sem sucesso. Nesse mesmo ano o êxito de outro disco, com “Canção de Amor” (Chocolate/ Elano de Paula), tendo no outro lado “Complexo” (Wilson Batista), leva Elisete à Rádio Tupi e, já em 1951, a participar do primeiro programa de televisão realizado no Rio de Janeiro e dos filmes “Coração Materno”, de Gilda de Abreu, e “É fogo na roupa”, de Watson Macedo. Ainda em 1951, é contratada pela Rádio Mayrink Veiga e pela boate Vogue e grava um de seus maiores sucessos, “Barracão” (Luís Antônio/ Oldemar Magalhães).
 Ao longo dos anos 50 faz shows, filmes, televisão e, em 1957, surge seu primeiro LP, “Canções à meia-luz com Elisete Cardoso”. A Divina ainda não despontara, mas seu nome já era nacionalmente conhecido. De lá até 1990, ano de sua morte, Elisete lança mais de 40 discos no Brasil e grava muitos outros, na Venezuela, Uruguai, Portugal, Argentina, México, Japão. Uma discografia de impressionante qualidade, aqui e ali pontilhada por interpretações definitivas de músicas que se tornaram clássicas em sua voz.

Diva e Divina


      Álbuns como o histórico “Canção do Amor Demais”, de 1958, com composições de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, destacando-se faixas como “Outra vez” – onde surge a batida em quatro por quatro do violão de João Gilberto, bossanovista e desconcertante – e a pungente interpretação de Elisete em “Estrada Branca”, acompanhada apenas pelo piano de Tom. Foi por algumas dessas gravações que Elisete seria convidada, em 1964, a subir aos palcos dos Teatros Municipais, do Rio de Janeiro e de São Paulo. E fazer, nos templos da música erudita, interpretações consagradoras da Bachiana nº 5, de Villa-Lobos. O timbre de sua voz, sua extensão, a dicção perfeita, tudo nela parecia ajustar-se aos cânones do bel canto. Entre todas as nossas divas, Elisete Cardoso foi possivelmente quem mais aproximou a interpretação de música popular dos padrões do canto lírico. Diva e Divina.
      A mesma “Estrada Branca” daquele álbum de 1964, dedicado a Tom e Vinicius, marcou para sempre o espetáculo que realizou no Canecão na década de 70.  Uma noite no Leme, na casa de Bibi Ferreira e de meu amigo, o dramaturgo Paulinho Pontes, assisti a um pequeno quiproquó sobre este show. Paulinho estava escrevendo o espetáculo, que Bibi iria dirigir. Bibi reclamou que a Elisete “quase não tinha fala nenhuma”. Paulinho rebateu: “Deixei ela fazendo o que sabe. Cantar. Falando, é um desastre”.  Bibi levantou a voz. Paulinho tornou a rebater ainda mais alto. Eu peguei um taco e comecei a brincar com as bolas da mesa de sinuca que havia na sala, assim como quem não está ali. Discussão de anfitriões, a visita “nunca está ali”. Bibi acabou convencendo Paulinho, que colocou algumas palavras a mais na fala da Divina. Sucesso absoluto, o espetáculo ficou em cartaz por mais oito meses.  
     Encontrei-me com Elisete Cardoso pela primeira e última vez no final dos anos 80, num show no Teatro João Caetano, onde a Mulata Maior era acompanhada pelo grande violonista Raphael Rabello. Fomos apresentados por Albino Pinheiro, que dirigia o espetáculo, e Elisete presenteou-me com o LP que estava lançando. Caprichou na dedicatória: afinal, não era à toa que a chamavam de “Machado de Assis da Seresta”. Agora, Albino, Raphael e Elisete já se foram. Paulinho Pontes também, e quanta saudade! Ficou o LP que a Divina me deu, um passeio pelo melhor de nossa música, forma por excelência de perpetuar canções assim tão extraordinárias e uma voz tão elisetemente enluarada e magnífica.


CCBB/ Rio, 2000