29 de jun. de 2022

O amigo Dounê: “a indesejada bate à porta”

 

Quando a indesejada das gentes chegar,

(Não sei se dura ou caroável),

Talvez eu tenha medo.

Talvez sorria, ou diga:

– Alô, iniludível!

O meu dia foi bom, pode a noite descer

(A noite com seus sortilégios)

Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,

A mesa posta.

Com cada coisa em seu lugar.

Manuel Bandeira

 

Dounê por Dounê. RW, Rosa Werneck, Patrícia Barbosa e Dounê no
Museu Chácara Dona Catarina.


Cataguases, 1999. Eu e meu amigo, o cartunista e artista plástico & gráfico Dounê, conversávamos na calçada da casa do escritor Francisco Inácio Peixoto. Velório do filho do escritor, Francisco Inácio Peixoto Filho, o Chico Filho.  “É, Ronaldo, a indesejada bate à porta. Imagina que fui colega de colégio do Chico Filho. Posso ser o próximo, com certeza”. “Que é isso, Dounê – rebati de pronto – o Chico Filho foi meu diretor no Colégio. Ultimamente, eu e o Chico Filho às vezes batíamos longos papos enquanto bebíamos no botequim da Avenida. Que indesejada, qual o quê! Assim, de repente, posso também estar na fila”.

Rio, junho de 2022.  Aos 88 anos, Dounê foge de seu apartamento no Leblon para ver a filha. Pula o muro e acaba levando um tombo. Quebra um braço e acaba internado. Manhã do dia 23: Dounê tem alta e espera no quarto do hospital, enquanto sua esposa Talita pergunta se ele quer café. Dounê balança a cabeça: não. Ela começa a abrir a porta do quarto quando se volta e vê que Dounê acabara de baixar a cabeça, já sem vida. O coração tem suas razões.

Wim Wenders, cineasta alemão: “Quando a criança era criança era a hora das seguintes perguntas: por que eu sou eu e não você? Por que eu estou aqui e não ali? Quando começou o tempo e onde acaba o espaço? A vida sob o sol é apenas um sonho?”.

 


Fernando Sabino

Sim, a vida é sonho, como no escritor Fernando Sabino, de quem Dounê foi muito amigo, e para quem realizou várias capas de seus livros. Sabino disse certa vez que seu epitáfio seria: “Aqui jaz Fernando Sabino. Nasceu homem, morreu menino”. Pois bem, depois dessa fuga de menino levado, o epitáfio do Dounê poderia também ser, à la Sabino: “ Aqui jaz Dounê, nasceu menino e morreu bebê”.

E foi exatamente o Dounê quem levou o Fernando Sabino à casa de meus pais, aqui em Cataguases. Ele estava em Cataguases, acho que por causa de um show que fez com sua indefectível bateria. Fernando e eu havíamos trocados vários telefonemas quando fui para Argel, em 1979, e ele me deu várias dicas, pois lá estivera rodando um filme com meu amigo, o cineasta David Neves. Agora, em Cataguases, queria me conhecer pessoalmente.

Mas eu estava no Rio. Minha Tia Dalila me disse depois: “O Dounê esteve aqui te procurando, com um senhor simpático que disse ser escritor, um tal de Sabino.”. Na verdade, nós só nos encontramos pessoalmente tempos depois, quando do show da Rio Jazz Orchestra na boate do Hotel Méridien. Fernando fez um solo de bateria, as baquetas quase caíram de suas mãos, mas ele as recuperou com grande classe. Ficamos sentados na mesma mesa, acompanhados de sua bela mulher, Lygia Marina, e do escritor Luis Fernando Verissimo. E batemos um longo papo. Quer dizer, Fernando, Lygia e eu pois Verissimo não é lá de falar. A partir daí, Fernando e eu trocamos vários e-mails e livros.

 


Poema Sujo & Pomba Poema

Na “Crônica de uma volta anunciada”, pág. 10 de seu livro A Crônica Nossa de Cada Dia (Gráfica Rio Branco, Prefeitura Municipal de Cataguases, 2012), Dounê escreve: “De repente, naquela sensação de impotência por não enxergar a saída, a paixão reacende. A gente se agarra a um fragmento qualquer de saudade, como um náufrago perdido nas inundações da cidade, e se deixa levar pelas correntezas da memória nas águas do rio Pomba. A imagem da ponte metálica estampada no cartão-postal. Vontade de jogar tudo pro alto, fugir do asfalto”.

Cataguases, 1976. Eu estou em plena elaboração de meu livro Pomba Poema quando encontro com Dounê e digo que gostaria que ele fizesse a capa, talvez com uma foto da ponte metálica, a “Ponte Velha”, sobre o rio Pomba. Fomos então até lá. Atravessamos a ponte em direção à saída da cidade e ficamos olhando para ela, para ver o melhor ângulo da foto da capa, que seria feita por Adriana Monteiro, minha mulher à época. Foi quando Dounê me alertou para os dísticos existentes nos dois pórticos da ponte, o de entrada e de saída. Eu passara por ali a vida inteira e nunca tinha reparado nos versos de Virgílio: Pacificusne este ingressus tuus? Revertere ad me suscipiam te. “Teu ingresso é pacífico? Volta a mim que eu te receberei”.

Eureka! Estava li a chave de meu poema-livro, que seria lançamento em 1977, centenário da cidade. Combinamos de eu levar os originais à sua casa no Rio para acertamos a diagramação e a capa. Dounê dixit: “Vamos fazer o livro na horizontal, como eu fiz ano passado com o Poema Sujo do Ferreira Gullar”. Dito e feito. As capas dos dois livros, talvez em função do formato, ficaram meio parecidas. E também, de certa forma, os dois poemas: o de Gullar, falando de sua infância/adolescência, de suas recordações de São Luís do Maranhão; o meu, também focando infância/adolescência, procurando traçar um panorama histórico­-sentimental de Cataguases, como se visto-narrado pelo rio Pomba.

Corta para Cataguases final do século passado. Ao voltar do Rio – e de vez para Cataguases –, acabo vindo morar onde resido ainda agora, no mesmo prédio onde morou até dois anos atrás meu amigo Dounê.  Nossos carros dormiam juntinhos na garagem e eu sempre vi aquilo como uma prova de nossa amizade. De lá para cá foram muitos papos, muitos trocadilhos de que ele tanto gostava e era exímio. Dounê fez também as belas capas de vários de meus livros, coisa de mestre-amigo. 



Octavio Alvarenga e a caricatura de Dounê

Outro corte e estou novamente no Rio, a passeio, quando conheci Octavio Junqueira Mello Alvarenga (Belo Horizonte, 1926 - Rio de Janeiro, 6 de julho de 2010), advogado especialista em Direito Agrário, escritor, tenor e historiador brasileiro. E já naquele momento cantor bissexto, de ópera, operetas e operárias. Havia marcado de me encontrar no Theatro Municipal com minha amiga, a soprano Neti Szpilman, pois tínhamos combinado um almoço. Lá estava o Octavio, que a Neti me apresentou como “Seu" Octavio.

Ele foi conosco a pé, em alegre e hilária passeata a venida Rio Branco afora, da Cinelândia até quase a Candelária, pois havia sugerido que  almoçássemos no restaurante Cais do Oriente, nas proximidades do CCBB. Foi longa a caminhada, muito papo, muitas risadas e até cantorias da Neti e do Octavio, que ostentava belos suspensórios e brincou com os meus, dizendo que já éramos amigos de infância, porque unidos por nossos suspensórios. Já com 70 anos, ele foi afinar-se e juntar-se ao grupo Cantores de Chuveiro, que fez grande sucesso na época.

Eu me lembrei que havia visto, tempos atrás, o espetáculo sobre Cole Porter no Teatro Opinião, onde ele era um dos membros do afinadíssimo coro. Nós dois ostentando nossos suspensórios, cantando e rindo, rindo muito. Suspensórios que nos uniram numa amizade que começou em plena Avenida Rio Branco naquele dia de 2007 – e perdurou até sua morte em 2010. Eu já morando em Cataguases, trocávamos constantemente e-mails. Sempre que ia Rio, nos encontrávamos para um almoço. Ele sempre gentil, acabou me enviando um livro que escrevera, Rosário de Minas.

Ao começar a ler, a dar uma passada pelo livro, encontro uma caricatura dele feita por ninguém menos que o Dounê, vejam só! Subi logo ao 401 para contar a “descoberta” ao Dounê, que não se lembrava mais de ter feito a caricatura, mas se lembrava e muito do Octavio, pois davam sempre boas risadas quando se encontravam.

 


Diz Octavio no livro, abaixo da caricatura: “Sem dúvida esse desgrenhado cidadão se parece comigo. A caricatura foi feita por Dounê, que trabalhava para Horácio Klabin, no Dinner´s. Fui Assessor Jurídico de Horácio Klabin, colocando em prática meus conhecimentos de legislação agrária. Meu bigode, minhas bastas sobrancelhas e os indefectíveis suspensórios foram bem captados. A caricatura foi aproveitada pela Letras e Expressões no convite para o lançamento de “Sexta Feira, 16”, meu romance premiado no Concurso Walmap de 1971”.

Entre outras coisas, o sempre surpreendente Octavio foi genro de Carlos Drummond de Andrade, casado com sua filha Maria Julieta. Diz Drummond sobre Rosário de Minas, cujos originais havia lido: “Minas e seus valores. Octavio/ Alvarenga deslinda, esperto./ Em seu livro, terá a chave, o “distingo” entre ilusório e certo”. Mas no final das contas Drummond acabou “lhe virando as costas” após ler com mais cuidado o livro onde Octavio diz coisas do arco da velha sobre ele e Maria Julieta. Assim é, se lhe parece.

 


Comentário de Cícero Sandroni, da ABL, no prefácio do livro: “Nesta confissão, o som e a fúria da paixão (ou das paixões?) filtrados como veneno nos alambiques de Minas, um homem reflete sobre a própria existência e insiste, até o ponto final da sua história, na tentativa de entender a si mesmo e a sua circunstância. Machado de Assis detestava os que eram derramados nessas confidências, mas neste Rosário Octavio manda às urtigas o bruxo do Cosme Velho”.

Na dedicatória que me fez em Rosário de Minas, Octavio se lembra de nossa famosa caminhada avenida Rio Branco afora: “Ao amigo recentemente na capital – Cataguases, naturalmente! – Ronaldo Werneck, poeta dos pés à cabeça, ou vice-versa. Com o afetuoso abraço, sempre recordando um antológico almoço-caminhada, Rio 18.02.2008”. Como agora já passo a ter do Dounê, também tenho saudades do “Seu Octavio”, de suas impagáveis histórias, de seu humor ferino.

 

 

O Cão Nosso de Cada Dia

Na contracapa do livro de Dounê de cartuns & trocadilhos, “O Cão Nosso de Cada Dia” (Editora Record, Rio, 1990), escreveu seu grande amigo Fernando Sabino: ”Meu caro Dounê, você fez minha cãobeça: estou cãovencido de que “O Cão Nosso de Cada Dia” cãoquistará a admiracão do público. Fiquei cãotivado com a sua cãochorrada. Você é um cãopeão do humorismo nacional”.

     No prefácio, escreveu Horácio Klabin: “(...) Muita gente acha que, para trocadilhos, nossa língua portuguesa vale por três. Lembrando isso, expus alguns a Dounê e isso bastou para que ele começasse a colocar a imaginação para funcionar. (...) Resolvi então fazer um livro de cartuns e trocadilhos e chamei um especialista, o nosso amigo Dounê”,

 


     Quando do lançamento do livro em Cataguases, Dounê me fez a seguinte dedicatória: “Ao amigo Ronaldo, companheiro de luta nesta tarefa inglória de passar alguma coisa em nome da cultura. Abraço e obrigado pelo prestígio. Feliz Natal 22.12.90”. Por “tarefa inglória” ele se referia à sua atuação como um dos melhores secretários de cultura da história de Cataguases.

 

 

A Crônica Nossa de Cada Dia

Já de retorno a Cataguases, Dounê começa a publicar saborosas crônicas no jornal “Cataguases”. Daí resultou o bem-humorado e hilário livro “A Crônica Nossa de Cada Dia”. Na apresentação, escreve sua neta Isadora Spínola: “(...) Cresci fascinada pela maneira entusiasmada e otimista com que meu avô encara a vida. Sempre contado histórias piadas, sem contar suas ilustrações digitais, que o levaram a receber o sugestivo apelido de rei do photoshop (...) Literalmente meu avô nasceu para brilhar, recebeu esse dom e o vem desenvolvendo sempre com extrema competência”.

 

A esposa Talita, a neta Isadora e Dounê.

Na contracapa, diz a poeta Lina Tâmega Peixoto: “Já tenho mais uma forte razão para ler “O Cataguases”. São as suas deliciosas e saborosas crônicas que tenho lido com grande interesse. Não conhecia esse seu lado de prosador, esta sua capacidade de apreender os momentos e reter as coisas para decifrá-las com um fino humor numa linguagem tão expressiva e que cativa o leitor. Estou encantada com esta descoberta que se parece com a que se faz em mundos novos. Abraço na Talita e um especial para você. Com amizade e carinho, Lina”.

 

Cataguases, década de1980. RW, Dounê e Joaquim Branco.


E eu escrevo, também na contracapa: “Que maravilha de crônica. A moça é a Lena Hahn? Não deixe mais que “meros problemas de PTA o deixem fora do ar por outros 50 anos. Volte sempre, que a gente quer ler mais”. A bela Márcia Hahn (onde andará?) foi sua namorada nos anos 1960 e eu costumava ver os dois sentadinhos num banco da praça Rui Barbosa, Márcia sempre rindo das piadas e trocadilhos do Dounê. 

 

Um solitário Dounê na noite da praça.

No texto, eu me referia à crônica,onde ele dizia, nostálgico: “Das páginas de um velho álbum de fotografias retirei e, como num quebra-cabeça, remontei e dei nova vida a um retrato mutilado da amada que tempos depois, presença romântica de minha adolescência, desfilava feliz e indiferente ao lado de outro. Pronto, estava terminado. As luzes se apagaram e tudo acabou em um blecaute final”. Ah, sim, sobre PTA ele esclarece bem-humorado: “Desculpe a nossa falha! Por causa do PTA (Problemas Técnicos na Ampulheta) estivemos fora do ar por mais de 50 anos”.

 

Livraria da Travessa, Ipanema, 01.12.2021: Dounê e Talita no
lançamento de meu livro.


Lágrimas no velório

Cataguases, tarde do dia 23. Ainda agora, no velório de meu amigo, vejo sua esposa Talita, suas filhas Cláudia e Luciana e a neta Isadora se debruçarem em prantos sobre o ataúde, em beijos que marcavam a despedida final do esposo, do pai, do avô. Caiu uma discreta lágrima de meu rosto. A última vez que nos viramos foi no Rio, lançamento de meu livro na Travessa de Ipanema. Ele e Talita. Talita e ele, sempre juntos.

Dounê pegou meu livro e ficou elogiando a capa, coisa que entendia como poucos. Deu um largo sorriso contou duas piadas, fez três trocadilhos: o mesmo Dounê de sempre, jovial e bem-humoradíssimo aos 88 anos. Essa a lembrança que quero guardar de meu amigo, não essa tristeza que me deixa também quase em prantos na tarde outonal e friorenta deste junho já inverno.

Outono é sempre tempo de monotonia, langor e tristeza. E este é um início de inverno outonal. Como na Chanson d´automne de Verlaine: Les sanglots longs/ des violons de l´automne,/ blessent mon coeur/ D´une langueur monotone./ Tout suffocant/  et blême, quand/ sonne l'here,/je me souviens/ des jours anciens et je pleure;/ et je m'en vais/ au vent mauvais/ Qui m'emporte/ deçà, delà/ Pareil à la feuille morte. Dounê se foi agora, levado pelo vento mau entre as outonais folhas mortas.

 


Duas ou três coisas sobre meu amigo

     Dounê Rezende Spínola (Cataguases, 1983; Rio, 2022). Desenhista, publicitário, jornalista, arquiteto e humorista bissexto, colaborou com cartuns para O Pasquim e para o suplemento Cartum, do Jornal dos Sports. Trabalhou com Ziraldo na Revista Alterosa, em Belo Horizonte. Fez ilustrações para O Globo, para a revista O Cruzeiro e para o departamento de propaganda do Jornal do Brasil. Foi um dos substitutos de Péricles, na produção da página do Amigo da Onça em O Cruzeiro e diretor de arte da Revista do Diners Club do Brasil, a convite de seu editor, o jornalista Paulo Francis. Fez inúmeras capas para a Editora Civilização Brasileira e para a Editora Record, onde foi também diretor de arte por quase 20 anos. Em 2012 lança o bem-humorado livro “A crônica nossa de cada dia” (Juiz de Fora, Gráfica Rio Branco, Prefeitura Municipal de Cataguases). Ao voltar a residir em Cataguases, foi secretário de cultura do município. Com seu livro “O Cão Nosso de Cada Dia” (Ed. Record, 1990), com seus cartuns & trocadilhos, passa a compor a galeria dos grandes cartunistas mineiros, ao lado de Henfil, Nani e Ziraldo.

15 de jun. de 2022

Três quartos de melancolia


Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada


É dia claro quando chego ao hotel na Paraíba. Venho da Cidade do Cinema montada na Usina Cultural Saelpa, de João Pessoa. Mais uma noite em (preto e) branco a digitar e editar textos para o jornal eletrônico do Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa, o “Cineport na Tela”. Nove e meia da matina e caio na cama, exausto de lutar com palavras noite aforadentro.

Ligo a tevê só pra ver. Pra ver se durmo. Mas minha atenção é despertada por um documentário finlandês num canal a cabo, “3 Quartos de Melancolia”, realizado em 2004 por Pirjo Honkasalo (Helsinque, 1947), responsável pela direção, câmera e edição do filme.  Tomo de meu noteboook e anoto com minha caneta Cineport

     Aqui pra nós, o notebook é um caderno sem pauta (por isso sempre desafino) comprado ano passado em Veneza. Tá escrito na capa Notebook, e alguém duvida? Depois, a textura do papel é uma beleza. A Cine/pen/port corre macia por meu Note.  E anoto o que se segue em meu Book, que fica assim mesmo como se segue, pois assim saiu e assim segue. Pois.

Um mundo de silêncio e perplexidade. As sequelas da guerra da Chechênia vistas pelos pequenos grandes olhos de meninos russos na Academia Militar de Kronstadt. Parecem atores-personagens, tal a força dramática dessa pequena gente de carne e osso e amargura. As panorâmicas, a madrugada sanguínea (palavra certa) e fresca sobre as montanhas – tudo lembra pombas e céu escarlate e Raimundo Correa: 

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...


 


     O cavalo na bruma. Os silêncios. Os travellings verticais belíssimos.  Construir um filme. Câmera fechada sobre o silêncio. Sobre o pequeno Aslam, 11 anos, o menino estuprado pelos soldados russos. Close em Adam, 12 anos, que perdeu o pai. Em Milana, 19 anos, estuprada aos 13. Câmera ainda em close sobre Milana, agora abraçada à irmã Kiki, de uns dois anos. Silêncio constrangedor. Milana começa a rezar: “Salva-me da vergonha, meu Deus, bendiga todos os órfãos, ouça minha prece, salva-me da vergonha!”.

Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais

     A câmera em close sobre os dedos dos meninos. Dos pés, das mãos, desses dedos de crianças que se espreguiçam num acordar para o nada. Choro matinal. Um galo canta ao longe. Um jato risca o céu vermelho. Ao ouvir o barulho, os “olhos estuprados” de Aslam são puro estupor, puro medo e apreensão. Silêncio.


     Tudo no mais perfeito silêncio, que escorre em contrapono às notas de rara pungência da música-tema. A banda sonora corretíssima como elemento de tensão. Pastores e cabras. Câmera passeia em lenta panorâmica sobre montanhas e vales, agora azulados pela semiclaridade, e vai ao encontro de pastores.
 

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...

     Exausto, fecho os olhos. Mas custo a dormir, vigiado por olhares infantis que vagam sobre o nada – e mesmo assim me questionam. 

 

João Pessoa, 01.07.2007
in Há Controvérsias 2, 2011

8 de jun. de 2022

Gotas de sangue & poesia

 


Give me the gun, Pumpy! Vociferava o grandalhão-marfim John Wayne – o protótipo do “herói” americano – para o ébano-gigante Woody Strode, o Pump, na sequência-chave do filme de John Ford “O homem que matou o facínora” (The man who shot Liberty Valance, 1962).  “The gun” era o rifle, pedido e passado por Pump a Tom Doniphon (Wayne) segundos antes dele liquidar Liberty Valance (Lee Marvin), o facínora do título em português.  Tempos em que a América-mundo girava em ritmo de faroeste – onde caubóis nem sempre do bem matavam índios nem sempre do mal. E por “índios” entenda-se qualquer bandido, mesmo bandidos não sendo.Tempos que perduram ainda hoje.

A recente tragédia americana com os estudantes de Virginia Tech, em Blacksburg, lembrou-me que exatamente em abril de 1998 – quando de meu retorno a Cataguases, há quase dez anos – eu escrevia em minha coluna “Há Controvérsias” no Jornal do Marcos uma crônica intitulada “Deserto Aborrecido”, que girava sobre o mesmo tema. Não de homens que matam facínoras. Mas de meninos que simplesmente matam o que estiver pela frente.


Nos EUA, mais que em qualquer outro lugar, o mundo realmente gira sobre si mesmo, como balas no tambor de um revólver. E disparates como esse de agora voltam sempre, como se disparassem (palavra certa) em cima da(s) gente(s).  Bush, esse ser presidencialmente inacreditável, declarou que os estudantes “estavam no lugar errado na hora errada”. Parece autorreferência. 

Ao escrever minha crônica, rifles e demais símbolos fálicos abundavam, com licença da palavra.O presidente americano era Bill Clinton, na época às voltas com o escândalo Monica Lewinsky, a moça do charuto, lembram-se? Em 24 de março de 1998, em Jonesboro, Arkansas, os meninos Andrew Golden, 11 anos, e Mitchell Johnson, 13, mataram a tiros quatro estudantes e uma professora durante um treinamento contra incêndio na escola onde estudavam. Um ano depois, aconteceria outra tragédia de grandes proporções numa escola americana, tratada por Michael Moore em filme memorável, Bowling for Columbine/ Tiros em Columbine (2002). Em 20 de abril de 1999, no Instituto Columbine, Colorado, Eric Harris de 18 anos, e Dylan Klebold, 17, atiraram e atiraram e atiraram a esmo – e mesmo a esmo mataram mesmo muitos mestres e colegas.

Perguntas que ainda hoje perduram: como Harris e seu amigo conseguiram levar para a Columbine High School quatro armas pesadas e dezenas de quilos de explosivos? Por que atiraram a esmo, enquanto explodiam quatro bombas, e depois executaram com tiros na cabeça alguns dos melhores atletas da escola? Queriam mesmo comemorar o aniversário de Adolf Hitler, nascido há 110 anos, num mesmo 20 de abril? Não por caso, os matadores de Columbine foram incensados como heróis por Cho Seung-Hui, o atirador enlouquecido que agora em 16 de abril matou 30 estudantes na Universidade Virginia Tech, em Blacksburg.  


April is the cruelest month, escrevia o poeta T.S. Eliot (Saint Louis, 1888; Londres, 1965) em The Wasteland, um dos poemas-marco do século XX. Ezra Pound (que leu The Wasteland no original e fez a mais célebre revisão da história da literatura, totalmente aceita por Eliot) dizia que os poetas são as antenas da raça. Fica então mais uma pergunta: a reincidência desses massacres americanos em abril, este “mês mais que cruel”, contribui para confirmar o poder de antecipação da poesia? 

Fica a pergunta e suas controvérsias. Há uma gota de sangue em cada poema, dizia Mário de Andrade em 1917, muito antes do “modernismo” desses massacres. Matança tá na moda. O mundo, “esse deserto aborrecido”, continua a confirmar o título de minha crônica anterior, dito pelo pai de meu amigo, o escritor Carlos Alberto Castelo Branco, que nesse entretempo se foi para sempre. O pai e o filho. Sim, “pela morte de Deus”. Não “por tiro lá no sertão”, como soava a canção de Sérgio Ricardo com a letra que Glauber Rocha fez para Deus e o Diabo na Terra do Sol.  Nos EUA, antes como agora, a morte vem mesmo de bala encontrada, de tiros acertados por facínoras que matam os homens.  Tiros delivery, certeiros – entregues no/pelo destino, a domicílio. E a vinte e quatro quadros por segundo. Cinema-verdade é isso aí.  A América (não) muda.

29.04.2007