9 de nov. de 2020

Nós quem, cara-pálida?

 


Resenha do livro Super-Homem e seus amigos do peito (Ariel Dorfman e Manuel Jofré – Paz e Terra, Rio, 1978), que republico agora quando os chilenos comemoram a votação no último dia 25 de outubro do plebiscito para uma nova Constituinte.

 

 


Comics. Bande Dessinée. Fumetti. Histórias em quadrinhos. São vários os  nomes designando o contexto onde se desenrolam as aventuras dos imbatíveis, assépticos e devidamente assexuados heróis dos quadrinhos, de Tarzan a Flash Gordon, do Zorro ao Super-Homem. Em termos formais, de estruturas dos quadrinhos, a origem das historinhas remonta quase à própria origem do homem: os primitivos desenhos das cavernas possuem uma estrutura interna, de interligação, muito próxima da lógica narrativa dos quadrinhos de hoje.

Mas a trajetória dos quadrinhos como tal começou no início do século XX e teve sua verdadeira explosão, seu boom (para usar uma palavra em si onomatopaica, dentro do contexto dos comics) durante o chamado “esforço de guerra” americano na década de 1940. Aí sim, Tio Sam descobriu a força dos quadrinhos como aparelho ideológico de estado. Exemplo disso é o Capitão América – como o próprio nome indica, o baluarte do esforço de guerra americano, o herói por excelência dos GIs.

 

Sintaxe & ideologia



 Até os anos 1960, a intelligentsia ocidental praticamente “torcia o nariz” para os comics: subproduto, subliteratura etc. Mas os anos 1960 trouxeram também outra explosão além das indefectíveis bombinhas ianques lançadas no Vietnam, em pleno delta do Mekong. Pela primeira vez, as pessoas iam ao cinema não pelos atores, mas pelos autores.  Não mais Gary Cooper ou Ingrid Bergman, La Monroe ou Mr. Bogart. Aos poucos, o público começava a conhecer também quem estava por trás das câmeras: Fellini, Resnais, Bergman, Godard.

E foram exatamente esses nomes, “estrelando” em letras garrafais nos cartazes cinematográficos, que começaram a dar grande atenção às histórias em quadrinhos. Nada de novo, por sinal. A linguagem dos quadrinhos está extremamente próxima à do cinema.  É a grande simbiose entre os comics e as story-boards. Enquadramentos, cortes, closes, plongées, jogos de sombra e luz (claro/escuro) – a sintaxe dos quadrinhos é cinematográfica por excelência.

Assim, não foi à toa que cineastas do porte de um Fellini ou de um Resnais começaram a dar entrevistas, a escrever artigos sobre quadrinhos, até a participar ativamente do Le Club de La Bande Dessinée. Estavam ali Resnais, Truffaut, Godard, o próprio Fellini, trocando seus gibis como nos melhores momentos da infância. Ainda não se falava em ideologia. Os quadrinhos eram revistos enquanto estética, enquanto linguagem, enquanto design gráfico.

Passou a ser “bem” curtir os quadrinhos: dava até um certo status entre a intelligentsia. E, claro, tome de teoria, que a turma não é de brincadeira: de Umberto Eco a Sérgio Augusto (que chegou a pensar um filme – sobre os comics), dos ensaios de Alain Resnais aos vários livros do meu amigo Moacy Cirne, praticamente esgotando o assunto, isto é, esgotando ao nível da linguagem, da estética. Neca de ideologia.

 


Na verdade, temos que admitir que são de primeira linha os traços de um Alex Raymond (Flash Gordon), de um Hogarth (Tarzan), de um Eisner (Espírito), a trindade máxima dos quadrinhos, já computados como clássicos dos comics. E lá vem teoria, “vasos comunicantes” & outras flores mais amenas dos mass-medias. A retomada foi tão grande que os americanos chegaram a ensaiar um rides again do Capitão América, que já fora devidamente sepultado entre os heróis da Segunda Guerra. Explica-se: a escalada no Vietnam estava no auge. Quer dizer, por trás da estética, perdurava, como sempre, a ideologia.

Enquanto os estetas se extasiavam com a qualidade gráfica dos comics, Tio Sam mandava brasa, quer dizer, mandava sua ideologia pelas entrelinhas, ou pelos “entre-quadrinhos”, como queiram. Os “meninos do Brasil”, os submeninos latino-americanos, dos oito aos oitenta, recebiam e continuam recebendo doses subliminares da ideologia capitalista através da febre dos quadrinhos.

 

Historinhas de negação

No início dos anos 1970, o Chile viveu uma experiência única na América Latina, que não pode ser comparada nem mesmo à Cuba de Castro. Pela primeira vez, o socialismo chegava ao poder através de eleições diretas. A curta trajetória de Allende no poder (1970/1973) gerou entre os intelectuais chilenos uma série de estudos buscando trazer à tona os graves problemas, e, de certa forma, direcionar as novas veredas que poderiam ser abertas para imprimir mais humanidade  aos destinos da América Latina. Os chilenos perceberam de imediato a força ideológica dos meios de comunicação, e vários ensaios foram feitos sobre o assunto.

 

 Este Super-Homem e seus amigos do peito é um deles. Aqui, Ariel Dorfman e Manuel Jofré procuram analisar as “tramoias ideológicas” que se encontram por trás da aparente ingenuidade dos quadrinhos. À primeira vista, o livro é um festival de lugares-comuns, um sem-número de “descobertas” de fatores óbvios dentro do universo dos quadrinhos, como listado a seguir.

“O papel da ideologia é eliminar as contradições que os homens e o sistema social capitalista possuem. Nega ou deforma o fato histórico de que existem países desenvolvidos e subdesenvolvidos (fixando o espaço das histórias em quadrinhos numa terra de ninguém, como, por exemplo, nos casos do Oeste, da selva ou da cidade gótica de Batman); nega a transformação social (propondo um mundo circular onde sempre triunfam os super-heróis, seja Batman, Tarzan ou Zorro); nega a propriedade privada dos meios de produção (mostrando nos quadrinhos apenas as economias artesanais e primitivas); nega as contradições históricas e sociais (convertendo-as em problemas psicológicos de um indivíduo);

“Nega a dinâmica da dialética (propondo simples conflitos); nega as contradições insuperáveis do capitalismo (com o super-herói superando os problemas da justiça); nega os seres humanos  (personificando o dinheiro); nega o social (ao mostrar os bons sempre sozinhos); nega a humanidade (colocando o super-herói como um messias que impõe a justiça e a ordem convertendo-o em um ser supratemporal dotado de poderes eternos); nega a liberdade (o super-herói castiga os que se rebelam, prendendo-os ou recapturando-os para o sistema); nega a igualdade entre os seres humanos (construindo um mundo baseado em relações verticais de domínio); nega o trabalho (os personagens estão sempre ociosos); nega a criação (originando um mundo repetitivo); e claro que, além de negar muitíssimas coisas mais, a ideologia das histórias em quadrinhos nega a si própria (nunca nenhum personagem as lê)”.

 

Parafernália ideológica

 


Muito bem. Aparentemente, numa primeira olhada nos comics, nós conseguimos visualizar toda essa parafernália ideológica. Naturalmente, todo o pessoal que andou escrevendo sobre a estética dos quadrinhos sabia disso. Mas, esse fato não interessava à especificidade de seus discursos, que eram trabalhados ao nível sintático, não semântico; ao nível estético, não ideológico. “Nós quem, cara-pálida?”, diria o Tonto para o Zorro, na velha piada citada por Dorfman nesse livro. Nós que, de certa forma, temos condições de entender o que está por trás da “inocência” dos super-heróis. Mas, e os outros? E as milhares de pessoas que recebem massivamente, sem perceber, a “mensagem” real que está por trás das aventuras dos super-heróis?

Dorfman & Jofré utilizam propositadamente em seu ensaio uma linguagem também ingênua – de certa forma um ersatz da própria linguagem dos quadrinhos. Explica-se: eles sabiam bem quem deveria ser o seu público, qual seria a meta, o alcance de seu trabalho. Exatamente aquelas pessoas ludibriadas pelo fascínio dos quadrinhos e de suas aventuras mirabolantes.

Dorfman disseca o Llanero Solitario (Lone Ranger, o nosso Zorro) através da análise específica de uma de suas aventuras. Muita coisa certa. Outras, óbvias; mas necessárias. Jofré abre o leque de seu trabalho, procurando analisar os quadrinhos em termos globais. Claro, também ao nível ideológico – e nisso seu ensaio tem mais consistência. Ambos conduzem o trabalho tendo como escopo um mapeamento ideológico do universo dos quadrinhos. E, como os quadrinhos, os ensaios são também eivados, propositalmente, de um certo maniqueísmo.  

Mas isso era necessário dentro do contexto da época, quando Allende desaparecia no final do último quadrinho, solitário, pressionado pelos mal-encarados “fazendeiros do novo poder” e seus asseclas, derrubado por seu “arqui-inimigo” Pinochet e seu bando armado. Nem mesmo Tonto, seu fiel amigo, restou. Silver está cansado e capenga, os desprotegidos continuarão desprotegidos: a lei da selva voltou aos Andes, perdão, ao Oeste. Nesta trágica, derradeira aventura, Zorro-Allende acaba derrubado por um balaço solitário.

 

Jofré: valores de contrabando

A seguir, destaco alguns trechos das observações de Manuel Jofré, que compõem a segunda parte do livro.

      “O personagem com o qual nos identificamos ao ler uma história em quadrinhos não apenas possui um valor, como também nos passa vários outros de contrabando.  Para esclarecer, diremos que um valor é simplesmente nesta análise uma atitude humana, um traço de conduta, colocado a nível abstrato. Se o personagem que representa o valor justiça agride um negro, temos aí, imediatamente, outro valor: a segregação racial. Por isso, haveria que distinguir entre os valores que representam os personagens – são universais e facilmente encontráveis – e os que eles mesmos postulam (é aqui onde se transmite a ideologia com toda a sua força).

     “É a diferença entre o que os personagens parecem ser e o que verdadeiramente são. Isto visto sob um aspecto dos quadrinhos, porque, além deste, existe um segundo nível de deformação. Existem personagens que usualmente têm uma significação na realidade social objetiva, por exemplo, um juiz. Neste caso não há necessidade de caracterizá-lo para que represente algum valor, o que já possui é suficiente.

“E se o personagem está positivamente caracterizado, o leitor já está identificado com ele, mas os resultados de seus julgamentos – que compartilhamos na leitura – podem ser absolutamente errôneos. Ou melhor, personagens que são postos nos quadrinhos como representantes de uma classe social ou de um setor de classe, têm opiniões ou ações pertencentes à outra classe. Parecem ser uma coisa mas na realidade são outra. Disfarçam um valor, um comportamento atrás do outro.

“(...)  O suspense, a sucessão progressiva de acontecimentos, prepara o clima conflitivo.  Chega o conflito, desatado em uma página (de seis a oito quadrinhos). Em seguida, a historieta deve oferecer outro centro de interesse. Nesse momento, o importante, como mecanismo de atração, é a surpresa. Surpresa diante do resultado do conflito, surpresa diante do novo curso que tomam as ações.

“A surpresa une-se ao suspense e prepara o terreno para o conflito seguinte. Assim a visão que se tem da história é a de um simples jogo de ações, nunca um conflito social. O implicado é um indivíduo, nunca um setor social nem o sistema. O conflito torna a historieta interessante. De três conflitos em um episódio, as forças do bem (o super-herói) podem perder um deles, até dois, se isso der mais suspense e permitir que a vitória final seja impressa mais fortemente na mente do leitor. Os super-heróis podem perder uma batalha, mas não a guerra. Não sofrem derrotas estratégicas.

“(...) O herói necessita vencer para ser super-herói e só vencendo e sendo indivíduo excepcional é que se produz a identificação afetiva necessária para que divirta. Quadrinhos, desenhos e letras, facilitam isso (a que o leitor vá direto pelo caminho desenhado pela ideologia burguesa). Por isso, quando já se leu muito uma série de história em quadrinhos, e ela já é conhecida, o leitor crítico pode adivinhar o caminho que a aventura seguirá.  A estrutura repetitiva e simplista começa a revelar-se.

(...) Evidentemente a história em quadrinhos tradicional burguesa porta todos os valores graças aos quais sobrevive o sistema capitalista. Um papel importante, nesse aspecto, é cumprido pela repressão sexual. Em várias dessas séries reúnem-se personagens dos dois sexos, e a incitação à aventura é constante entre eles. No entanto, aproximam-se mas não se beijam, olham-se mas não se tocam; desejam-se mas não se amam.

“Esta é a relação entre Super-Homem e Miriam Lane, entre Tarzan e Jane, entre Donald e Margarida, entre Mickey e Minie.  Em alguns desses casos, a atração é planejada racionalmente pela mulher, mas o homem resiste e não cumpre o papel masculino. Para muitos desses super-heróis as pessoas mais próximas são homens e não mulheres. É assim entre Tonto e Zorro, Batman e Robin. Em Tom e Jerry existem personagens sem nenhuma manifestação sexual. A forte relação erótica ou de aversão, de Bolinha por Glória ou por Luluzinha, respectivamente, demonstra até que ponto uma revista apresentada como inocente pode deformar os leitores no que diz respeito a determinadas atitudes humanas vitais como, no caso, o amor sexualizado. 

“(...) Outra característica sempre presente é o predomínio do quantitativo sobre o qualitativo. Tio Patinhas não se importa de ser ranzinza, avarento e explorador, desde que seja o homem mais rico do mundo. A única coisa que Bolinha sabe fazer com dinheiro é tomar o  máximo possível de sorvete. Super-Homem é super-herói porque tem mais força, mais visão, mais velocidade. O progresso humano e social de um personagem plasma-se no conforto material, nos objetos que o rodeiam, mas nunca numa capacidade criativa, nunca na riqueza interior, nunca na qualidade das relações humanas.

“(...) Tudo isso faz com o leitor assimile ideias como o servilismo, a submissão, o medo da renovação, o conservadorismo e um autoritarismo do qual é impossível fugir. (...) A magia nem sempre é uma anedota a mais, mas também é um fator atuante e indispensável. Feiticeiros, magos, adivinhos, profecias, encantamentos, são ações constantes em Patópolis, na selva de Tarzan, no Oeste, na ficção científica, no mundo da Luluzinha. Falar de magia outorgando-lhe poder mobilizador das ações ou capacidade resolutiva é mais uma forma de sair do cotidiano, do histórico. Seria demais dizer que magia é postulada como atividade eterna e permanente na história.

“Todos esses recursos conservadores contribuem para tornar naturais os conflitos sociais. Um conflito se eterniza ao ser repetido uma vez ou outra em cada episódio. O mundo assim construído aparece com uma característica essencial. Como um mundo detido. Isto é, carente de qualquer progresso".

 

Ronaldo Werneck

Rio, 1978

14 de out. de 2020

“ELA”, CLARICE: JÁ CENTENÁRIA

 


Texto publicado no meu livro “Há Controvérsias 2”, que transcrevo agora em homenagem aos 100 anos de Clarice Lispector (1920-1977).

  

Engraçado como a gente vai assumindo um certo tipo de idiossincrasia que perdura vida afora. Fernando Pessoa nunca me interessou como poeta, e nunca escondi isso, o que me granjeou – aqui pra minha horta, que é onde cabe melhor granjear – um sem-número de mal-entendidos e até rusgas com namoradas tipicamente fernandólatras. Uma delas, não por acaso, de sobrenome Horta. Outra idiossincrasia é com Clarice Lispector. Fora um ou outro conto lido assim-assim na juventude, ainda na Revista Senhor, ou de crônicas esparsas em sua época de Jornal do Brasil, jamais consegui chegar perto do coração selvagem de altíssimas elucubrações de suas maçãs no escuro – ou mesmo me interessar por aquele tipo de paixão segundo a, b, c, d, e, f, GH.

Mas eis que tudo um dia tem um dia pra tudo. Eu era editor de textos do Centro Cultural Banco do Brasil-Rio, nos anos 1990, e o CCBB programou em 1992 uma grande exposição sobre Clarice por ocasião dos 15 anos de sua morte. Como sempre, fui encarregado de redigir o texto oficial do CCBB para o catálogo do evento. Mais um entre aquela infinidade de textos que escrevi sobre teatro, música, artes plásticas, literatura, fotografia, cinema & etc etc, sem nunca colocar meu  nome, assinando sempre “Centro Cultural  Banco do Brasil” – o que quase acabou me deixando com uma baita crise de identidade. Às vezes, durante os vernissages, sentia-me tentando a “esquecer o Ronaldo” e apresentar-me assim: “Prazer, CCBB”.

 


 

Gisela, Caetano, Lúcio


 Minha sala no CCBB era em frente àquela em que ficaria a exposição de Clarice, no segundo andar do prédio. Gisela Magalhães, a arquiteta curadora do projeto de ambientação da mostra, vinha sempre bater papo, tomar café e fumar um cigarrinho amigo, amigos que ficamos. E me falava de sua paixão por Clarice e por Glauber Rocha (seria ela a curadora da belíssima exposição sobre Glauber que realizaríamos em seguida). Durante nossas conversas, eu ficava pensando o que iria escrever – logo eu, que não era lá muito chegado em Clarice. Claro que não disse isso pra Gisela, que me falava entusiasmada que o Caetano Veloso estava também preparando um texto especial para a exposição.

Caetano escreveria em seu texto, que só li depois que aprontei o meu: “O primeiro contato com um texto de Clarice (eu ainda morava em Santo Amaro) teve um enorme impacto sobre mim. Senti muita alegria por encontrar um estilo novo, moderno – eu estava procurando ou esperando alguma coisa que eu ia chamar de “moderno”, que eu já chamava de “moderno” –, mas essa alegria estética (eu chegava mesmo a rir) era acompanhada da experiência de crescente intimidade com o mundo sensível que as palavras evocavam, insinuavam, deixavam dar-se”. 

E havia ainda o Lúcio Cardoso (cujo texto também só li depois, com o catálogo já pronto), a dizer coisas como “Clarice devora-se a si mesma, procurando incorporar ao seu dom de descoberta essa novidade na sensação. Não situa seres: arrola máquinas de sentir. Não há personagens: há maneiras de Clarice inventar. Suas sensações, todas elas de alto talento, repousam numa mecânica única – a da surpresa”.  Bem, Caetano e Lúcio deviam gostar da Clarice. Mas, eu?

Fiz então o que sempre faço para construir meus textos. Mergulhei no universo de Clarice, li muita, muita coisa dela, pra ver no que dava. Não dava em nada. Nada brotava e o dia de mandar o texto pra gráfica chegando. Na véspera, como sempre, varei a noite e boa parte da manhã lendo-relendo-marcando-teclando as pretinhas de minha velha “Lettera-22”.

Saiu um texto muito curioso, o dia já alto, onde eu não mencionava o nome Clarice Lispector sequer uma vez. Será que estava temendo que alguém percebesse que agora eu “gostava-não-gostava” dela? Com vocês, então, o texto do “Centro Cultural Banco do Brasil” (“Prazer!”)  para a exposição “A paixão segundo Clarice Lispector”. Muita gente achou uma das melhores coisas que escrevi para o CCBB. Pois é, Clarice, quem diria!

 




NO TIMBRE DE SUAS PALAVRAS


Ela gostava de palavras, de frases soltas e “faruscantes”. Palavras sem sentido, que eram sua liberdade, “impacto de sílabas ofuscantes”. E pouco se importava em ser entendida, pois sabia não escrever por escolha, mas por íntima ordem de comando.

Ela possuía intensamente em si um pedacinho de âmbar. E exalava com gosto esse cheiro de almíscar e mistério que sabia a inspiração que não é loucura, mas Deus ou qualquer coisa simples cheirando a âmbar. Leve e intensamente. Ela dava sentido à contradição, ordenava os paradoxos.

Ela sabia como ninguém que escrever é reflexo do perguntar. E que estava destinada a indagar sempre, pois trabalhava no diapasão do inesperado. Ela escrevia assim por fatalidade de voz. E era seu próprio timbre: insígnia, amplidão, riqueza sonora. E queria escrever com palavras tão agarradas que não houvesse intervalo entre elas e ela. E no fundo não havia, pois escrever foi resultado fatal de seu ato de vida.

Ela escrevia sabendo que escrever é sem aviso prévio. Apenas vem, e vinha assim como se vivesse ao correr do tempo, sem fazer literatura. Ela apenas escrevia e assim se livrava de si e assim talvez pudesse descansar.

Ela vivia intensamente as palavras. Essas palavras que estão todas aqui, com o poder de atrito de suas sílabas ofuscantes. Estão aqui elas e ela, intensamente juntas, fábricas e fabrico. Ela se faz inteira nesses fragmentos, nesses estilhaços de si mesma, que agora se juntam plenos de vida, tanta vida, tanta.

Ela amaria aqui estar, junto a suas palavras. Elas e ela, intactas como se repousassem. Está aqui sua voz, seu timbre de rara ressonância surgindo dessa ausência em meio-tom que se presentifica no preto-e-branco dessas fotos, nesse ambiente tão ela, agora exposto e catalogado em tons que saltam do marinho mais profundo para perto, bem perto do selvagem vermelho de seu coração.

Ela soube sempre de suas palavras, como se soubesse sempre de sua magia, do fascínio desses filmes que aqui estão e que só existem por elas existirem, suas palavras. Suas palavras nessas leituras dramatizadas, suas palavras que desvelam o abstrato tecido de suas pinturas agora reveladas, suas palavras presentes mesmo na luz que foca a companheira mais íntima, a velha máquina de palavras a quem pensava presentear não sabia como, agradecida pela amiga que captava suas sutilezas e a fazia viver intensamente essas palavras, suas palavras, melhor homenagem que lhe fazemos nesses 15 anos de ausência que se presentifica agora e sempre. Gostavam dela, as palavras, essas palavras que se entregostam, suas palavras desprendendo-se de si, livrando-a de si mesma, como se descansassem. Elas e ela.

 



A dama do Leme e a maçã no escuro

 

Clarice                                  
veio de um mistério.                          
partiu para outro.                             
Ficamos sem saber a                          
essência do mistério.                          
Ou o mistério não era essencial,

era Clarice viajando nele.

Carlos Drummond de Andrade

 

Finalizo essa homenagem ao centenário de Clarice Lispector com alguns dos vários emails recebidos sobre meu texto “No timbre de suas palavras”: emails e mais emeios e mais, muito mais. Um espanto, essa moça. Drummond tinha razão: que mistério tem Clarice?

 

“Adorei, Ronaldo. Fica devendo uma crônica sobre o documentarista que saía de câmera em punho para registrar os autores, diretores, eventos do CCBB (“Prazer”!) Bjs. Martha”.

Martha Pagy, Rio, Ex Coordenadora da Divisão de Artes do CCBB.

 

“Ronnie, excelente a prosa-poema que escreveu sobre Clarice. Conseguiu fazer bem, sem dizer que gostava daquilo sobre o que escrevia. Compartilho um pouco com você do ponto de vista, mas acrescento um gosto-não-gosto assim: divido sua leitura com outra do tipo Graciliano/Cabral + Borges/Camus. Além disso, digo que seus contos são melhores do que os romances. Já experimentou ler “Mistério em São Cristóvão”? Vai-se lembrar, inclusive, do nosso querido Victor Giudice, que nasceu por aquelas bandas e nem por isso deixou de ser grande. Abraços clandestinos, J.

Joaquim Branco, poeta, Cataguases.

 

Chose de loque. Você acaba de despir o pé da estátua da criação do texto! Concordo com você sobre Fernando Pessoa e Clarice (exceto os Contos de São Cristóvão e aquele da mulher pequenina que saiu na revista Senhor). Mas você dá uma aula, aula mesma, sobre os fundamentos do discurso da ambiguidade. (...) Seu texto tem a força de tomar o significado que lhe desse o leitor. Seus amigos lacanianos devem ter amado. Álvaro de Sá disse de meu livro Inexílio que era um poema oco, um vazio que o leitor teria de completar com sua experiência própria. Você fez coisa melhor... dispensou o leitor. Não deu a menor ajuda nem a Clarice nem ao visitante da exposição para que se encontrassem num significado comum. Acho que esse seu texto proteico propõe questões de dimensões “gregas” e merece ser discutido do ponto de vista da sua “finalidade”, de sua razão e teleologia. Ou seja, você mexeu num vespeiro e eu só estou agitando os bichinhos. Beijos arcádicos ou acádicos. Xico Cabral”.

Francisco Marcelo Cabral, poeta, Rio.

 

“Seu texto sobre Clarice estava tão grandiosamente bom que o recortei e o guardei. Li as apreciações sobre ele e lhe mando a minha: você perfura com a agulha da inteligência e da sutil sensibilidade o texto literário de Clarice que ele mostra a face de dentro, a que tem olhos para ver o que é perturbador em sua essência primeira. Abraços, Lina”.

Lina Tâmega Peixoto, poeta, Brasília.

 

“Pois é, Ronaldo, você tem todo o direito de não gostar de Fernando Pessoa e de Clarice Lispector, dois ícones intemporais da literatura de língua portuguesa. Mas encontro no texto que manda pela internet um caso enternecedor de amor não declarado pela sempre bela e amável Clarice de todos os leitores. Parabéns pela sinceridade. E abraços do leitor de sempre, Lázaro”.

 Lázaro Barreto, escritor, Divinópolis.

 

“Fala, Ronaldo. Para entrar na corrente provocada pelo teu artigo, estou te mandando este poema que devo ter escrito lá pelos anos 80 e que incluí entre os... contos de “Malvadeza Durão e outros contos” (Agir, 2006). Abraço do teu leitor Flávio”.

Flávio Moreira da Costa, escritor, Rio.

 



Fecho então esta controvertida e misteriosa série de “claricices/claricidades” com o belo poema “Maçã no Escuro”, enviado por meu amigo, o hoje saudoso escritor Flávio Moreira da Costa sobre “A Dama do Leme”. Engraçado que também eu morei por muitos anos no Leme, mas nunca topei com minha vizinha Clarice. Corre assim o poema do Flávio Moreira da Costa:

     Maçã no Escuro


        A Dama do Leme apalpa uma maçã no escuro.

Sobressalta-se com o tic-tac do relógio

é a hora, a hora da estrela e do lobo:

 

Tudo e nada na balança da Casa do Tempo

quando passado invade futuro e o presente

é apenas uma pergunta pré-socrática.

(Nessa cidade sitiada,

"a verdade é um instante".)

Só e só

como quem desata amarras, laços de família:

– onde estivestes à noite, Dama do Leme?

 

O lustre, o lastro, olhos de lagarto,

Ela caminha a apalpar seus arredores 

na via crucis do corpo. Barata alguma

a lhe invadir a consciência e a filosofia.

 

Nada de legiões estrangeiras, nada

de imitações da rosa:

a felicidade é clandestina!

Ela sonha, ela grita, ela chora, ela ri

o invisível riso do ser diáfano.

 

A Dama do Leme come sua maçã no escuro

e pulsa, pulsa

o coração selvagem da vida.

 





24 de set. de 2020

VINTE ANOS SEM BADEN POWELL

 

 “Baden-Chopin: Samba em prelúdio”

 

“Baden de branco/ e fala magra e mansa e magro/ e tão mago e leve/  como se no fim por vício/ levitasse/ como se pelas veredas de Vinicius/ seu violão voasse”. Assim eu fechava um poema dedicado a Baden Powell (1937-2000) por ocasião dos dez anos de sua morte.

Num dia do início dos anos 1990 Baden me procurou no Rio, com o projeto de um show com seus afro-sambas, que queria levar ao CCBB. Convivi com ele por algum tempo e acabamos  amigos: às vezes, ele aparecia lá em casa em Copacabana e, assim como quem não quer nada, soltava seus dedos mágicos naquele violão de nunca mais.

No dia 26 de setembro agora completam-se 20 anos sem Baden Powell e seu “violão veloz, seus acordes alucinados, alucinantes”. Volto a homenageá-lo, reproduzindo, com alguns acréscimos, o texto que escrevi quando de sua morte.

    

A BÊNÇÃO, BADEN POWELL!

RW/Cataguases, outubro de 2000

 

Era assim – com esse “A bênção, Baden Powell! – que eu fechava o show Dentro & Fora da Melodia, que escrevi há coisa de dois anos, apresentado em Cataguases no Anfiteatro do Museu da Eletricidade no Natal de 1998. E foi no mesmo local, semana passada, durante uma apresentação do grupo de chorinho Patápio Silva, que me deu uma vontade súbita de pedir de novo e para sempre a bênção de Baden Powell. Era sexta-feira, uma “sexta básica”, e Baden morrera no Rio de Janeiro há apenas dois dias.

A meu lado, o baterista Afonso Vieira – o prezado amigo, parceiro e compadre Afonsinho, que se apresentara várias vezes com Baden na Europa dos anos 1970 – ouvia com ares de grande satisfação o grupo de chorinho cataguasense. Eu confesso que estava meio alheio, olhando o rapaz do violão e pensando na morte da bezerra, quer dizer, do Baden, quando o grupo iniciou aqueles acordes rápidos e guerreiros de Berimbau, exatamente a música que eu usara para terminar meu show. Afonsinho acenou-me, polegar pra cima, e cantarolamos juntos, baixo-baixinho, a canção do Baden com o Vinicius, eterna como eles: “quem de dentro de si não sai/ vai morrer sem amar ninguém”.

"Baden-Vinicius: Cantando até o sol raiar"

Berimbau

No dia 7 de setembro de 1964, Vinicius de Moraes escrevia carta para Tom Jobim, direto do Porto do Havre:  “Tomzinho querido, deixei Paris para trás com a saudade de um ano de amor e pela frente tem o Brasil, que é uma paixão permanente em minha vida de constante exilado. A coisa ruim é que hoje é 7 de setembro, data nacional, e em nossa Embaixada há uma festa que me cairia muito bem, com o Baden mandando brasa no violão. (...) Estou doido pra ver você e o Carlinhos (Carlos Lyra) e recomeçarmos a trabalhar”.

“Imagine que este ano foi praticamente dedicado ao Baden, pois Paris não é brincadeira. (...) Fiquei muito contente com a notícia do sucesso de Berimbau aí no Brasil: dizem que estão tocando a musiquinha pra valer. (...) Lembro-me tão bem quando fizemos o samba há coisa de três anos, por aí. Eu disse a Baden: isso tem pinta de sucesso. E ficamos cantando o samba até o sol raiar: Quem é homem de bem não trai/ o amor que lhe quer seu bem/ (...) / Quem de dentro de si não sai/ vai morrer sem amar ninguém”.

São esses octossílabos os meus versos preferidos entre todos os que Vinicius escreveu para suas inúmeras parcerias: “Quem de dentro de si não sai/ vai morrer sem amar ninguém”.

  

Benil & seu cast

Nunca mais em toda a minha vida vou ver um violão veloz como o de Baden Powell. Nunca mais a agilidade de seus dedos mágicos, aqueles acordes alucinantes e inesperados. Nunca mais.  Ficamos amigos por conta de um texto que escrevi sobre ele a pedido do compositor e empresário Benil Santos. Deu-se que há muitos, muitos mais de trinta anos atrás, lá pelos inícios dos anos 1970, fui contratado por Benil para editar um catálogo com seu cast de artistas.

Ele queria que eu fizesse não só o texto como a programação visual: quer dizer, Benil me pedia um produto que “vendesse o seu peixe” em todo o país. E olha que eram peixes graúdos os de sua rede. Na época, ele tinha em suas mãos o melhor elenco da MPB, gente como Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Maria Bethânia, Nara Leão, Carlos Lyra, Paulinho da Viola, MPB-4, Gonzaguinha, Milton Nascimento, Clara Nunes e outros, e outros, inclusive Baden Powell.

Varei várias noites viradas em vários dias. Em vão. Quando os textos estavam todos prontos e muitas fotos já produzidas para o catálogo, o Benil me conta num almoço melancólico no velho Zeppelin de Ipanema – salvo somente pelo ótimo scotch – que acabara de se desfazer de todo o seu maravilhoso cast, ficando apenas com Bethânia.

Mas queria que eu editasse um jornal-toalha pra ele. Jornal-toalha? “É, isso mesmo – diz Benil, talvez influenciado pelos famigerados chopnics do Jaguar, colocados num painel atrás de nós –, um negócio formidável que eu vi nesta última viagem (Benil estava voltando do Festival do Midem, em Paris, onde fora acompanhando Clara Nunes): o sujeito vai almoçando, lendo as notícias e vendo os anúncios, estampados no papel-toalha sob seu prato. Um espetáculo!”.

Claro que nosso jornal-toalha não saiu da mesa do Zeppelin. Mas “a novidade” acabou sendo adotada por vários bares que serviam refeições ligeiras: os jornais-toalha iriam proliferar mais tarde nas chamadas “lanchonetes”  – palavra que Caetano colocara na canção Baby, embora a detestasse (a palavra, não a canção).

O catálogo do Benil não saiu, mas a feitura dos textos acabou me aproximando da maioria dos artistas – e com alguns deles cheguei mesmo a fazer certa amizade. Com o Baden, não. Na época, ele estava morando na Europa e acabamos não nos encontrando. Baden foi dos poucos que não chegou a ler os textos que fiz, um para cada artista. Só vinte anos depois, já no início dos anos 90, veria o que escrevi para ele.

 


 

Afro-sambas no CCBB

Foi quando, em 1992, um amigo do Baden me procurou no Centro Cultural Banco do Brasil, querendo falar sobre um “projeto”. Maior mistério: Baden Powell queria segredo e mandava perguntar se não poderíamos nos encontrar em outro lugar, quem sabe na minha casa. “Dito e feito”. como diria o Fernando Sabino da década de 80, em sua coluna do Globo. No outro dia, abro a porta prum Baden Powell meio tímido, ressabiado, o que percebi logo depois ser parte de sua personalidade.

Baden queria reeditar os afro-sambas – as matrizes, de sua propriedade, haviam sido recentemente remasterizadas em Paris – e fazer um grande show de relançamento no CCBB. Acontece que a agenda do Centro Cultural era, e ainda é, fechada com grande antecedência. Não havia espaço na programação – e Baden tinha pressa.

A partir daí, nós nos encontramos várias vezes – na minha casa, na dele, no velho Garota de Ipanema e, quase sempre, no Antonio’s –, procurando ajustar datas e adequar o projeto, que acabei reescrevendo enquanto a Sílvia, mulher do Baden, cuidava de acertar o orçamento. Só então mostrei pro Baden o texto que havia feito para ele, aquele do catálogo do Benil, cujo título era “O Violão Epiceno”. E não me perguntem o porquê, pois naturalmente não me lembro mais.

Talvez, quem sabe, porque Baden soltava suas onças, os onças machos, sobre as cordas do violão, e nelas se enroscava como só as onças fêmeas se enroscam. Sabem vocês, não? Epiceno: o onça, a onça. Pois é, minha gente, na época em que escrevi o texto eu era realmente movido a onças de uísque, várias onças. Muito que bem. Baden releu várias vezes e ficou nitidamente impressionado – e de novo não perguntem o porquê. Tanto que pediu pra Sílvia botar o meu texto como apresentação do book que divulgava o seu trabalho. Acho que ainda hoje lá está. E eis que aqui está, e agora.

 


O violão epiceno

     Como os  músicos, também as pessoas se dividem em comuns e eruditas. Com uma ligeira colher-de-chá para os comuns de dois, ou epicenos. E tanto para uns como para outros, cabe a inversão de lugares & valores: o que aqui é coisa de gênio, pode ser banal mais adiante & etc. Mas num ponto as pessoas, como os músicos, estão sempre de acordo: Varre-e-Sai, cidadezinha do Estado do Rio de Janeiro, conseguiu a façanha aparentemente inacreditável de dar ao Brasil um compositor e virtuose de projeção internacional. E ao bravo e mui nobre poetinha Vinicius de Moraes a chance de fazer uma das mais profícuas parcerias da MPB.

      Desde garoto ele tirava do violão os acordes mais incríveis, com espantosa agilidade. E a intimidade entre homem & instrumento cresceu a tal ponto que hoje os dois chegam a se fundir, a se enroscar quase pecaminosamente a cada contato, a cada reaproximação, como se sentissem a falta do outro.           Dois amantes que se encontram e se integram e se entregam insaciáveis, entre fragmentos de sons brilhantes. E é como dois seres que se amam a união entre Baden Powell e seu instrumento: mãos que machucam e acariciam, mandando ver, num só repente, do afro-samba a Johann Sebastian Bach.

 

Drinques finos no Antonio´s

Dos muitos e “epicenos” meses de nossa convivência naquele ano ficaram várias histórias envolvendo suas músicas, além de extraordinárias e inesperadas noitadas de violão. Vejam que loucura: Baden não se apresentava desde que voltara ao Brasil, estava “seco” pra tocar e acabava invariavelmente, para minha alegria e de algumas amigas de fé, chegando lá em casa com o famoso violão a tiracolo. Lembro particularmente de uma noite em que ele acompanhava empolgado a voz de minha amiga Neti Szpilman e o “diálogo” entre os dois era tão perfeito que chegamos, ideia do próprio Baden, a pensar num espetáculo de voz & violão.   Ficou no pensamento, mas daria um belo show – e como!

Assim, naqueles inícios dos anos 90 – e até sua volta para a Alemanha, vários meses depois – Baden e eu nos encontramos quase todos os dias: na minha casa em Copacabana, na casa dele na Joatinga, no Garota de Ipanema, no Antonio’s, num súbito, misterioso e inacreditável botequim de Jacarepaguá.  Em todos os botequins dessa vida... e de cara limpa. Baden não mais bebia, pelo menos naquele tempo: nem eu, naquele tempo e ainda agora.

Ficaram também as tardes no Antonio’s, regadas a drinques finos. Modestamente, uma velha invenção de minha lavra, que está fazendo dez anos e que Baden adorou (também ele havia parado de beber). Uma bebida plural, se me explico bem. Uísque sem uísque. Sim, um copo alto de uísque, mas sem uísque, regado a guaraná diet, gelo e água tônica. Na dosagem certa, os drinques finos têm a cor exata do melhor scotch, com a vantagem de um sabor supimpa e de o freguês estar permanentemente livre de qualquer vestígio de ressaca.

E foi numa dessas tardes no Antonio´s, nós dois a nos encharcar de drinques finos, que apareceu o ator Lúcio Mauro: “Ué, Baden, voltou a beber?”. Baden fez cara de tacho, mas logo emendou: “Pois é, tava com saudade, tô tomando esse uisquinho, mas só esse”. Lúcio segue para sua mesa, enquanto Baden vira-se pra mim, risonho: “Não é que o troço tem mesmo cara de uísque?”. 



Baden no meu sofá 

Claro que Baden não tocava nos botequins em que íamos, mas lá em casa. E minhas amigas Ana Luiza Fonseca e Bel Cabral até agora devem estar sem entender o que viram naquela noite: Baden Powell sentadinho no meu sofá, mandando ver no violão. Ou na casa dele, ou às vezes de algumas amigas, como a de Neti Szpilman – onde os dois andaram, como já disse, fazendo um dueto diabólico –, ou numa festinha chez Cely Bianchi, empresária da Rio Jazz Orchestra. Baden não tinha shows marcados e, mais do que isso, estava muito a fim de tocar. Imaginem só: foi o próprio Baden quem me pediu para levá-lo à festa da Cely, que não era a Campelo, como acreditava meu inacreditável amigo Zé Maria de Abreu, e muito menos de arromba.

Eu estava sem carro e fomos, Cely e eu, pegar o Baden na Joatinga. Logo estávamos subindo uma enluarada Estrada das Canoas: eu, Baden & violão socados no velho e charmoso fusquinha conversível da Cely, cantando “noite alta, céu risonho” sem que Cely acreditasse no que (ou)via. Já na casa da Cely, Mr. Powell não se fez de rogado: antes que alguém pedisse, já empunhava o violão e durante mais de uma hora mandou ver, de Bach a Baden, com direito a Pixinguinha & tudo o mais. Meses depois, encontrei uma das amigas da Cely na cidade, ainda atônita e fascinada com o que ou(vira) naquela noite.

  

Canção de Natal

Quem de dentro de si não sai/ vai morrer sem amar ninguém”. Como já disse, esses octossílabos são meus versos preferidos entre todos os que Vinicius escreveu em suas canções. A vida dá muitas voltas, mas de dentro de si não sai, pois acaba no mesmo lugar. Lá em casa, numa noite dos anos 1990 – Copacabana, café, cigarros caretas –, o próprio Baden Powell pegou o violão e começou a se lembrar do Vinicius, dedilhando os acordes de uma canção inacabada. Contou-me que o poeta morrera sem colocar letra naquela música. Também eu tentei letrar a música do Baden, uma canção natalina. Qual o quê! Saiu um poema, “Velhas Vozes”, que vai a seguir, mas neca de letra pra canção. Pois é, o Baden também acabou morrendo, e nossa parceria não aconteceu. A canção ficou mesmo sem letra, mas ela é tão bonita que nem precisa.

 

VELHAS VOZES    

a Baden Powell

sim

não mais

sinos

meninos

velhos

uais

 

sonhos

címbalos

símbolos

 

sim

não mais

presentes

no passado

hinos

janelas abertas

meninos

na memória

 

sons

sinos

sapatos

 

nós

nozes

nós na garganta

velhas vozes

 

hoje só

só sons

estranhos

martelando

a madrugada

 

janelas fechadas

ruídos rompendo

interrompendo

a manhã

 

geladas nozes

veladas vozes

de outroragora

sambam soltas

entre as frestas

 

da janela

de nunca

de jamais

entre as festas

 

velhos

tantos

anelos

elos

tontos

 

tônicos

natais atônitos.

 

 

Baden & Barouh: SARAVAH!


 

Barouh, Formosa, Bofetada: Saravah!

Voltando aos bons tempos daqueles drinques finos, um dia nosso papo no Antonio’s acabou chegando a Pierre Barouh, o ator-compositor francês que fez a versão e gravou o Samba da Bênção para o filme Um Homem, Uma Mulher (1966), em que também atuava.

Plagiando o Vinicius de Moraes daquele “o branco mais preto do Brasil”, Barouh se dizia “o francês mais brasileiro da França”. Ele esteve depois no Brasil, em 1968, quando  – ciceroneado pelo próprio Baden Powell – rodou o ótimo documentário Saravah, com Pixinguinha, João da Baiana, Clementina de Jesus, Paulinho da Viola, Bethânia e o próprio Baden, que canta com ele O Samba da Bênção.

Barouh e Baden acabaram muito amigos e eu disse ao Baden como gostava das canções que Barouh fizera para o filme de Claude Lelouch, principalmente uma em parceria com Francis Lai, que dizia qualquer coisa como A l’ombre de nous/ Restera toujours/ Au noms de l´amour/ Un goût d’éternité. / Au nom de notre amour/ Une ombre va rester/ Ces soleils.../ Ils sont si chauds/ Ils sont si forts/ Qu´ils nous brûlent/ Et qu´ils nous devorent/  Encore, encore, encore. Ou coisa parecida, pois – encore, encore, encore – eu cito de cor. Ainda hoje me agrada muito o jogo de palavras da canção e aquela imagem do “gosto de eternidade”, perfeita dentro do filme – onde Barouh é o marido e stunt-man morto em cena, cujas peripécias e canções são lembradas pela viúva interpretada por Anouk Aimée (na vida real, ele foi casado com Anouk, minha ídala felina e felliniana). 

Baden-Vinicius: samba, soro & uísque


De Pierre Barouh, Baden saltou quase que naturalmente para seu parceiro Vinicius de Moraes. Ele falava com muita saudade do poetinha, das canções, dos porres que tomaram juntos, dos pertinentes “recolhimentos” estratégicos-hospitalares. “Formosa”, por exemplo, o antológico samba da dupla, surgiu da visão de uma bela passageira do trem noturno onde eles se encontravam rumo a um show em São Paulo, mas terminou de ser criado na Clínica São Vicente, onde os dois estavam internados. Desintoxicação da pesada, à base de soro, glicose e uísque: nada de drinques finos.  

Baden me contou que ele e Vinicius ficavam cantando o samba noite aforadentro na Clínica, a pedido de um paciente do quarto ao lado, que estava adorando a tal Formosa:A gente nasce, a gente cresce/  A gente quer amar / Mulher que nega/  Nega o que não é para negar/  A gente pega, a gente entrega/ A gente quer morrer/ Ninguém tem nada de bom/ Sem sofrer/ Formosa mulher!

Engraçado que sem saber disso, e sem querer imitar a grande dupla, anos depois também eu fazia “recolhimentos” similares. Após seguidas sessões de uísque, costumava tomar soro num hospital que existia em Ipanema, na Farme de Amoedo. Glicose na veia – e devidamente recuperado –, eu saía de lá, atravessava a rua e continuava meu uisquinho no Bofetada, o tradicional botequim daquela famigerada rua. Um dia, o enfermeiro que me atendia passou por lá e não acreditou no que via: quase tomei uma bofetada. Bem que ofereci o uisque, mas “o de branco” não aceitou: acho que só tomava soro.

 

No Metropolitan a última vez 

No início de 1993, consegui um espaço pro Baden no CCBB, num projeto que juntava violões, verão, sambas e Rio de Janeiro. Tudo certo, todo mundo adorou a honra de participar ao lado de Baden Powell, ídolo da maioria dos artistas que iriam se apresentar no projeto. Já começávamos a divulgação quando a Sílvia me ligou dizendo ter recebido uma proposta irrecusável para uma temporada do Baden na Alemanha. Foi assim que o show dos afro-sambas acabou “sambando”. Paciência: encaixamos em seu lugar Luiz Melodia e Jards Macalé – pois é: só mesmo uma dupla, e que dupla!, pra ocupar o lugar de Baden, que valia por dois, ou mais – enquanto “o violão epiceno” voava pras Oropas.

Em 1997, esbarrei com Carlos Lyra na Feira de Ipanema e Carlinhos me convidou para um show que iria fazer no Metropolitan, um tributo ao Vinicius, com Baden, Toquinho e Leila Pinheiro. Foi então, naquela temporada em homenagem ao seu parceiro Vinicius de Moraes que encontrei-me, no camarim do Metropolitan e pela última vez, com Baden Powell. 



Coincidência: como na semana passada aqui em Cataguases, o Afonsinho também estava comigo naquela noite no Metropolitan, e sentimos a mesma coisa: estava ali um Baden de fala mansa e extremamente baixa, um Baden como sempre de branco e muito magrinho que parecia montar em seu violão para seguir ao encontro de Vinicius. Foi essa lembrança que nos emocionou tanto, quando os meninos do chorinho Patápio Silva o homenagearam com aquele maravilhoso Berimbau que ouvimos semana passada.

Nos últimos tempos, voltado para as coisas do astral, um hiper religioso Baden não mais cantava o Samba da Bênção, pois, ao contrário de Vinicius, evitava pedir a própria. Mas, como Vinicius (e os dois devem estar fazendo – perdão, Baden! – o diabo nas alturas) eu não resisto e peço “A bênção, a bênção, Baden Powell/ Amigo novo, parceiro novo/ Que fizeste este samba comigo/ A bênção, amigo!”. A bênção, a bênção, Baden Powell, que fizeste com sua lembrança nascer este texto que em mim se entranhara, e que agora surge sem pesar, mas pleno de canto e alegria, pois “É melhor ser alegre que ser triste/ Alegria é a melhor coisa que existe/ É assim como a luz no coração”. Este texto que nasce de mim para ir por aí – e contigo. A bênção, amigo!

 

Baden-Baden 



De quebra, e somando-se a essa homenagem, um poema que escrevi quando dos 10 anos de sua morte.

 

BADEN-BADEN

a Baden Powell

 

só restam rastros de paixões que explodem

baden baden baden

pólvora

violão-de-outono

intento

violão-verlaine

longo-lento-lamento

 

violão veloz assim jamais

jamais assim violão-devir

nunca

nunca mais ao vivo

ver

ouvir

ou/ver

 

tudo tão íntimo assim

baden-violão

um os dois

irmanados

insanidade

complacência

 

e logo

em pecado

enroscados

 

e pecado

não havia

dois amantes

a se integrarem

a se entregarem

em sons só poesia

 

nunca

nunca mais

acordes alucinados

alucinantes

inesperados

nunca

nunca mais

 

baden de branco

e fala magra e mansa e magro

e tão mago e leve

como se no fim por vício

levitasse

como se pelas veredas de vinicius

seu violão voasse

 

Ronaldo Werneck

Cataguases, 2010