8 de jul. de 2016

Poeta de Placa



   
 


   Em 1961, aos 40 minutos do primeiro tempo de um histórico Santos 3 x 1 Fluminense no Maracanã, Pelé recuou e recebeu um passe de Dalmo na intermediária. E deu início ao que foi, para muitos, o lance mais bonito já visto naquele estádio. O Rei arrancou, superando na caminhada Pinheiro, Clóvis e Altair. Diante da chegada de Jair Marinho, colocou a bola, com categoria, no canto direito, longe do alcance do goleiro Castilho. O jornalista Joelmir Beting, ficou tão impressionado que mandou fazer uma placa de bronze para colocar no saguão do Maracanã, com os dizeres: "Neste estádio, Pelé marcou no dia 5 de março de 1961 o tento mais bonito da história do Maracanã". Desde então, todos os gols marcados com rara beleza são intitulados "gols de placa”.
   Que me perdoe meu filho Pablo – Fluminense doente –, mas não é que há poucos dias também eu ganhei uma placa, mesmo não jogando contra o Flu? No último dia 30 de junho, recebi das mãos do Prefeito de Viçosa, Ângelo Chequer, uma bela placa, concedida por ele, pela Secretária de Cultura, Cíntia Fontes Ferraz, e pelo Presidente do Conselho de Cultura e Patrimônio Cultural, José Mário Rangel, com os dizeres: “Ao poeta Ronaldo Werneck, a homenagem do povo de Viçosa por sua participação na 3ª Feira do Livro do Colégio Nossa Senhora do Carmo, nas comemorações do centenário do Educandário”. Ora, por quem sois! De qualquer modo, a partir de agora, meu filho, papai é um “poeta de placa” – o que quer que isso signifique.


 
  Brincadeira à parte, não esperava por isso, nem pela placa me homenageando nem por toda a gentileza e carinho com que eu e minha mulher Patrícia fomos recebidos por todos em Viçosa. Convidado pelas Irmãs Sonia Maria Stevan, Diretora Presidente do Colégio Carmo e pela Irmã Marina, Diretora Financeira do Educandário, por intermédio de meus amigos José Luiz Lopes Gomes, promotor do Festival de Cinema de Visconde do Rio Branco, e pelo advogado e professor Vicente de Castro, editor do Jornal Revista Tá na Cara, chegamos a Viçosa com o propósito de eu fazer uma palestra para os alunos do Colégio, dentro das festividades de seu Centenário. Como fomos direto da Flip, em Paraty, acabamos dirigindo por mais de 500 km e chegando a Viçosa já com a noite do dia 30 iniciada – e não tivemos tempo de assistir à entrega da Comenda recebida por meu amigo Vicente na Câmara Municipal, em homenagem aos seus estudos sobre seu conterrâneo, o compositor Hervé Cordovil. 
   Pois é, eu virei o “Poeta de Placa” e ele passou a ser o “Comendador Vicente”. Nascido em Viçosa, Hervé Cordovil ficou famoso por suas músicas “Sabiá lá na Gaiola” e “Vida de Viajante”, em parceria com Luiz Gonzaga. E também pela versão de “Biquini de Bolinha Amarelinha”. Engraçado lembrar-me disso, pois exatamente no último dia 05 de julho – olhaí, “Comendador Vicente” – o bikini virou setentão, já que foi lançado em 1946. Pois é, aquele reduzido maiô de duas peças – depois tanga, invenção de minha amiga, a designer Inês Mynsen; depois asa delta; e finalmente fio dental – hoje sequer notado, causou escândalo na época e seu explosivo nome deve-se ao atol de Bikini, no Pacífico, onde eram realizados testes com bombas nucleares. 
 
  Não assistimos à entrega da Comenda, é bem verdade, mas chegamos a tempo do jantar que nos foi oferecido, onde recebi a placa das mãos do Prefeito Ângelo Chequer. No dia seguinte, ciceroneados pelo “Comendador” e por José Luiz, visitamos o Colégio Carmo, onde fomos recebidos pelas Irmãs Sonia e Marina. Ali, acompanhados pela professora de biologia Adriana, estivemos no Laboratório, onde nos chamou a atenção um pequeno universo para criação e estudo de formigas – todo um mundo homogêneo, perfeitamente articulado, de causar inveja aos humanos. Depois, o Jardim da Ciência, uma grande área com Estação Meteorológica e um Relógio do Sol. E, na sequência, todo um mundo vegetal: cactos, mandacarus, pau-brasil, pitaia, toranja & otras cositas más, que o José Luiz, que é agrônomo, e também a Patrícia, expert no universo rural, saberiam descrever com mais propriedade do que este “Poeta de Placa”, mas infelizmente néscio das vegetabilidades desta vida. Parte do sucesso do Colégio Carmo, esse contato com o “mundo ao vivo”, à parte a mera teoria ensinada em sala de aula, tem permitido aos alunos do Educandário ótimas colocações nos exames vestibulares.
    Manhã de sábado, 02 de julho, tempo da palestra, lançamento do meu livro e da exibição de um curta que realizei sobre o cineasta Humberto Mauro. Confesso minha preocupação inicial ao ver o público que iria me assistir, pois ao lado de professores e pais, havia uma grande e inesperada quantidade de alunos do Carmo, não só adolescentes como também ainda mais jovens. Em minha fala, intitulada “O poema como ofício”, eu abordava poetas como Ezra Pound, Mallarmé, Rimbaud, os nossos Drummond e João Cabral, além de até mesmo dizer um poema da polonesa e Prêmio Nobel Wislawa Szymborska. Qual o quê! Os “meninos” prestaram grande atenção ao que eu dizia, muitos deles anotando tudo. Ao final, vários deles vieram me pedir autógrafos, não só no livro que adquriram, como também em singelos papeizinhos – e todos querendo tirar fotos comigo, imagina! Isso tudo me deixou, confesso, atônito-emocionado. Mas me mantive firme e cordato, como “sói acontecer” com um verdadeiro “Poeta de Placa”.

5 de jul. de 2016

Cine Humberto Mauro em Cataguases


  Coisas de cinema. De salas de cinema. Leio dias desses num jornal de grande circulação que numa cidade do Estado do Rio (qual? Qual? Ó memória que “se escapa-me” – epa, epa, que elocução mais “temerária”) está para acontecer o impensável: uma das igrejas da localidade será fechada e, em seu lugar, aberto o novo Cine Humberto Mauro. Como diz minha filha Ulla, isso é uma coisa do rol das “ina”/creditáveis. Aqui na terra dele, do próprio Humberto, que só nasceu nos arredores de Volta Grande por acaso – pois seu lugar na história de nosso cinema ficou reconhecido mesmo como Cataguases, onde rodou seus primeiros e seminais filmes –, pois é, aqui na terra dele, o Cine Edgard está como está, nem cá nem lá.
Há coisa de sete anos, fizemos um pequeno filme, “Regard Edgar”, que se encontra disponível no Youtube(https://www.youtube.com/watch?v=1QHcWQNTm2o) onde, já naquela época, lutávamos pela preservação e manutenção do cinema como tal. Isso posto, ou por supuesto, lembrei-me então de uma crônica que está em meu livro Há Controvérsias 2. Como o livro está esgotadíssimo, “republicá-la-ei” (epa, epa!) aqui, mesmo porque a multidão de meus jovens e ávidos leitores (dois ou três, é bem verdade) não deve ter conhecimento da bendita cuja. 
Pois é, coisas de cinema. De salas de cinema. O Edgard Cine-Teatro já foi Cine-Cataguases e era chamado de Cinema Novo para não confundir com o velho Cine Machado lá na diagonal da praça Rui Barbosa. Quer dizer, o cinema novo brasileiro, é claro, começou em Cataguases. E onde mais, se foi ali que o jovem Humberto Mauro, o “pai de nosso cinema”, viu seus primeiros filmes na década de 1920, na charmosa sala do Cine-Theatro Recreio (ou Cinema Recreio Cataguazense)?
Coisas de cinema – e nada mais justo que agora eu saia numa campanha ainda solitária, mas que espero logo “acompanhadíssima pelos cinéfilos cataguasenses”, quer dizer, por todos os cataguasenses, que somos todos cinéfilos inveterados, né mesmo? Enfim, uma campanha para que se denomine “Sala Humberto Mauro” à sala de projeção do “Edgard”.  Como é que Cataguases ainda não tem uma “Sala Humberto Mauro”, se até a capital, imaginem, até mesmo BH já possui a sua, como a do cinema do Palácio das Artes, entre outras? 
Vamos em frente. Melhor, para trás. Para as salas de cinema da Cataguases dos anos 50, as que eu conheci. Havia um pequeno cinema ali na pracinha da antiga Fábrica Irmãos Peixoto, não me lembro bem o nome, acho que o sala era do pessoal do Hotel Pires. Os que eu frequentava mais eram o cinema do Nelo e o Barracão, onde os Cunhas projetavam as fitas enquanto construíam o prédio do novo cinema em frente, ali no terreno baldio onde seria o prédio de A Nacional. Antes ainda, o Cine-Teatro Machado, ou nome parecido, o cinema do Seu Nelo, o nosso “Nelascópio”, onde agora é o Centro Cultural Humberto Mauro.
Nos 1950, havia no Nelascópio um corredor, hoje Galeria Zequinha Mauro. No meio dele ficava a bilheteria do cinema. Nelo Machado, o próprio, fazia às vezes de bilheteiro, entre outras coisas.  Costumava também “operar” na cabine de projeção: quando o filme era muito longo, o Seu Nelo, “pulava” um ou dois rolos para ir logo dormir, pois acordava cedo pra “conferir o leite de sua fazenda”. Ninguém nunca reclamou: nos anos 1960, o “Nelo” às vezes passava fitas de “arte”, quase sempre europeias. E sabe como é, “cinema europeu é assim mesmo, ninguém entende direito, coisas da vanguarda”.
Pois então, anos 1950, seu Nelo-bilheteiro. Eu segui ali todo o seriado “Perigos de Nyoka”, minha heroína de peripécias e escaramuças contra beduínos, tuaregues e vilões de vários quilates. Dia do último capítulo, era o primeiro da fila. Eu e minha moedinha para compra do ingresso. À minha frente, o seu Nelo, aguardando para abrir. Atrás, a multidão de meninos aguardando pra ver como Nyoka iria se safar (o penúltimo capítulo terminara com ela caindo num poço-elevador, cheio de lanças de aço que subiam ameaçadoras contra o seu corpo).
Eu brincava com minha moedinha jogando-a pro alto. Não deu outra: ela escapou de minhas mãos e rolou pra trás do Seu Nelo. Que não se fez de rogado: não deixou de forma alguma que eu a pegasse, mesmo comigo dizendo (e todos os meninos confirmando): “olha lá, Seu Nelo, tá ali, atrás do senhor”. Até hoje não sei o que aconteceu com Nyoka. Muitos anos depois, acabei escrevendo o roteiro de um filme (é claro, chamava-se “Perigos de Nyoka”) onde procurava desvendar o que teria acontecido com minha “ídala”. Coisas de cinema, de incidentes que fazem filmes. Mesmo os que não foram feitos.
Agora de volta ao Edgard, o antigo Cine-Theatro Recreio, o Cine-Cataguases dos anos 1950 e de tantas histórias. O cinema e o Seu Edgard. Ah, o Seu Edgard! Sua casa na Rua Dr. Sobral era vizinha da casa do papai. Tarde de sábado, eu fumando na janela, Seu Edgard com seu cano de borracha regando a calçada. Chega o Coelho, mestre-de-obras (e “pau-para-todas”) da construção do novo cinema. Chega e vai logo dizendo: “Seu Edgard, hoje é sábado, tem baile no Rancho Alegre, o senhor pode me adiantar cinco mil réis?”. Seu Edgard, reconhecida e providencialmente surdo, continua a olhar o molhado infinito da calçada. Nem aí pro Coelho. Afinal, surdo é surdo. Coelho insiste: “Seu Edgard, hoje é sábado. Baile no Rancho Alegre. Pode me arrumar dez mil réis”. Vira-se pra ele o Seu Edgard, como se o visse pela primeira vez: “Uai, era cinco e agora é dez?”. Trago e tusso, sufocado pelo riso.
Esse o Edgard, aquele o Nelo. Cinemas que se foram. Nada mais justo agora que o Edgar passe a se chamar Humberto Mauro. “Ué, era Edgard, agora é Mauro”? Quer dizer, a sala de cinema. Que poderia ser inaugurada, inclusive com um dos filmes de Mauro recentemente restaurados pelo CTAv/Funarte. Acho que não há controvérsias, só faltam os devidos “trâmites legais”. Ou coisa (a)parecida.

Cataguases/ 2001 – Do livro “Há Controvérsias 2”