12 de nov. de 2022

POESIA PARA ENSINAR, COMOVER, DELEITAR

 


Reprodução de minha fala na roda de conversa “Os desafios da palavra escrita em Cataguases”, realizada no Centro Cultural Siccob em 10 de novembro de 2022, dentro das atividades da primeira edição da FLICA–Festa Literária de Cataguases.


Sobre o tema em pauta,  “Os desafios da palavra escrita em Cataguases”, começo nomeando alguns escritores “novos” lembrados por Ronaldo Cagiano em texto publicado em meu livro “Cataguases Século XX/ antes & depois”. Texto possivelmente defasado, já que escrito há alguns anos. Isso para me situar, ou para nos situarmos diante dos escritores surgidos em Cataguases depois da revista Verde nos anos 20 e do jornal Totem, nas décadas de 60/70, i.e, nos anos da minha geração e do poeta Joaquim Branco.

Luiz Ruffato, naturalmente, romancista já consagrado; o próprio Cagiano, excelente poeta, contista e crítico, hoje vivendo em Lisboa. Fernando Cesário (“Os olhos vesgos de Maquiavel”), Marcos Vinícius Ferreira de Oliveira (“Uma e outra forma de tirania” e “E se estivesse escuro?”), Leonardo de Paula Campos (“Alma de brinquedo”), Emerson Teixeira Cardoso (“Símiles”) e Eltânia André (“Meu nome agora é Jaque” e “Manhãs adiadas”) exemplos de uma geração cuja preocupação e valores transcendem meramente o fazer literário.

Marcelo Benini, poeta e ficcionista, com as narrativas de “O homem duplicado”, José Antonio Pereira, que já vem de uma intensa participação como colaborador de jornais e revistas (“Trem azul” e “Chicos Cataletras”), com seu début no caprichado volume de crônicas “Fantasias de Meia-Pataca”. A narrativa diáfana e igualmente expressiva de Antônio Jaime Soares (“Pedra que não quebra”), Flausina Márcia da Silva (“Sua casa, minha cruz” e “Vaga lume”) e Sônia Bonzi (“Bordando memórias”), ao lado da prosa de Fernando Abritta, Tadeu Costa, José Santos, Mauro Sérgio Fernandes da Silva, Luiz Lopez, Laly Cataguases e Renatta Barbosa, autores que vêm projetando seus nomes e obras no cenário disputado e competitivo da literatura infanto-juvenil, com títulos criativos e de grande apelo imagético e sensorial. E aproveito para citar também escritores aqui presentes, como Carolina Valverde, Emanuel Messias e Washington Magalhães.





O que é isso, poesia?


Pois bem. Prosadores e poetas. Deixo os prosadores, os ficcionistas, com o Marcos Vinícius, que está aqui ao meu lado: é a praia dele. Eu fico com o que me cabe, o que me coube desde sempre, a “fricção”, o entrechoque de palavras que às vezes resulta em poesia.

Mas, o que é isso, poesia? Passo a palavra para a polonesa Wislawa Szymborska, Nobel de Literatura e uma poeta de minha grande admiração:

 

Alguns gostam de poesia.
Alguns –
ou seja nem todos.
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola onde é obrigatório
e os próprios poetas
seriam talvez uns dois em mil.

Gostam –
mas também se gosta de canja de galinha,
gosta-se de galanteios e da cor azul,

gosta-se de um xale velho,
gosta-se de fazer o que se tem vontade
gosta-se de afagar um cão.

De poesia –
mas o que é isso, poesia.
Muita resposta vaga
já foi dada a essa pergunta.
Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso
como a uma tábua de salvação.

 

           Então, vamos lá pessoal, um pouco de reflexos/reflexões sobre a poesia para esquentar o papo e a noite.


Provocações/reflexões

João Cabral de Melo Neto na conferência “Poesia e Composição” realizada na  Biblioteca de São Paulo, 1952:

“A composição, que para uns é o ato de aprisionar a poesia no poema e para outros o de elaborar a poesia em poema; que para uns é o momento inexplicável de um achado e para outros as horas enormes de uma procura.

“O ato do poema é um ato íntimo, solitário, que se passa sem testemunhas. Nos poetas para quem a composição é procura, existe como que o pudor de se referir aos momentos em que, diante do papel em branco, exercitam sua força. Porque eles sabem de que é feita essa força – é feita de mil fracassos, de truques de que ninguém deve saber, de concessões ao fácil, de soluções insatisfatórias, de aceitação resignada do pouco que se é capaz de conseguir e de renúncia ao que, de partida, se desejou conseguir”.

Aqui João Cabral faz menção à velha dicotomia inspiração/transpiração. Olhar para a lua ou sentar-se e “meter bronca”, trabalhar, encarar a folha em branco. Ato de produzir poesia. João sentava-se toda a manhã frente à máquina de escrever, mesmo que não tivesse ideia alguma do que ia sair.

Sentar ou assentar-se para escrever me leva a meu grande amigo, o saudoso poeta cataguasense Francisco Marcelo Cabral:

O leitor se assenta.

O poeta puxa a cadeira

a poesia é o tombo.

O leitor se enleva

o poeta o empurra no abismo

a poesia é o voo.

 

     Já Jayme Ovalle, carioca de Belém do Pará, como se definia, era um poeta que não escrevia. Não escrevia porque não precisava. O poema era ele. Também músico, parceiro de Manuel Bandeira em “Azulão”, um dos grandes momentos de nosso cancioneiro, Ovalle foi grande amigo de Vinicius de Moraes, que o adorava.       Diz Jayme Ovalle:Todo mundo é criado com o dom da poesia, e só deixa de ser poeta porque perde a inocência. No fundo, esse pessoal que se tornou banqueiro, senador ou presidente da Republica só fez isso porque deixou de ser poeta”.

Com a palavra o poeta francês Benjamin Péret,  ligado a André Breton e aos surrealistas: “O poeta moderno é revolucionário – ou não será poeta. Ele deve jogar constantemente no desconhecido. Só assim poderá se dizer poeta e participar de um processo onde não o esperam nem glórias nem elogios”.

 


No centro do desconhecido

Um dizer autenticado pela máxima de Maiakovski, o grande poeta da revolução russa:

“A poesia – toda – é um salto no centro do desconhecido”.

Ainda Maiakovski e seu vermelho estandarte:

“Sem forma revolucionária não há arte revolucionária”.

Em sua classificação das finalidades do escrever, Rodolphus Agricola — o erudito renascentista citado por Ezra Pound no ABC of reading – dizia que nós escrevemos para “ut doceat, ut moveat, ut delected”. Para ensinar, comover, deleitar. Em seus Diálogos de Oficina, um dos poetas criados pelo grande poeta Mário Faustino re-citava o quinhentista Agricola: “Poesia: meio de comover os homens; meio de os alegrar, meio de ensiná-los”.

Para o poeta simbolista Mallarmé, um dos nomes mais importantes da poesia moderna, a função da poesia era: Donner uns sens plus pur au mots de la tribu. Dar um sentido mais puro às palavras da tribo. Ou, na transcriação de Ezra Pound: To purify the dialect of tribe.

Ezra Pound (in Soirée): “Ao ser informado de que a mãe escrevia versos,/ E que o pai escrevia versos,/ E de que o filho mais novo trabalhava numa editora,/ E que o amigo da filha segunda estava escrevendo um romance,/ O jovem peregrino americano/ Exclamou: Êta penca de gente sabida”.

Eu amarro todo esse busílis da seguinte maneira:

Forma+ideia = poema. Insight+poema = poesia.

 

Fazer isso que a gente não sabe

Então, resumindo: “poesia” é isso que a gente não sabe e “poema” é aquilo que tenta fazer isso que a gente não sabe – e que nos emociona. Oswald de Andrade: “Aprendi com meu filho de dez anos/ que a poesia é a descoberta/ das coisas que nunca vi”.

Oswald me leva a Mário de Andrade, ao seu Prefácio Interessantíssmo para A Escrava que não é Isaura, escrito em dezembro de 1920, portanto dois anos antes da Semana de Arte Moderna:

“É preciso justificar todos os poetas contemporâneos, poetas sinceros que, sem mentiras nem métricas, refletem a eloquência vertiginosa da nossa vida. Como os verdadeiros poetas de todos os tempos o que cantam é a época em que vivem. E é por seguirem os velhos poetas que os poetas modernistas são tão novos”.

“É o leitor que deve se elevar à sensibilidade do poeta, não é o poeta que se deve baixar à sensibilidade do leitor. Pois este que traduza o telegrama”.  

Oswald de Andrade deve ter se lembrado dessa observação de Mário de Andrade ao sacar de sua máxima em 1954, já no final da vida: “A massa ainda comerá do biscoito fino que fabrico”.

Sempre bom relembrar algumas tiradas de Oswald como aquelas de 1924,  no Manifesto da Poesia Pau-Brasil: 

     “A síntese. O equilíbrio. O acabamento da carroceria. A invenção. Uma nova perspectiva. Uma nova escala. Qualquer esforço nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil”.

“O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa”.

Fecho com dois grandes poetas, Rilke e Verlaine, para em seguida trocarmos ideias sobre essas minhas anotações/provocações:

Rainer Maria Rilke: “Os versos são experiências e é preciso ter vivido muito para escrever um verso”.

Paul Verlaine: “Tudo é belo e bom quando belo e bom; venha de onde vier e tenha sido obtido pelo processo que for. Clássicos, românticos, decadentes, símbolos, associantes, ou como direi? Incompreensíveis desde que eles me comovam ou simplesmente me encantem, mesmo que eu não saiba bem por que, todos eles me são caros. Vamos, poetas que somos, amemo-nos uns aos outros, esta máxima é tão bela em arte como na moral, e eu creio que a ela devemos no ater”.

O que não deixa de autenticar a definição do quinhentista Agricola: “Poesia: meio de comover os homens; meio de os alegrar, meio de ensiná-los”.

Passo a palavra ao Marcos Vinicius: tudo é ficção. Ou fricção?

Ronaldo Werneck

Cataguases, 10.11.22


11 de nov. de 2022

GAL HÁ 50 ANOS: A MORTE É DA VIDA

 







GAL COSTA: SEM DOR

NA CONSCIÊNCIA

Chamada de capa/ 1º Caderno

Correio Manhã (22.03.72)

– Sabe, Eu me considero uma boa pessoa e seria incapaz de matar alguém. Tenho absoluta consciência de que não tive culpa. – A cantora Gal Costa, mais calma, embora abatida, chegou ontem ao Rio, e explicou como foi o acidente em Governador Valadares, onde atropelou uma mulher. Traumatizada, ela afirma que está fazendo o que pode pela família da vítima – um velho e duas crianças – e vai comprar uma casa nova para eles (Pág. 6).

 

Gal diz que acidente foi fatalidade

Ainda um pouco abatida, porém mais tranquila, e dizendo a todo instante que está com a consciência limpa e não teve culpa no acidente ocorrido quinta-feira última em Governador Valadares, Gal Costa chegou ontem ao Rio, vinda de Petrópolis.

– Estou providenciando a compra de uma casa para as crianças e o velho, que eram toda a família da vítima. Eles são muito pobres, vivem de pedir esmolas e estavam morando debaixo de uma ponte em Governador Valadares. Dei-lhes dinheiro para voltarem a Teófilo Otoni, sua terra. Fiz o que pude – diz Gal.

 

O acidente

          A Rio-Bahia é uma estrada muito movimentada, muito perigosa, um canal por onde é escoado todo o tráfego para o Norte/Nordeste do País. Estava anoitecendo quando ocorreu o acidente, numa reta a cerca de 200 metros de Valadares. Embora não estivesse correndo (“sabe, eu dirijo bem, dirijo há muito tempo. Mas dificilmente corro: raras vezes passo de 100, o que é uma velocidade normal em uma auto estrada”), Gal não conseguiu evitar o atropelamento.

          – Tudo aconteceu assim muito rápido, como um relâmpago. Era uma reta e eu estava a uns 90 km. Anoitecia e eu acabara de ligar os faroletes. Vinham dois caminhões em sentido contrário e eu cheguei a vislumbrar a mulher e as crianças, uns 10 metros à minha frente.  Quando me aproximava, ela entrou na pista olhando para o outro lado, como se tivesse percebido somente os caminhões. Eu já estava quase em cima e não podia frear devido à velocidade. Reduzi meu carro.

     – Mas foi tudo em vão. Ela parecia meio zonza e acabou caminhando exatamente para cima de meu carro. O choque foi bastante violento. Perdi completamente a direção e minha “Variant” começou a rodopiar, quase capotando no meio da pista. A sorte foi que Wilma, uma amiga que estava do meu lado, segurou o volante, controlando o carro: eu estava tonta, sem saber o que fazer. Os dois caminhões tinham acabado de passar e se viesse outro carro em sentido contrário poderia ter acontecido um desastre ainda mais terrível.

           Gal continua a contar: “prestamos os primeiros socorros à vitima (eu, Wilma, Giselda, mulher do Macalé, e David, um músico americano que viajava conosco) e fomos a Valadares providenciar uma ambulância, enquanto uma família da cidade, que vinha atrás de nós, continuava atendendo a mulher. Quando voltamos com a ambulância, ela já estava sendo tratada por essa família. Infelizmente não foi possível fazer mais nada: ela morreu logo depois.

        – Em Valadares, fui à delegacia explicar o ocorrido e depois entrei em contato com as crianças. Eu estava muito nervosa, chorando muito, e já vim para o Rio no dia seguinte. Felizmente, tudo já passou e agora já estou um pouco mais tranquila. Que fazer? É a vida.

Ronaldo Werneck

Rio, 22.03.72


GAL VENCEU A DOR:

– EU SOU INOCENTE

Chamada de capa/ 1º Caderno

Última Hora  (22.03.72)


UH foi ao encontro, ontem, ao mesmo tempo de Gal Costa e de Tim Maia. Ela voltava de Petrópolis sem mais aquela dor imensa que lhe deu a morte de uma mulher sob as rodas de seu carro: “A morte é da vida”. Ele estava na polícia com a mulher Janete que o acusara de agressão e agora garante: "Foi acidente o meu tapa-olho” (Pág 2).

(A matéria escrita por mim para a página 2 de Última Hora transcrevia meu texto acima, publicado no mesmo dia 22 de março de 1972 no Correio da Manhã. Naquela época os dois jornais tinham uma só redação.)

 

Ronaldo Werneck

Rio, 22.03.72