Resenha do livro Super-Homem e seus amigos do peito (Ariel
Dorfman e Manuel Jofré – Paz e Terra, Rio, 1978), que republico agora quando os
chilenos comemoram a votação no último dia 25 de outubro do plebiscito para uma
nova Constituinte.
Comics. Bande
Dessinée. Fumetti.
Histórias em quadrinhos. São vários os
nomes designando o contexto onde se desenrolam as aventuras dos
imbatíveis, assépticos e devidamente assexuados heróis dos quadrinhos, de
Tarzan a Flash Gordon, do Zorro ao Super-Homem. Em termos formais, de estruturas
dos quadrinhos, a origem das historinhas remonta quase à própria origem do
homem: os primitivos desenhos das cavernas possuem uma estrutura interna, de
interligação, muito próxima da lógica narrativa dos quadrinhos de hoje.
Mas
a trajetória dos quadrinhos como tal começou no início do século XX e teve sua
verdadeira explosão, seu boom (para
usar uma palavra em si onomatopaica, dentro do contexto dos comics) durante o chamado “esforço de
guerra” americano na década de 1940. Aí sim, Tio Sam descobriu a força dos
quadrinhos como aparelho ideológico de estado. Exemplo disso é o Capitão
América – como o próprio nome indica, o baluarte do esforço de guerra
americano, o herói por excelência dos GIs.
Sintaxe & ideologia
E
foram exatamente esses nomes, “estrelando” em letras garrafais nos cartazes
cinematográficos, que começaram a dar grande atenção às histórias em
quadrinhos. Nada de novo, por sinal. A linguagem dos quadrinhos está
extremamente próxima à do cinema. É a grande simbiose entre os comics e as story-boards. Enquadramentos, cortes, closes, plongées,
jogos de sombra e luz (claro/escuro) – a sintaxe dos quadrinhos é
cinematográfica por excelência.
Assim,
não foi à toa que cineastas do porte de um Fellini ou de um Resnais começaram a
dar entrevistas, a escrever artigos sobre quadrinhos, até a participar
ativamente do Le Club de La Bande
Dessinée. Estavam ali Resnais, Truffaut, Godard, o próprio Fellini,
trocando seus gibis como nos melhores momentos da infância. Ainda não se falava
em ideologia. Os quadrinhos eram revistos enquanto estética, enquanto
linguagem, enquanto design gráfico.
Passou
a ser “bem” curtir os quadrinhos: dava até um certo status entre a intelligentsia. E, claro, tome de teoria,
que a turma não é de brincadeira: de Umberto Eco a Sérgio Augusto (que chegou a
pensar um filme – sobre os comics),
dos ensaios de Alain Resnais aos vários livros do meu amigo Moacy Cirne,
praticamente esgotando o assunto, isto é, esgotando ao nível da linguagem, da estética. Neca
de ideologia.
Na verdade, temos que admitir que são de primeira linha os traços de um Alex Raymond (Flash Gordon), de um Hogarth (Tarzan), de um Eisner (Espírito), a trindade máxima dos quadrinhos, já computados como clássicos dos comics. E lá vem teoria, “vasos comunicantes” & outras flores mais amenas dos mass-medias. A retomada foi tão grande que os americanos chegaram a ensaiar um rides again do Capitão América, que já fora devidamente sepultado entre os heróis da Segunda Guerra. Explica-se: a escalada no Vietnam estava no auge. Quer dizer, por trás da estética, perdurava, como sempre, a ideologia.
Enquanto
os estetas se extasiavam com a qualidade gráfica dos comics, Tio Sam mandava brasa, quer dizer, mandava sua ideologia
pelas entrelinhas, ou pelos “entre-quadrinhos”, como queiram. Os “meninos do
Brasil”, os submeninos latino-americanos, dos oito aos oitenta, recebiam e
continuam recebendo doses subliminares da ideologia capitalista através da
febre dos quadrinhos.
Historinhas de negação
No
início dos anos 1970, o Chile viveu uma experiência única na América Latina,
que não pode ser comparada nem mesmo à Cuba de Castro. Pela primeira vez, o
socialismo chegava ao poder através de eleições diretas. A curta trajetória de
Allende no poder (1970/1973) gerou entre os intelectuais chilenos uma série de
estudos buscando trazer à tona os graves problemas, e, de certa forma,
direcionar as novas veredas que poderiam ser abertas para imprimir mais
humanidade aos destinos da América
Latina. Os chilenos perceberam de imediato a força ideológica dos meios de
comunicação, e vários ensaios foram feitos sobre o assunto.
“O
papel da ideologia é eliminar as contradições que os homens e o sistema social
capitalista possuem. Nega ou deforma o fato histórico de que existem países
desenvolvidos e subdesenvolvidos (fixando o espaço das histórias em quadrinhos
numa terra de ninguém, como, por exemplo, nos casos do Oeste, da selva ou da
cidade gótica de Batman); nega a transformação social (propondo um mundo circular
onde sempre triunfam os super-heróis, seja Batman, Tarzan ou Zorro); nega a
propriedade privada dos meios de produção (mostrando nos quadrinhos apenas as
economias artesanais e primitivas); nega as contradições históricas e sociais
(convertendo-as em problemas psicológicos de um indivíduo);
“Nega
a dinâmica da dialética (propondo simples conflitos); nega as contradições
insuperáveis do capitalismo (com o super-herói superando os problemas da
justiça); nega os seres humanos (personificando o dinheiro); nega o social (ao
mostrar os bons sempre sozinhos); nega a humanidade (colocando o super-herói
como um messias que impõe a justiça e a ordem convertendo-o em um ser supratemporal
dotado de poderes eternos); nega a liberdade (o super-herói castiga os que se
rebelam, prendendo-os ou recapturando-os para o sistema); nega a igualdade
entre os seres humanos (construindo um mundo baseado em relações verticais de
domínio); nega o trabalho (os personagens estão sempre ociosos); nega a criação
(originando um mundo repetitivo); e claro que, além de negar muitíssimas coisas
mais, a ideologia das histórias em quadrinhos nega a si própria (nunca nenhum
personagem as lê)”.
Parafernália ideológica
Muito
bem. Aparentemente, numa primeira olhada nos comics, nós conseguimos visualizar toda essa parafernália
ideológica. Naturalmente, todo o pessoal que andou escrevendo sobre a estética
dos quadrinhos sabia disso. Mas, esse fato não interessava à especificidade de
seus discursos, que eram trabalhados ao nível sintático, não semântico; ao
nível estético, não ideológico. “Nós quem, cara-pálida?”, diria o Tonto para o
Zorro, na velha piada citada por Dorfman nesse livro. Nós que, de certa forma,
temos condições de entender o que está por trás da “inocência” dos
super-heróis. Mas, e os outros? E as milhares de pessoas que recebem
massivamente, sem perceber, a “mensagem” real que está por trás das aventuras
dos super-heróis?
Dorfman
& Jofré utilizam propositadamente em seu ensaio uma linguagem também
ingênua – de certa forma um ersatz da
própria linguagem dos quadrinhos. Explica-se: eles sabiam bem quem deveria ser
o seu público, qual seria a meta, o alcance de seu trabalho. Exatamente aquelas
pessoas ludibriadas pelo fascínio dos quadrinhos e de suas aventuras
mirabolantes.
Dorfman
disseca o Llanero Solitario (Lone Ranger, o nosso Zorro) através da
análise específica de uma de suas aventuras. Muita coisa certa. Outras, óbvias; mas necessárias. Jofré abre o leque de seu trabalho, procurando
analisar os quadrinhos em termos globais. Claro, também ao nível ideológico – e
nisso seu ensaio tem mais consistência. Ambos conduzem o trabalho tendo como escopo um mapeamento ideológico do universo dos quadrinhos. E, como os quadrinhos, os
ensaios são também eivados, propositalmente, de um certo maniqueísmo.
Mas
isso era necessário dentro do contexto da época, quando Allende desaparecia no
final do último quadrinho, solitário, pressionado pelos mal-encarados “fazendeiros
do novo poder” e seus asseclas, derrubado por seu “arqui-inimigo” Pinochet e
seu bando armado. Nem mesmo Tonto, seu fiel amigo, restou. Silver está cansado
e capenga, os desprotegidos continuarão desprotegidos: a lei da selva voltou aos
Andes, perdão, ao Oeste. Nesta trágica, derradeira aventura, Zorro-Allende
acaba derrubado por um balaço solitário.
Jofré: valores de contrabando
A
seguir, destaco alguns trechos das observações de Manuel Jofré, que compõem a
segunda parte do livro.
“O personagem
com o qual nos identificamos ao ler uma história em quadrinhos não apenas
possui um valor, como também nos passa vários outros de contrabando. Para esclarecer, diremos que um valor é
simplesmente nesta análise uma atitude humana, um traço de conduta, colocado a
nível abstrato. Se o personagem que representa o valor justiça agride um negro,
temos aí, imediatamente, outro valor: a segregação racial. Por isso, haveria
que distinguir entre os valores que representam os personagens – são universais
e facilmente encontráveis – e os que eles mesmos postulam (é aqui onde se
transmite a ideologia com toda a sua força).
“É a diferença entre o que os
personagens parecem ser e o que verdadeiramente são. Isto visto sob um aspecto
dos quadrinhos, porque, além deste, existe um segundo nível de deformação.
Existem personagens que usualmente têm uma significação na realidade social
objetiva, por exemplo, um juiz. Neste caso não há necessidade de caracterizá-lo
para que represente algum valor, o que já possui é suficiente.
“E
se o personagem está positivamente caracterizado, o leitor já está identificado
com ele, mas os resultados de seus julgamentos – que compartilhamos na leitura
– podem ser absolutamente errôneos. Ou melhor, personagens que são postos nos
quadrinhos como representantes de uma classe social ou de um setor de classe,
têm opiniões ou ações pertencentes à outra classe. Parecem ser uma coisa mas na
realidade são outra. Disfarçam um valor, um comportamento atrás do outro.
“(...) O suspense, a sucessão progressiva de
acontecimentos, prepara o clima conflitivo.
Chega o conflito, desatado em uma página (de seis a oito quadrinhos). Em
seguida, a historieta deve oferecer outro centro de interesse. Nesse momento, o
importante, como mecanismo de atração, é a surpresa. Surpresa diante do
resultado do conflito, surpresa diante do novo curso que tomam as ações.
“A
surpresa une-se ao suspense e prepara o terreno para o conflito seguinte. Assim
a visão que se tem da história é a de um simples jogo de ações, nunca um
conflito social. O implicado é um indivíduo, nunca um setor social nem o
sistema. O conflito torna a historieta interessante. De três conflitos em um
episódio, as forças do bem (o super-herói) podem perder um deles, até dois, se
isso der mais suspense e permitir que a vitória final seja impressa mais
fortemente na mente do leitor. Os super-heróis podem perder uma batalha, mas
não a guerra. Não sofrem derrotas estratégicas.
“(...)
O herói necessita vencer para ser super-herói e só vencendo e sendo indivíduo
excepcional é que se produz a identificação afetiva necessária para que
divirta. Quadrinhos, desenhos e letras, facilitam isso (a que o leitor vá
direto pelo caminho desenhado pela ideologia burguesa). Por isso, quando já se
leu muito uma série de história em quadrinhos, e ela já é conhecida, o leitor
crítico pode adivinhar o caminho que a aventura seguirá. A estrutura repetitiva e simplista começa a
revelar-se.
(...)
Evidentemente a história em quadrinhos tradicional burguesa porta todos os valores
graças aos quais sobrevive o sistema capitalista. Um papel importante, nesse
aspecto, é cumprido pela repressão sexual. Em várias dessas séries reúnem-se
personagens dos dois sexos, e a incitação à aventura é constante entre eles. No
entanto, aproximam-se mas não se beijam, olham-se mas não se tocam; desejam-se
mas não se amam.
“Esta
é a relação entre Super-Homem e Miriam Lane, entre Tarzan e Jane, entre Donald
e Margarida, entre Mickey e Minie. Em
alguns desses casos, a atração é planejada racionalmente pela mulher, mas o
homem resiste e não cumpre o papel masculino. Para muitos desses super-heróis
as pessoas mais próximas são homens e não mulheres. É assim entre Tonto e
Zorro, Batman e Robin. Em Tom e Jerry existem personagens sem nenhuma
manifestação sexual. A forte relação erótica ou de aversão, de Bolinha por
Glória ou por Luluzinha, respectivamente, demonstra até que ponto uma revista
apresentada como inocente pode deformar os leitores no que diz respeito a
determinadas atitudes humanas vitais como, no caso, o amor sexualizado.
“(...)
Outra característica sempre presente é o predomínio do quantitativo sobre o
qualitativo. Tio Patinhas não se importa de ser ranzinza, avarento e
explorador, desde que seja o homem mais rico do mundo. A única coisa que
Bolinha sabe fazer com dinheiro é tomar o
máximo possível de sorvete. Super-Homem é super-herói porque tem mais
força, mais visão, mais velocidade. O progresso humano e social de um
personagem plasma-se no conforto material, nos objetos que o rodeiam, mas nunca
numa capacidade criativa, nunca na riqueza interior, nunca na qualidade das
relações humanas.
“(...)
Tudo isso faz com o leitor assimile ideias como o servilismo, a submissão, o
medo da renovação, o conservadorismo e um autoritarismo do qual é impossível
fugir. (...) A magia nem sempre é uma anedota a mais, mas também é um fator
atuante e indispensável. Feiticeiros, magos, adivinhos, profecias,
encantamentos, são ações constantes em Patópolis, na selva de Tarzan, no Oeste,
na ficção científica, no mundo da Luluzinha. Falar de magia outorgando-lhe
poder mobilizador das ações ou capacidade resolutiva é mais uma forma de sair
do cotidiano, do histórico. Seria demais dizer que magia é postulada como
atividade eterna e permanente na história.
“Todos
esses recursos conservadores contribuem para tornar naturais os conflitos
sociais. Um conflito se eterniza ao ser repetido uma vez ou outra em cada
episódio. O mundo assim construído aparece com uma característica essencial.
Como um mundo detido. Isto é, carente de qualquer progresso".
Ronaldo Werneck
Rio, 1978