9 de nov. de 2020

Nós quem, cara-pálida?

 


Resenha do livro Super-Homem e seus amigos do peito (Ariel Dorfman e Manuel Jofré – Paz e Terra, Rio, 1978), que republico agora quando os chilenos comemoram a votação no último dia 25 de outubro do plebiscito para uma nova Constituinte.

 

 


Comics. Bande Dessinée. Fumetti. Histórias em quadrinhos. São vários os  nomes designando o contexto onde se desenrolam as aventuras dos imbatíveis, assépticos e devidamente assexuados heróis dos quadrinhos, de Tarzan a Flash Gordon, do Zorro ao Super-Homem. Em termos formais, de estruturas dos quadrinhos, a origem das historinhas remonta quase à própria origem do homem: os primitivos desenhos das cavernas possuem uma estrutura interna, de interligação, muito próxima da lógica narrativa dos quadrinhos de hoje.

Mas a trajetória dos quadrinhos como tal começou no início do século XX e teve sua verdadeira explosão, seu boom (para usar uma palavra em si onomatopaica, dentro do contexto dos comics) durante o chamado “esforço de guerra” americano na década de 1940. Aí sim, Tio Sam descobriu a força dos quadrinhos como aparelho ideológico de estado. Exemplo disso é o Capitão América – como o próprio nome indica, o baluarte do esforço de guerra americano, o herói por excelência dos GIs.

 

Sintaxe & ideologia



 Até os anos 1960, a intelligentsia ocidental praticamente “torcia o nariz” para os comics: subproduto, subliteratura etc. Mas os anos 1960 trouxeram também outra explosão além das indefectíveis bombinhas ianques lançadas no Vietnam, em pleno delta do Mekong. Pela primeira vez, as pessoas iam ao cinema não pelos atores, mas pelos autores.  Não mais Gary Cooper ou Ingrid Bergman, La Monroe ou Mr. Bogart. Aos poucos, o público começava a conhecer também quem estava por trás das câmeras: Fellini, Resnais, Bergman, Godard.

E foram exatamente esses nomes, “estrelando” em letras garrafais nos cartazes cinematográficos, que começaram a dar grande atenção às histórias em quadrinhos. Nada de novo, por sinal. A linguagem dos quadrinhos está extremamente próxima à do cinema.  É a grande simbiose entre os comics e as story-boards. Enquadramentos, cortes, closes, plongées, jogos de sombra e luz (claro/escuro) – a sintaxe dos quadrinhos é cinematográfica por excelência.

Assim, não foi à toa que cineastas do porte de um Fellini ou de um Resnais começaram a dar entrevistas, a escrever artigos sobre quadrinhos, até a participar ativamente do Le Club de La Bande Dessinée. Estavam ali Resnais, Truffaut, Godard, o próprio Fellini, trocando seus gibis como nos melhores momentos da infância. Ainda não se falava em ideologia. Os quadrinhos eram revistos enquanto estética, enquanto linguagem, enquanto design gráfico.

Passou a ser “bem” curtir os quadrinhos: dava até um certo status entre a intelligentsia. E, claro, tome de teoria, que a turma não é de brincadeira: de Umberto Eco a Sérgio Augusto (que chegou a pensar um filme – sobre os comics), dos ensaios de Alain Resnais aos vários livros do meu amigo Moacy Cirne, praticamente esgotando o assunto, isto é, esgotando ao nível da linguagem, da estética. Neca de ideologia.

 


Na verdade, temos que admitir que são de primeira linha os traços de um Alex Raymond (Flash Gordon), de um Hogarth (Tarzan), de um Eisner (Espírito), a trindade máxima dos quadrinhos, já computados como clássicos dos comics. E lá vem teoria, “vasos comunicantes” & outras flores mais amenas dos mass-medias. A retomada foi tão grande que os americanos chegaram a ensaiar um rides again do Capitão América, que já fora devidamente sepultado entre os heróis da Segunda Guerra. Explica-se: a escalada no Vietnam estava no auge. Quer dizer, por trás da estética, perdurava, como sempre, a ideologia.

Enquanto os estetas se extasiavam com a qualidade gráfica dos comics, Tio Sam mandava brasa, quer dizer, mandava sua ideologia pelas entrelinhas, ou pelos “entre-quadrinhos”, como queiram. Os “meninos do Brasil”, os submeninos latino-americanos, dos oito aos oitenta, recebiam e continuam recebendo doses subliminares da ideologia capitalista através da febre dos quadrinhos.

 

Historinhas de negação

No início dos anos 1970, o Chile viveu uma experiência única na América Latina, que não pode ser comparada nem mesmo à Cuba de Castro. Pela primeira vez, o socialismo chegava ao poder através de eleições diretas. A curta trajetória de Allende no poder (1970/1973) gerou entre os intelectuais chilenos uma série de estudos buscando trazer à tona os graves problemas, e, de certa forma, direcionar as novas veredas que poderiam ser abertas para imprimir mais humanidade  aos destinos da América Latina. Os chilenos perceberam de imediato a força ideológica dos meios de comunicação, e vários ensaios foram feitos sobre o assunto.

 

 Este Super-Homem e seus amigos do peito é um deles. Aqui, Ariel Dorfman e Manuel Jofré procuram analisar as “tramoias ideológicas” que se encontram por trás da aparente ingenuidade dos quadrinhos. À primeira vista, o livro é um festival de lugares-comuns, um sem-número de “descobertas” de fatores óbvios dentro do universo dos quadrinhos, como listado a seguir.

“O papel da ideologia é eliminar as contradições que os homens e o sistema social capitalista possuem. Nega ou deforma o fato histórico de que existem países desenvolvidos e subdesenvolvidos (fixando o espaço das histórias em quadrinhos numa terra de ninguém, como, por exemplo, nos casos do Oeste, da selva ou da cidade gótica de Batman); nega a transformação social (propondo um mundo circular onde sempre triunfam os super-heróis, seja Batman, Tarzan ou Zorro); nega a propriedade privada dos meios de produção (mostrando nos quadrinhos apenas as economias artesanais e primitivas); nega as contradições históricas e sociais (convertendo-as em problemas psicológicos de um indivíduo);

“Nega a dinâmica da dialética (propondo simples conflitos); nega as contradições insuperáveis do capitalismo (com o super-herói superando os problemas da justiça); nega os seres humanos  (personificando o dinheiro); nega o social (ao mostrar os bons sempre sozinhos); nega a humanidade (colocando o super-herói como um messias que impõe a justiça e a ordem convertendo-o em um ser supratemporal dotado de poderes eternos); nega a liberdade (o super-herói castiga os que se rebelam, prendendo-os ou recapturando-os para o sistema); nega a igualdade entre os seres humanos (construindo um mundo baseado em relações verticais de domínio); nega o trabalho (os personagens estão sempre ociosos); nega a criação (originando um mundo repetitivo); e claro que, além de negar muitíssimas coisas mais, a ideologia das histórias em quadrinhos nega a si própria (nunca nenhum personagem as lê)”.

 

Parafernália ideológica

 


Muito bem. Aparentemente, numa primeira olhada nos comics, nós conseguimos visualizar toda essa parafernália ideológica. Naturalmente, todo o pessoal que andou escrevendo sobre a estética dos quadrinhos sabia disso. Mas, esse fato não interessava à especificidade de seus discursos, que eram trabalhados ao nível sintático, não semântico; ao nível estético, não ideológico. “Nós quem, cara-pálida?”, diria o Tonto para o Zorro, na velha piada citada por Dorfman nesse livro. Nós que, de certa forma, temos condições de entender o que está por trás da “inocência” dos super-heróis. Mas, e os outros? E as milhares de pessoas que recebem massivamente, sem perceber, a “mensagem” real que está por trás das aventuras dos super-heróis?

Dorfman & Jofré utilizam propositadamente em seu ensaio uma linguagem também ingênua – de certa forma um ersatz da própria linguagem dos quadrinhos. Explica-se: eles sabiam bem quem deveria ser o seu público, qual seria a meta, o alcance de seu trabalho. Exatamente aquelas pessoas ludibriadas pelo fascínio dos quadrinhos e de suas aventuras mirabolantes.

Dorfman disseca o Llanero Solitario (Lone Ranger, o nosso Zorro) através da análise específica de uma de suas aventuras. Muita coisa certa. Outras, óbvias; mas necessárias. Jofré abre o leque de seu trabalho, procurando analisar os quadrinhos em termos globais. Claro, também ao nível ideológico – e nisso seu ensaio tem mais consistência. Ambos conduzem o trabalho tendo como escopo um mapeamento ideológico do universo dos quadrinhos. E, como os quadrinhos, os ensaios são também eivados, propositalmente, de um certo maniqueísmo.  

Mas isso era necessário dentro do contexto da época, quando Allende desaparecia no final do último quadrinho, solitário, pressionado pelos mal-encarados “fazendeiros do novo poder” e seus asseclas, derrubado por seu “arqui-inimigo” Pinochet e seu bando armado. Nem mesmo Tonto, seu fiel amigo, restou. Silver está cansado e capenga, os desprotegidos continuarão desprotegidos: a lei da selva voltou aos Andes, perdão, ao Oeste. Nesta trágica, derradeira aventura, Zorro-Allende acaba derrubado por um balaço solitário.

 

Jofré: valores de contrabando

A seguir, destaco alguns trechos das observações de Manuel Jofré, que compõem a segunda parte do livro.

      “O personagem com o qual nos identificamos ao ler uma história em quadrinhos não apenas possui um valor, como também nos passa vários outros de contrabando.  Para esclarecer, diremos que um valor é simplesmente nesta análise uma atitude humana, um traço de conduta, colocado a nível abstrato. Se o personagem que representa o valor justiça agride um negro, temos aí, imediatamente, outro valor: a segregação racial. Por isso, haveria que distinguir entre os valores que representam os personagens – são universais e facilmente encontráveis – e os que eles mesmos postulam (é aqui onde se transmite a ideologia com toda a sua força).

     “É a diferença entre o que os personagens parecem ser e o que verdadeiramente são. Isto visto sob um aspecto dos quadrinhos, porque, além deste, existe um segundo nível de deformação. Existem personagens que usualmente têm uma significação na realidade social objetiva, por exemplo, um juiz. Neste caso não há necessidade de caracterizá-lo para que represente algum valor, o que já possui é suficiente.

“E se o personagem está positivamente caracterizado, o leitor já está identificado com ele, mas os resultados de seus julgamentos – que compartilhamos na leitura – podem ser absolutamente errôneos. Ou melhor, personagens que são postos nos quadrinhos como representantes de uma classe social ou de um setor de classe, têm opiniões ou ações pertencentes à outra classe. Parecem ser uma coisa mas na realidade são outra. Disfarçam um valor, um comportamento atrás do outro.

“(...)  O suspense, a sucessão progressiva de acontecimentos, prepara o clima conflitivo.  Chega o conflito, desatado em uma página (de seis a oito quadrinhos). Em seguida, a historieta deve oferecer outro centro de interesse. Nesse momento, o importante, como mecanismo de atração, é a surpresa. Surpresa diante do resultado do conflito, surpresa diante do novo curso que tomam as ações.

“A surpresa une-se ao suspense e prepara o terreno para o conflito seguinte. Assim a visão que se tem da história é a de um simples jogo de ações, nunca um conflito social. O implicado é um indivíduo, nunca um setor social nem o sistema. O conflito torna a historieta interessante. De três conflitos em um episódio, as forças do bem (o super-herói) podem perder um deles, até dois, se isso der mais suspense e permitir que a vitória final seja impressa mais fortemente na mente do leitor. Os super-heróis podem perder uma batalha, mas não a guerra. Não sofrem derrotas estratégicas.

“(...) O herói necessita vencer para ser super-herói e só vencendo e sendo indivíduo excepcional é que se produz a identificação afetiva necessária para que divirta. Quadrinhos, desenhos e letras, facilitam isso (a que o leitor vá direto pelo caminho desenhado pela ideologia burguesa). Por isso, quando já se leu muito uma série de história em quadrinhos, e ela já é conhecida, o leitor crítico pode adivinhar o caminho que a aventura seguirá.  A estrutura repetitiva e simplista começa a revelar-se.

(...) Evidentemente a história em quadrinhos tradicional burguesa porta todos os valores graças aos quais sobrevive o sistema capitalista. Um papel importante, nesse aspecto, é cumprido pela repressão sexual. Em várias dessas séries reúnem-se personagens dos dois sexos, e a incitação à aventura é constante entre eles. No entanto, aproximam-se mas não se beijam, olham-se mas não se tocam; desejam-se mas não se amam.

“Esta é a relação entre Super-Homem e Miriam Lane, entre Tarzan e Jane, entre Donald e Margarida, entre Mickey e Minie.  Em alguns desses casos, a atração é planejada racionalmente pela mulher, mas o homem resiste e não cumpre o papel masculino. Para muitos desses super-heróis as pessoas mais próximas são homens e não mulheres. É assim entre Tonto e Zorro, Batman e Robin. Em Tom e Jerry existem personagens sem nenhuma manifestação sexual. A forte relação erótica ou de aversão, de Bolinha por Glória ou por Luluzinha, respectivamente, demonstra até que ponto uma revista apresentada como inocente pode deformar os leitores no que diz respeito a determinadas atitudes humanas vitais como, no caso, o amor sexualizado. 

“(...) Outra característica sempre presente é o predomínio do quantitativo sobre o qualitativo. Tio Patinhas não se importa de ser ranzinza, avarento e explorador, desde que seja o homem mais rico do mundo. A única coisa que Bolinha sabe fazer com dinheiro é tomar o  máximo possível de sorvete. Super-Homem é super-herói porque tem mais força, mais visão, mais velocidade. O progresso humano e social de um personagem plasma-se no conforto material, nos objetos que o rodeiam, mas nunca numa capacidade criativa, nunca na riqueza interior, nunca na qualidade das relações humanas.

“(...) Tudo isso faz com o leitor assimile ideias como o servilismo, a submissão, o medo da renovação, o conservadorismo e um autoritarismo do qual é impossível fugir. (...) A magia nem sempre é uma anedota a mais, mas também é um fator atuante e indispensável. Feiticeiros, magos, adivinhos, profecias, encantamentos, são ações constantes em Patópolis, na selva de Tarzan, no Oeste, na ficção científica, no mundo da Luluzinha. Falar de magia outorgando-lhe poder mobilizador das ações ou capacidade resolutiva é mais uma forma de sair do cotidiano, do histórico. Seria demais dizer que magia é postulada como atividade eterna e permanente na história.

“Todos esses recursos conservadores contribuem para tornar naturais os conflitos sociais. Um conflito se eterniza ao ser repetido uma vez ou outra em cada episódio. O mundo assim construído aparece com uma característica essencial. Como um mundo detido. Isto é, carente de qualquer progresso".

 

Ronaldo Werneck

Rio, 1978