17 de abr. de 2024

O RE/TOQUE DO ZIRALDO

 


     Na noite em que Rosário Fusco morreu em Cataguases, 17.08.77, falei com Ziraldo pelo telefone e combinamos que eu faria um artigo pro Pasquim. O texto saiu uma semana depois, e de certa forma complementava a longa entrevista que Joaquim Branco e eu fizemos com o romancista cerca de um ano antes – e que o Pasquim publicaria em março de 1976.
      Assim eu iniciava um longo texto quando da morte de meu amigo, o romancista Rosário Fusco. Num tempo sem computador, internet e essas modernidades de agora, lembro que levei os originais da entrevista diretamente para a casa do Ziraldo – e, a tiracolo, minha mulher à época, Adriana Montheiro, que acabara de fazer um ensaio fotográfico com Fusco. Ziraldo deu uma rápida olhada no texto, deixando entrever sucessivos sorrisos de aprovação: “isso está ótimo, Fusco é impagável! Vai dar ótima matéria, com certeza!”.
     Foi quando passei pra ele as fotos da Adriana. Ziraldo, olhou, olhou de novo e voltou a olhar, admirado: “A entrevista está ótima, mas com umas fotos dessas não precisa nem de texto, elas falam por si. São fotos que conseguem captar com precisão o ser formidável que é Rosário Fusco”. O olhar de Ziraldo era o do grande artista gráfico que sempre foi – e sacou na hora o potencial daquelas fotos que acabaram enriquecendo a entrevista, que ocupou mais de 10 páginas do Pasquim.

Aberto para obras



      Corta para um dia de 1991, quando minha amiga, a arquiteta Tânia Horta, me trouxe os originais de um livro de poemas, “Coração Fechado para Obras”, que queria publicar. Disse pra Tania procurar o seu primo Ziraldo: quem sabe ele não faria a capa? Talvez a Olga Savary pudesse fazer um prefácio, que ela era expert em escrever prefácios. E passei pra ela também o contato do Massao Ohno, em São Paulo, que editava uns livros muito bem cuidados graficamente. Acabou que eu escrevi um pequeno texto para a orelha do livro, enquanto Tânia aguardava o prefácio da Olga. Ela falou com o Ziraldo, que pediu para ver os originais do livro.
       Tânia e eu levamos os originais para sua casa na rua Baronesa de Poconé, na Lagoa, cuja porta era guardada por aquele poster imenso do Super Homem. Ziraldo nos recebeu em seu estúdio com o sorriso de sempre, nos abraçou e começou a manusear atentamente o livro. “Ótimo titulo, Tânia, ótimo título”. Ele estava na prancheta e passou a escrever várias vezes aquele “Coração Fechado para Obras” com sua caligrafia característica. Eu disse pra ele que falara com a Tânia pra mandar o livro pro Massao em São Paulo.
     Sem nos olhar, e continuando a rabiscar o titulo sem parar, Ziraldo nos disse: “Sim, aquele japonesinho é maluco, mas faz um ótimo trabalho, tem todo um cuidado gráfico, produz belos livros, principalmente de poemas”. Percebemos que o papo findara ali, pois ele já estava focado no fazer da capa. Ziraldo disse que assim que tivesse alguma coisa falava com a Tânia.
       E assim foi. Dias depois ele ligou: a capa estava pronta. Lá fomos nós, Tânia e eu, de novo pra Baronesa de Poconé. Sentado na prancheta, Ziraldo nos mostrou a capa que fizera: tudo muito sóbrio, o fundo branco com lettering em preto. Aquele “lettering-Ziraldo”, inconfundível, as letras maiúsculas de sempre, sua marca e assinatura, E, no caso, vazando por toda a capa e contracapa, tudo muito ousado, as letras garrafais ocupando capa e contracapa.
     De repente, ele toma de novo a capa que estávamos olhando, pega um lápis de cor e dá o re/toque de gênio: preenche de vermelho o vazio dos dois “o” da palavra coração. Tânia e eu vimos ali, naquele momento, o layout da capa, que já era ótimo, tornar-se soberbo. Touché!


Elisa e o elefante

      Era um final de tarde qualquer de 1993, o carro correndo lento em meio ao trânsito tumultuado do Leblon. No banco de trás, Vilma, a mulher do Ziraldo; Fernanda, sua secretária; e Tânia Horta, à época já minha namorada. Eu estava na direção e tinha ao meu lado, ninguém menos que o Ziraldo. Convidado por Sérgio Cabral, o pai, Ziraldo ia todo serelepe para tomar posse na Academia da Cachaça, na rua Conde Bernadotte.
     Foi quando a Tânia pediu para eu contar “aquela história” da Elisa Lucinda. Foi assim: Elisa e eu nos conhecemos numa noitada carioca num bar da Pacheco Leão, no Jardim Botânico, o Botanic – refúgio de poetas de vários quilates, que ali se apresentavam, falavam seus poemas e falavam, falavam.
         E foi lá e ainda lá que vi Elisa Lucinda pela primeira vez, falando com grande verve um de seus enormes poemas. Fiquei fascinado com aquilo tudo, a mulata, os verdes olhos, a voz rouca, o soar de seu poema-espanto. Também eu falara antes alguns de meus poemas. Terminada sua apresentação, Elisa sentou-se em minha mesa. Mal chegamos a ser apresentados e logo elogiei sua bela performance. Ela devolveu os elogios, dizendo que também gostara de meus poemas. E adiantou: “Quem sabe a gente não se reúne e faz uma apresentação juntos?”. Eu disse que sim, que era uma boa ideia. Quem sabe ela não iria lá em casa pra gente ensaiar?
      Elisa ficou séria: “Ah, Ronaldo, não vou na sua casa, não”. “Mas, Elisa, por que não?”. Ela então mandou essa: “Não vou não, porque você vai querer me comer”. Surpreso, eu disse: “O que é isso, Elisa?”. Aí, ela soltou aquele sorriso de quem me pegara pelo pé: “Ah, não? Você não vai querer me comer? Então é que não vou mesmo. O que vou fazer lá, se você não vai me comer?”. Pano rápido, com muitas risadas.
      Muitas e muitas risadas dentro carro em que estávamos, Ziraldo quase gargalhando. Foi quando ouvimos a voz da Fernanda (que era muito surda): “Ziraldo, conta aquela do elefante!”. As risadas aumentaram altissonantes que só elas. Ao nos ver rindo, Fernanda achou que estivéssemos contando alguma piada. Chegamos ainda rindo à Academia da Cachaça: Ziraldo, pelo que me lembro, bebia pouco, quase nada. Eu, “modestamente” estava numa fase não–etílica. Então, pelo menos para nós, aquela foi uma noitada de Coca. Cola, seus malvados!

Com carinho, please!


Elisa Lucinda no meu colo: “Com carinho, please!

    O namoro com a Tânia acabou. “Pasarán más mil años, muchos de más/ Yo no sé si tenga amor la eternidad”, como no bolero famoso de Luis Miguel. Fiquei sem ver o Ziraldo por uma eternidade. Até que um dia qualquer da primeira década deste século nós nos encontramos na inauguração de um bar, quase casa de shows, ou coisa que o valha, na rua do Lavradio. Local especializado – vejam só a sina dos não-bebuns – em cachaça, a própria. Bar de mineiro, claro, do Plinio Fróes, também dono do Rio Scenarium, quase em frente. Eu fui a convite de minha amiga, a cantora lírica Maria Lúcia Godoy, que seria homenageada. Mal chegamos, demos com o Ziraldo, encostado no balcão, conversando com o Plínio.

   Nem deu tempo de nos cumprimentarmos, pois Ziraldo logo lançou de lá: “E aí, comeu?”. Na hora mal me lembrei da Elisa Lucinda, mas logo dei uma risada e disse pra ele: “Qual o quê, sô! Ela anda sempre lá em casa, viramos bons amigos, mas não rolou nada”. Não sei se ele acreditou, ma è vero! Elisa e eu ficamos bons amigos para sempre, embora hoje pouco nos vemos, eu aqui em cá/tá e ela lá no Rio. A última vez que nos encontramos foi numa Flip de Paraty, 2014. Elisa lançava seu livro “Fernando Pessoa, O Cavaleiro do Nada”.

           Foi uma festa, não só literária. Ela me deu o livro com a dedicatória: “Ronaldo, querido, saudades da sopa e das noitadas no Nogueira”. O Nogueira, no Baixo Copa, foi meu bar-escritório por vários anos-madrugadas. Tenho saudades da inacreditável Elisa, seus insights, sua alegria. Ah, sim: essa foto que está aí em cima. Aconteceu também durante outro lançamento, mas de um de meus livros no Rio, 2005. Elisa chegou e abafou de uma sentada só. Literalmente: sentada no meu colo, como quem não quer nada, para espanto do (in)distinto público, pede meu autógrafo: “Com carinho, please!”


E a do elefante?


     Na tarde do sábado em que Ziraldo morreu no Rio, 06.04.2024, soube pelo Joaqum Branco. “Puxa, até o Ziraldo, eu disse, logo ele que eu julgava o único realmente imortal de todos nós”. Numa entrevista de poucos anos atrás ao Canal Arte1, Ziraldo – com a mesma voz rouca, mas agora meio sumida, às vezes meio esquecido, titubeando, ainda era capaz de citar Einstein. Estava ali um Ziraldo de fala lenta, atravessado pela doença, a fala que falha: seus perrengues, suas ziquiziras, sua malasorte. Um Ziraldo capaz de trocar até a data do AI-5, quando ele e a turma do Pasquim foram presos. “Era novembro de 1968”. Não, Ziraldo, foi em dezembro, 13. Et pour cause.
      Mas, como disse, conseguiu citar Einstein: “a imaginação é mais importante que o conhecimento”. Imaginação e criatividade que assomaram em sua vida como se para sempre. Pois é, Ziraldo se foi com o seu talento, sua enorme imaginação e nos deixou sem saber como era aquela piada do elefante. Pô, Ziraldo, logo a do elefante, cara?

15 de abr. de 2024

Affonso Romano sobre RW: O mundo é macio e perigoso.

 


 Neste cinepoema, a poesia vive uma odisseia no espaço. Selva Selvaggia” não é o título de mais um livro de poesias, mas sim o nome de um cine-poema. O roteirista e diretor extraiu o argumento desta edição de fatos vivenciados por ele mesmo no eixo Minas-Bahia-Rio, entre 1962-1975, e de “outros lidos, vistos, consumidos – pelo telstar, pela tv, pelo cinematógrafo”.

Para Glauber Rocha, um filme não é arquitetura de efeitos, mas expressão visual de problemas. Talvez esteja nestas palavras de Glauber a explicação para a proposta poética de Ronaldo, que sem dúvida alguma suou e sofreu para compor seu poema – “na rua, na cama, no teclado da máquina, subitamente dentro de um cinema”. Com uma primeira montagem de Selva Selvaggia (com 66 takes de certa forma mantidos ou reestruturados nesta montagem atual), o autor foi premiado em 1970 pela União Brasileira de Escritores.

Teve outras premiações na primeira promoção de poesia na Guanabara, no primeiro e segundo festival de poesia de Pirapora (neste último recebeu o prêmio “Carlos Drummond de Andrade”). Ronaldo Werneck é um poeta amadurecido em barris de carvalho. Seu poema é uma dose dupla de batida de limão misturada com muitos copos de cerveja, duas vodcas e vários uísques.

A quem brinda? A Oswald de Andrade, Fellini, Mallarmé, Jorge de Lima, Mário Faustino, João Cabral, Maiakóvski, Camões, e.e. cummings e muitos outros. O que brinda o poeta? A palavra e o homem. Em Selva Selvaggia, o leitor-espectador encontrará dez seqncias, e a primeira abre a cena com o poeta refletindo sobre seu ofício: procurando estruturar os elementos necessários para a cine-viagem, através das palavras, imagens, espaços em branco. 

Vejamos o poema “Três haicais à la carte”: 1) os brancos impressos/ entre as letras são tetas/ leite submerso. 2) pedra sal e sonho/ apreender com o corpo/ sol cotidiano. 3) do amor não a/ prendeu a tonalidade/ar e amar´elo”. 

Notam-se influências joycenas – pelas associações sonoras – e de cummings – pela desintegração das palavras. Infelizmente não posso reproduzir aqui os melhores exemplos de total libertação, como acontece nos poemas Telstar, 2001 o espaço poético, Canção da espera”, “Réu´p”, Full-time”, “Pranto-socorro” e outros em que as palavras se agrupam coerentemente e se estruturam formando mosaicos visuais e fragmentos sonoros.

O poeta encerra a seqncia cinco com o poema-processo Pop/lar um poema eletrodoméstico social, em que aparece uma página de jornal anunciando uma liquidação de geladeiras, aparelhos de tv, liquidificadores, fogões, bicicletas, enceradeiras. Na mesma página, a notícia – “O mundo é macio e perigoso” – é o título do poema-texto, que tem como ilustrações fotografias de pessoas rindo e correndo de felicidade. Neste poema-texto Ronaldo mostra em versos como vê a realidade social deste mundo macio e perigoso. – “Uma canção de espera/ uma canção de esperança/ ancião/ ânsia/ canção/ anunciação/ retribuição/ risos/ grunhidos/ febre/ vômito/ de esperança/ é o mundo/ que te anuncio”.

Num total de 86 poemas, Selva Selvaggia é um desabafo de seu autor, refletido em uma boa dose de sentimentalismo poético, misturado com muita poesia concreta e alguns poemas-processo.


Affonso Romano de Santana

Revista Veja, São Paulo, maio de 1976