A seguir, a primeira parte da entrevista de Rosário Fusco que eu e Joaquim Branco fizemos pro Pasquim em 1976.
O ESCRITOR BRASILEIRO É UM SUPERCAMELO
PASQUIM – Que que há, Fusco. Não publica mais no Brasil?
FUSCO – Mofino autor de livros sem nenhuma significação especial, nesse ou em qualquer gênero, jamais consegui firmar uma clientela fixa (acho que nem mesmo flutuante) quando isso era possível, neste ou em qualquer país. Agora, ignorado por leitores e editores, me resigno, humildemente, a ser, apenas, autor de títulos que nem aos íntimos revelo. Velhice? Velhice. Não posso conceber um mineiro fazendo concessões de nenhuma espécie. Sou do tempo do fio de barba funcionando como firma reconhecida. Não concebo – mas, porém, todavia, contudo – num artista (eu disse artista). Então vocês acham que mineiro tem coragem de escrever sobre si mesmo? Os que escreveram – Afonso Arinos etc – já os excluí da lista das minhas admirações coestaduais.
PASQUIM – Literatura e vida: são paralelas?
FUSCO – Não se pode reduzir uma tese “insistente” a simples verbete. Sim, eu tive sempre (e confesso) vontade de durar: o diabo é que entre “duração” e “existência” há abismos que nem de leve pressente a nossa (dos imbecis) vã filosofia. Ora, meus jovens atletas: quando eu era criança já me preocupava com o assunto e outro dia, revendo velhas coisas, fiquei pasmado com a minha “unidade” na incoerência vital: não mudei, não mudo, não mudarei. “Sou uma miséria só” (Livro de João/1944) – sou “miséria por conta e risco” (O Agressor/1939) – “A vaidade imediata não é o forte dele... nem o meu (Amiel, 19... meu Deus, eu tinha vinte anos). E vou cumprindo, com isso, a outra, a terrível vaidade constitucional. A vida me ensinou a conciliar os extremos: perdão, tempo e memória.
FUSCO – Mofino autor de livros sem nenhuma significação especial, nesse ou em qualquer gênero, jamais consegui firmar uma clientela fixa (acho que nem mesmo flutuante) quando isso era possível, neste ou em qualquer país. Agora, ignorado por leitores e editores, me resigno, humildemente, a ser, apenas, autor de títulos que nem aos íntimos revelo. Velhice? Velhice. Não posso conceber um mineiro fazendo concessões de nenhuma espécie. Sou do tempo do fio de barba funcionando como firma reconhecida. Não concebo – mas, porém, todavia, contudo – num artista (eu disse artista). Então vocês acham que mineiro tem coragem de escrever sobre si mesmo? Os que escreveram – Afonso Arinos etc – já os excluí da lista das minhas admirações coestaduais.
PASQUIM – Literatura e vida: são paralelas?
FUSCO – Não se pode reduzir uma tese “insistente” a simples verbete. Sim, eu tive sempre (e confesso) vontade de durar: o diabo é que entre “duração” e “existência” há abismos que nem de leve pressente a nossa (dos imbecis) vã filosofia. Ora, meus jovens atletas: quando eu era criança já me preocupava com o assunto e outro dia, revendo velhas coisas, fiquei pasmado com a minha “unidade” na incoerência vital: não mudei, não mudo, não mudarei. “Sou uma miséria só” (Livro de João/1944) – sou “miséria por conta e risco” (O Agressor/1939) – “A vaidade imediata não é o forte dele... nem o meu (Amiel, 19... meu Deus, eu tinha vinte anos). E vou cumprindo, com isso, a outra, a terrível vaidade constitucional. A vida me ensinou a conciliar os extremos: perdão, tempo e memória.
PASQUIM – O que você entende por romance? FUSCO – Romance, para mim, é gênero danado e, pois, maior, o maior. Romance só é gênero pequeno, barco de pequena cabotagem, nos compêndios de história literária dos teoristas nacionais. Ou nos volumes dos narradores brasileiros. Você (vocês, eu, qualquer um) pode ler A Imitação e não se santificar. Pode praticar, digamos, Aristóteles e não se tornar filósofo. Mas se ler o Madame Bovary, por exemplo, será fatalmente modificado, perdido: irremediavelmente. Só o romance exige e transmite sensação. Só um artista, um louco varrido, meu Deus do céu, pode escrever um romance – arte do diabo, sábio e adivinho, profeta e canalha, pregador e santo, catalisador e cirurgião, mágico e ordenador do caos, masoquista e infeliz. Bem, já estou caindo na literatura, com perdão da palavra, louco pra escrever depressa e... o negócio é “mergulhar no materialismo histórico”, como dizia Oswald de Andrade.
PASQUIM – Na sua opinião, a quantas anda o romance brasileiro. Parou em Graciliano ou continuou em Clarice, Guimarães Rosa etc?
PASQUIM – Na sua opinião, a quantas anda o romance brasileiro. Parou em Graciliano ou continuou em Clarice, Guimarães Rosa etc?
FUSCO – O romance brasileiro, como processo, não parou. Acontece que, com a tentativa atual de desmoralização do mistério (homem indo a lua, pílulas dissolvendo fetos, robôs engendrando filhos, computadores prevendo o futuro) o homem foi levado a esquecer o corpo, única “realidade” que se pode palpar. Assim, não havendo mais lugar para a ficção (tessitura mítica do que se sente, pensa e faz), a transmissão dos dramas (situações) emocionais, através das palavras, não faz mais sentido. E, porque não faz mais sentido, os romancistas, no momento, se mandaram pra glotologia. Mas isso acabará. A literatura (arte de exprimir, gráfica e esteticamente, o outro lado do real) tem passado por fases históricas, barrocas, equivalentes. Os modismos são pendulares.
PASQUIM – Por falar em “outro lado do real”, como você situa o realismo fantástico, Borges, Cortázar & etc ?
FUSCO – Vocês podem publicar, para efeito de gozação, que eu sou o precursor do “realismo fantástico” no romance sul-americano. Li recente entrevista de Cortázar dizendo que aprendeu a coisa de Jorge Luis Borges, que começou a coisa na América em 1942, mais ou menos. Ele, Cortázar (aliás um chatíssimo tipo) começou em 47. Ora, em 39 eu escrevi O Agressor, que demorou 4 anos na José Olympio e só saiu em 43. Logo, donc, q.d.o., “realismo fantástico” é besteira (Pawels é que valorizou a chancela, mais velha do que a Sé do Braga, valorizou ou vulgarizou) quando, para efeito estético, já existia o “supra-realismo” de André Breton e Appollinaire, muito mais lógico. E lógico por que? Porque o supra-real, significando algo mais que o real ou o outro lado dele, diz mais do que “realismo” grudado a “fantástico. Por que ainda? Porque o real independe da existência, podendo até – e é o que acontece sempre – precedê-la. Tomás de Aquino já associava a potência e o ato, ou distinguia o ser da existência (coisas que o vosso amigo Sartre explorou às pampas) pois que a essência precede a existência (Heidegger, Husserl etc). Quando penso um romance, o romance já existe (em essência, i.e., em potência) faltando o ato (fazer) para que ele exista. Já lhes disse, mais de uma vez, que vivemos um tempo semântico. A mesma coisa e a mesmice se impondo com outros nomes. Inventa-se uma palavra (Inventa-se ou valoriza-se) e logo vem uma teoria para lhe dar curso. Parapsicologismo (Rhine) é o ocultismo milenar, oriental, com nome novo. Media (Mcluhan) ou hardware – quinquilharia (ambiente ou resto, ou restos, quinquilharias, peneirados do ambiente, media) fazem a fortuna de um autor e as masturbações dos deslumbrados. Tomás de Aquino: ”a realidade transborda do conceito”. Correto, positivo: porque as palavras que nomeiam as coisas combinam, as coisas restam, resistem. Aqui, cabe o nihil novi. Mas acontece que, sem tais transas, como a gente poderia s’amuser, aguentar a carga existencial, arranjar pretexto para beber ou coisas pelas quais morrer? A confusão foi sempre geral, meus caros. E ai de nós se a existência não fosse confusa, fusa, fusional, fissível, fusca, fusco. Amém.
PASQUIM– A criatura, ou o criador? O que vale mais, o escritor Rosário Fusco ou o Rosárr, como a Annie lhe chama, o homem cotidiano, tributável?
FUSCO– Quem escreveu o Cântico dos Cânticos? Shakespeare nasceu quando? Era mesmo Shakespeare ou Bacon, ou um francês, Jacques Pierre? Qual é mais importante a criatura ou o criador, Dom Quixote ou Cervantes? As coisas essenciais não são de ninguém: por pensamentos, palavras e obras. Mas há “essenciais” que podem ser analisados e, da análise, acabar não sendo “essenciais”. O sal era ou já foi, um elemento simples, do qual todos os outros sais derivavam. Descobriu-se que o sal (sal de cozinha) não é apenas cloreto de sódio. Mas sódio, cloro e um elenco de mais treze derivados, se submetido à eletrólise. Donde se conclui – mutatis mutandi e pulando daqui prali – que a meia verdade, aplicada a literatura está com o vosso parente e chato Jorge Luis Borges: “cada escritor cria os seus precursores”, ou, trocando a coisa em miúdos para explicação mais larga: cada um é um repetindo a todos. Daí caímos no sovado dito do nosso caro Pitágoras: “o homem é a medida de todas as coisas”, dito que eu reedito o modifico por conta e risco: “cada homem é a medida de suas coisas” Agora entendam tudo, porque vou parar de lero-puxa-lero. As vogais tinham cor antes de Rimbaud? Não. Passaram a ter: coisa que até a física moderna comprova e já não é mais considerado troço de poeta. Et voilà.
PASQUIM– Oswald de Andrade x Carlos Drummond de Andrade.
FUSCO– Não há confronto entre polos de força que se repelem, mas... curto-circuito. Não me meto nessa. Um morto, outro vivo. Me respondam: qual é o vivo, o mais vivo?
PASQUIM – O que significou o movimento da Revista Verde dentro do modernismo brasileiro? O modernismo valeu? E a Verde?
FUSCO – As revoluções, todas as revoluções, são românticas. Quando há desgaste – entropia, para os estruturalistas – recorre-se à revolução, i.e., à volta ao que “já era” sempre considerado ideal em relação ao decepcionante atual que vem sendo, ou “está sendo”. Entendam se puderem. As novas gerações cabeludas não estão, inconscientemente, ensaiando repetir a vida grupal, comunitária dos cristãos – e artesãos – do II século, superestrelando Cristo, o estilo de vida primitivo e os cambaus? Nos cambaus vocês podem incluir, se quiserem, as drogas, o zenbudismo, todos os “misticultismos” do macrobiotismo ao parapsicologismo, do astrologismo desenfreado (“Você é touro? Pois eu sou virgem...”) ao... teste de Cooper. A Verde é folclore e os seus representantes, um episódico (embora pra Cataguases lisonjeiro mas não identificado) equívoco. Já me fizeram igual pergunta, inúmeras vezes. Minha resposta tem sido esta: nada. O próprio “modernismo brasileiro” não passou de uma onda nacional inconsequente, provocada pela maré estética europeia, então montante. Repare que o historiadores do movimento – na maioria, participantes dele – têm certa dificuldade de justificar a “importância” do que acham que fizeram. Leia os depoimentos anedóticos pertinentes assinados pelos senhores Carlos Chiacchio, Peregrino Junior, Murilo Araújo, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Raul Bopp... entre outros. Os grupos provincianos só aparecem aí pela sobrevivência, mais ou menos significativa, de alguns nomes. Nomes que, de qualquer modo, se evidenciaram com o tempo, sem que a adesão deles à moda tivesse isso ou aquilo. O historiador, das letras ou não, é um arbitrário “montador” dos epitáfios para enfeitar compêndios.
PASQUIM – Por falar em “outro lado do real”, como você situa o realismo fantástico, Borges, Cortázar & etc ?
FUSCO – Vocês podem publicar, para efeito de gozação, que eu sou o precursor do “realismo fantástico” no romance sul-americano. Li recente entrevista de Cortázar dizendo que aprendeu a coisa de Jorge Luis Borges, que começou a coisa na América em 1942, mais ou menos. Ele, Cortázar (aliás um chatíssimo tipo) começou em 47. Ora, em 39 eu escrevi O Agressor, que demorou 4 anos na José Olympio e só saiu em 43. Logo, donc, q.d.o., “realismo fantástico” é besteira (Pawels é que valorizou a chancela, mais velha do que a Sé do Braga, valorizou ou vulgarizou) quando, para efeito estético, já existia o “supra-realismo” de André Breton e Appollinaire, muito mais lógico. E lógico por que? Porque o supra-real, significando algo mais que o real ou o outro lado dele, diz mais do que “realismo” grudado a “fantástico. Por que ainda? Porque o real independe da existência, podendo até – e é o que acontece sempre – precedê-la. Tomás de Aquino já associava a potência e o ato, ou distinguia o ser da existência (coisas que o vosso amigo Sartre explorou às pampas) pois que a essência precede a existência (Heidegger, Husserl etc). Quando penso um romance, o romance já existe (em essência, i.e., em potência) faltando o ato (fazer) para que ele exista. Já lhes disse, mais de uma vez, que vivemos um tempo semântico. A mesma coisa e a mesmice se impondo com outros nomes. Inventa-se uma palavra (Inventa-se ou valoriza-se) e logo vem uma teoria para lhe dar curso. Parapsicologismo (Rhine) é o ocultismo milenar, oriental, com nome novo. Media (Mcluhan) ou hardware – quinquilharia (ambiente ou resto, ou restos, quinquilharias, peneirados do ambiente, media) fazem a fortuna de um autor e as masturbações dos deslumbrados. Tomás de Aquino: ”a realidade transborda do conceito”. Correto, positivo: porque as palavras que nomeiam as coisas combinam, as coisas restam, resistem. Aqui, cabe o nihil novi. Mas acontece que, sem tais transas, como a gente poderia s’amuser, aguentar a carga existencial, arranjar pretexto para beber ou coisas pelas quais morrer? A confusão foi sempre geral, meus caros. E ai de nós se a existência não fosse confusa, fusa, fusional, fissível, fusca, fusco. Amém.
PASQUIM– A criatura, ou o criador? O que vale mais, o escritor Rosário Fusco ou o Rosárr, como a Annie lhe chama, o homem cotidiano, tributável?
FUSCO– Quem escreveu o Cântico dos Cânticos? Shakespeare nasceu quando? Era mesmo Shakespeare ou Bacon, ou um francês, Jacques Pierre? Qual é mais importante a criatura ou o criador, Dom Quixote ou Cervantes? As coisas essenciais não são de ninguém: por pensamentos, palavras e obras. Mas há “essenciais” que podem ser analisados e, da análise, acabar não sendo “essenciais”. O sal era ou já foi, um elemento simples, do qual todos os outros sais derivavam. Descobriu-se que o sal (sal de cozinha) não é apenas cloreto de sódio. Mas sódio, cloro e um elenco de mais treze derivados, se submetido à eletrólise. Donde se conclui – mutatis mutandi e pulando daqui prali – que a meia verdade, aplicada a literatura está com o vosso parente e chato Jorge Luis Borges: “cada escritor cria os seus precursores”, ou, trocando a coisa em miúdos para explicação mais larga: cada um é um repetindo a todos. Daí caímos no sovado dito do nosso caro Pitágoras: “o homem é a medida de todas as coisas”, dito que eu reedito o modifico por conta e risco: “cada homem é a medida de suas coisas” Agora entendam tudo, porque vou parar de lero-puxa-lero. As vogais tinham cor antes de Rimbaud? Não. Passaram a ter: coisa que até a física moderna comprova e já não é mais considerado troço de poeta. Et voilà.
PASQUIM– Oswald de Andrade x Carlos Drummond de Andrade.
FUSCO– Não há confronto entre polos de força que se repelem, mas... curto-circuito. Não me meto nessa. Um morto, outro vivo. Me respondam: qual é o vivo, o mais vivo?
PASQUIM – O que significou o movimento da Revista Verde dentro do modernismo brasileiro? O modernismo valeu? E a Verde?
FUSCO – As revoluções, todas as revoluções, são românticas. Quando há desgaste – entropia, para os estruturalistas – recorre-se à revolução, i.e., à volta ao que “já era” sempre considerado ideal em relação ao decepcionante atual que vem sendo, ou “está sendo”. Entendam se puderem. As novas gerações cabeludas não estão, inconscientemente, ensaiando repetir a vida grupal, comunitária dos cristãos – e artesãos – do II século, superestrelando Cristo, o estilo de vida primitivo e os cambaus? Nos cambaus vocês podem incluir, se quiserem, as drogas, o zenbudismo, todos os “misticultismos” do macrobiotismo ao parapsicologismo, do astrologismo desenfreado (“Você é touro? Pois eu sou virgem...”) ao... teste de Cooper. A Verde é folclore e os seus representantes, um episódico (embora pra Cataguases lisonjeiro mas não identificado) equívoco. Já me fizeram igual pergunta, inúmeras vezes. Minha resposta tem sido esta: nada. O próprio “modernismo brasileiro” não passou de uma onda nacional inconsequente, provocada pela maré estética europeia, então montante. Repare que o historiadores do movimento – na maioria, participantes dele – têm certa dificuldade de justificar a “importância” do que acham que fizeram. Leia os depoimentos anedóticos pertinentes assinados pelos senhores Carlos Chiacchio, Peregrino Junior, Murilo Araújo, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Raul Bopp... entre outros. Os grupos provincianos só aparecem aí pela sobrevivência, mais ou menos significativa, de alguns nomes. Nomes que, de qualquer modo, se evidenciaram com o tempo, sem que a adesão deles à moda tivesse isso ou aquilo. O historiador, das letras ou não, é um arbitrário “montador” dos epitáfios para enfeitar compêndios.
Continua
na próxima semana