27 de abr. de 2016

Fusco no Pasquim 7: Nada vale nada com algemas

Como bônus à série de crônicas sobre a entrevista de Rosário Fusco que eu e Joaquim Branco fizemos pro Pasquim em 1976, encontra-se a seguir o famigerado e “impublicável” (pelo menos na época da entrevista) poema “Edital de Demissão e Ponto”, que pertence ao livro de poemas inédito “Creme de Pérolas”. 



Edital de Demissão e Ponto
Entre suas pernas...
se avança o céu dessa estranha boca,
pálida e rosa, feito a concha marinha
Mallarmé
                                                            ... És como a hóstia consagrada no altar:
                                                 realçada por um corte ritual escarlate
                                                                                                   Saint-John Perse


Meu caro poeta:
meta
a lira no cu
(mesmo que doa)
e vê se te aquieta.

O mundo mudou tanto que
amanhã
a lua será lixeira, à toa,
privada e refúgio da terra
emudecida,
seu Orfeu.

Erra,
quem pensa
que as palavras valem
hoje em dia
— pois a palavra é poesia
e a poesia morreu.

São cibernéticos os contatos
dos homens com os homens
e dos homens com as coisas.
Números.

Mede-se a gestação do feto
pelo reto,
como se mede o tempo da trepada
ou da correspondente dor de corno
oriunda
                                                 de vero pendor
por bunda ou impossibilidades tais:

mula/ cistite/ colicistite/ cálculos renais
brochura/ ou câncer/ou cancro no pau.

Nada vale nada com algemas,
e os filhos das pílulas,
feitos ou desfeitos pelas ditas,
são tão filhos da puta que
dispensam

o pai/ a mãe/ o irmão/ a irmã/a tia
o tio/os avós/ os vizinhos/ amigos
compadres/comadres/parentes
ou conhecidos gerais, mas,
sobretudo

o teu gorgeio inútil,
de inusitados sons concretos,
montagens de ruídos antissemânticos.

Só que
o morcego recebe o ar
dos cosmonautas
...mas sem piar.

Não é possível mais cantar:
o canto entope,
engasga e sufoca.
Radar.

A poesia do cosmo chega em vibrações secretas
do telstar:
                               omite
                               e
                              demite poetas.


Não tens mais,
como ofício ou serviço,
do que captá-la ou emiti-la pelo(a)

suor/ hálito/ saliva/ mijo/ bosta
soluço/ suspiro/ riso/ porra
lágrima/ masturbações/ peido

mau pensamento
ou arroto na escala das afecções
ou de orduras exportáveis:
do corpo
e da alma.

Não sê mais escroto
ó cantor do perecível
e limitado
                 – pelo quadrado
                              sem raiz
                                   do mundo em liquidação.

Nas futuras próximas galáxias
a ser defloradas
e já quase ao alcance de tuas mãos
veremos,
prezado,
se ainda terás vez.

Não havendo mais segredo,
Dona Inês.

Nem mistério,
nem flor de verdade,
és a pura e simples terceira matéria
metida a sebo no planeta formi-plástico
até que a quarta te destrua

no quarto ou no refúgio anti-aéreo
                                       bomba
aguardando a sexta
                          feira aziaga ou a cesta
em que Deus, puto da vida,
no mindinho
                         globo celestial
pra refugá-lo no
                            grenier:
                                          voilá.

               Por inútil
               fútil
               inconsútil
uma vez que és à semelhança dele...
               — de araque,
                    sua besta.

Se cantas empós de boceta,
ou a fim de punheta,
faz um filho na proveta:
                porque, verso,
qualquer robô já faz.

Zipe na boca, rapaz,
— não poetisa mais.

Repito:
— meta a viola no saco,
                se é que inda tens saco
                ou gana de meter
(do verbo enfiar algo em algum lugar).

Pois-pois
meta em ti mesmo o
resto de pica que tiveres,
se tiveres,
na boca,
no cu
ou nos dois.

Depois...
silencia.

                   Passarinho atolado na merda
                   não janta:
                   — nem canta.


Rosário Fusco

De Creme de Pérolas,
1972 (inédito)


20 de abr. de 2016

Fusco no Pasquim 6: Rilke, Rosa, CDA & etc

Finalizando a série de crônicas sobre a entrevista de Rosário Fusco que eu e Joaquim Branco fizemos pro Pasquim em 1976, encontram-se a seguir – e provocadas por nós – algumas das “tiradas fuscais” sobre escritores daqui e dalhures. Semana que vem, como bônus, vamos publicar “Edital de Demissão e Ponto”, o poema “impublicável”, que nem mesmo o Pasquim publicou.   


ALGUNS MEDALHÕES LITERÁRIOS BY FUSCO  

Rosário Fusco: “A regra é considerar ressentida a opinião de um autor sobre outro, outros, principalmente num país em que os leitores são mais autores do que os próprios. Procurem entender. Posso discutir uma ideia: não posso discutir uma afinidade, cujos implicações têm raízes num modo que a lógica desconhece. Em homenagem a vocês, corro o risco de pensar em voz alta, com a lista na mão”.   



GUIMARÂES ROSA – Hábil inventor de palavras: inventor ou restaurador? Numa carta ao seu tradutor alemão, confessou que seu ideal seria escrever nesse idioma, por lhe permitir as mais imprevistas combinações vocabulares. Essa renúncia potencial à língua de origem delata a ambição do candidato à posição de executivo universal de um tempo de romance. Nenhum reparo à determinação: disse-o a ele, quando vivo, cara a cara, muito tempo depois de eu ter escrito sobre Sagarana. Acontece que não creio nos inovadores conscientes. O sucesso de Guimarães Rosa – sempre justificável – é o sucesso do autor difícil daqui ou dalhures. Entre os dalhures, não citarei o sovado Joyce: mas Raymond Russel. Foi um artesão diabólico, maior do que o cordisburguense. Esvaziou-se a ponto de poucos saberem que existiu. Como o nosso patrício se esvaziará, quando a safra de seus pressurosos exegetas não dispuser de mais chaves para abrir portas abertas. Todos querem explicar o escritor: do homem de laboratório ao homem de rua. A obra vai-se alargando, alargando. Um dia, descobrirão alarmados que a leitura de imaginação não é só feita de palavras. Mas sobretudo do concurso de experiências inconscientes que, no ato criador, explodem: aquém ou além da vontade do ajustador de curiosidades verbais às situações que ele se propõe a manipular, sem conhecê-las. Mas até lá (a rosa de Malherbe pode durar um dia ou um século), Guimarães Rosa será lido, discutido, “compreendido” seus neologismos se incorporarão à linguagem corrente, como os aportados pela psicanálise, por exemplo. Alguém em conversa, dirá que sofre do “complexo de Rosa” outro indagará: “Que Rosa?”. Pronta explicação: “da rosa, uai.” É a glória. De passagem: já leram o super-erudito prefácio da tradução francesa do Buriti?  

   
CARLOS DRUMMOND – É o meu poeta, o nosso poeta nacional. Pena a sua repentina, prematura, impermeabilização às louvações, menores, triviais, esquecido do vita brevis, com ou sem ars longa. Em Santo Antônio do Monte (informações do teatrólogo Alexandrino de Souto, a segunda pessoa mais importante nascida na terra, depois de Magalhães Pinto) já distribuem, para marcar livros, a efígie do vate em tiras de cartolina. Recusou o prêmio maior da Academia (nordestina) de Letras. Recusou uma cadeira na dita. Numa cadeira de balanço (leia-se Freud) à espera da vontade de fumar. Toujours fidèle à Nobel. O diabo é que, nesta altura, Jorge Amado já esteve em Estocolmo, para os devidos fins. O diabo é que ir à Canossa não é bossa de mineiro: que ela venha a ele primeiro. Não importa: um dia (certíssimo) Itabira se chamará CDA. Então, os chefes de trens em trânsito, na parada do desvio, gritarão: “CDA, CDA... cinco minutos pro café“. É o Nobel ferroviário: a gloria que fica, honrada e, talvez, acabe consolando. Em termos de ferro, de orgulho e de cabeça baixa.   

FERREIRA GULLAR & DÉCIO PIGNATARI – Só os conheço de ouvido, através de percussões não identificados, vindas daqui e dali. Como percebem, sou um sujeito “por fora”.  

AUGUSTO & HAROLDO DE CAMPOS – Os concretistas de São Paulo só agora descobriram o espaço semântico de Mallarmé, modismo mais velho do que a Sé do Braga, também por ele copiado de bardos (que beleza de palavra) medievais, quando falavam ou escreviam. Não se renova por fora, mas por dentro. 

MALLARMÉ – Interessa mais a vocês, poetas-processo, processualistas (foram, ou continuam?), do que a mim. A teoria do espaço semântico, que ele insinuou, é o alpiste dos que se engasgaram com os dados de 1897 (data da publicação do poema Un Coup de Dés). Os canoros pássaros de hoje já comem affiches: comida de mais fácil ingestão e... digestão quase feita. 

FERNANDO PESSOA – Um chato em e com inumeráveis pseudônimos. Deve sua permanência aos exegetas, aos adidos culturais portugueses, às puxações ingênuas dos poetas provinciais, que não puderam ir além do meu prezado Emílio Moura.  

DALTON TREVISAN – Alquimista dos fatos diversos que, pachorrentamente, trasmuda em pílulas (textos) acridoces, bem licopodiados. Um Nelson Rodrigues (“A vida como ela é”) com melhor dramática e senso de densidade dos corpos (personagens e situações): às vezes estranhas, às vezes, manjadas.

GRACILIANO RAMOS – Foi uma das minhas debilidades literárias, do rol das confessáveis. 

MURILO MENDES – Na minha opinião é maior do que o Carlos: ele inventou no Brasil o que faria a glória de Dylan Thomas e do Cummings, acho que muito depois. Antes ou depois ele fez aqui o que eu chamaria de poedrama, a poesia de situações, que os idiotas começaram depois do Poema Patético (cito este como poderia citar O Caso do Vestido etc) do Drummond. Depois, o onírico em Murilo não precisa de chaves nem de exegetas para utilizálas. Ele sempre viveu estados poéticos, mais sensíveis do que experimentais, o que revela sua genialidade: capacidade constitucional de inventar sem a preocupação de.

MÁRIO DE ANDRADE – Um grande, profuso e torrencial correspondente. (Fusco tem em sua casa “quilos” de cartas enviadas por ele.) Mas suas famosas cartas não dizem o que ele dizia. Quanto a Macunaíma (que o indianista Nunes Pereira poderia ter escrito, dispondo de iguais “fundamentos”) é muito melhor na versão cinematográfica do Joaquim Pedro de Andrade.

FELIPE DE OLIVEIRA – Sócio de um laboratório de produtos farmacêuticos. Nas horas vagas, acendia lanternas verdes em louvor de Orfeu. Não sei se ainda existe uma fundação com o seu nome. Distribuía prêmios literários entre escritores ameaçados de despejo por falta de pagamento. 

GRAÇA ARANHA – Especialista em escrever sobre assuntos dos quais não pescava neca: filosofia, estética... etcétera. Quando seu amigo Tristão de Athayde “interrompeu” sua Viagem Maravilhosa (romance de uma Teresa mais germânica do que tropical), teve duas ameaças sucessivas de enfarte, nos altos de um apartamento da comportada Cinelândia dos bons tempos. Nome de avenida.

RONALD DE CARVALHO – Suplente de Graça Aranha. Nome de rua. 

RIBEIRO COUTO – Não o li para guardar, não o pratiquei pessoalmente: correspondi-me com ele. Era o símbolo do “homem cordial” para Odylo Costa (filho) e Peregrino Júnior, por sua vez, dois homens cordiais. Mas por isso nada tem a ver com a literatura.

GUILHERME DE ALMEIDA – Versejava bem. O JG do seu tempo, guardadas as proporções a favor do paulista. 

ADELINO MAGALHÃES – Tipo do chamado homem de bem. Para Paulo Armando e outros moços “precursor de tudo”, inclusive de boa vizinhança em Santa Tereza.

TASSO DA SILVEIRA – Puxa a lista dos injustiçados de ontem e de hoje, de Eloy Pontes a Francisco Karam. 

RILKE – Tinha tantas perebas psicossomáticas que nem Rodin conseguiu descascá-las a cinzel. 

RIMBAUD – Um mito (aliás, minuciosamente desmontado pelo professor Etiemble) cada vez mais acariciado pelos jovens da poderosa confraria de Verlaine.

OSWALD DE ANDRADE – Morreu de talento... É a urna de cinzas detergentes do modernismo.   

13 de abr. de 2016

Fusco no Pasquim 5: No bidê de Maria Antonieta

 A seguir, a terceira parte da entrevista de Rosário Fusco que eu e Joaquim Branco fizemos pro Pasquim em 1976.


O ESCRITOR BRASILEIRO É UM SUPERCAMELO 


 PASQUIM – Quais os melhores poetas e romancistas brasileiros?  

    FUSCO – Todos os que pertenceram ou pertencem às Academias de Letras do país, da nacional às municipais, passando pelas estaduais, inclusive o endiabrado mulato que fundou a Academia (nordestina) de Letras.  

   PASQUIM – O que mais te impressionou em tuas andanças por Paris, além de ter dado “solene regada no Sena” como nos disse certa vez?  

    FUSCO – Os legumes daqui (de Paris) têm um cheiro, um suco (abundantíssimo) e um sabor desconhecido para nós. Excusez-moi du peu, mas foi o que mais me impressionou, até agora, na França: porque homens, mulheres, crianças, casa e lugares públicos – café, bares, cinemas, restaurantes, teatros, metrô, ônibus – cheiram mal. Qualquer coisa ardida, entre melão pobre temperado com vinagre e algo de açúcar de beterraba: um horror para o meu afro-nariz, sensível ao micro-cheiro. A vida literária francesa é tão suja quanto a brasileira (os homens são iguais em toda parte, pudera) e os grandes nomes daqui só são grandes nomes aí. J’ai touché Montherlant, Cocteau. Duhamel, Céline (80 anos sem tomar banho) e outros cretinos iguais aos nossos nacionais medalhões. Louis-Férdinand-Céline não concebe (vive miseravelmente, sustentado pela jovem mulher – 30 anos, no máximo – professora de dança) que ele só possa vender 30.000 exemplares de um seu romance qualquer, quando o secretário de Brigitte Bardot vende 300.000 de suas memórias só na chamada área parisiense. Mas é isso: ninguém vive de literatura. Os tipos que a praticam ou são ricos de pai e mãe (Montherlant, por exemplo, é nobre e capitalizado) ou são, de pai e mãe, paupérrimos. Uma lástima. Lástima ou pândega? Meu Deus, como tudo é igual, e a mesma coisa vem ser o inédito aleatório do existente (bonita frase e difícil de entender). Tradição e civilização, não é? Mas não haverá uma hierarquia nas “civilizações”? A França tem, no mínimo, 1.000 museus. Mas terá, no máximo 500 banheiros. E, por aí, vocês podem concluir a diferença entre a civilização e progresso. Acontece, ainda, que civilização é um estágio, um “momento” do progresso. Concluam, se quiserem. No bidê de Maria Antonieta, eu vi com meus olhos, está escrito – laissez venir à moi les petits enfants. Mme. de Montespin escreveu um tratado (300 páginas, composição corrida, cerrada, corpo 8 antigo) sobre a arte de tomar banho com um (sic) copo d’água. Luiz XV só tomou dois banhos: um quando nasceu e outro quando morreu – ou depois de morto. Os grandes museus falam de tudo, menos da autenticidade francesa. A elegância da mulher, aqui, é artigo de exportação: como a cultura, a ciência, a água de cheiro, a indumentária e o resto. No Brasil, a gente gasta um dia inteiro para achar uma feia. Em Paris, vocês gastarão meses para encontrar uma bonita. E as que se podem chamar de “boas” (no argot brasileiro) em geral vieram... da América do Sul. O francês médio é de uma burrice espetacular (não sei se já lhes falei isso) e o culto, ora, o culto não vale o nosso “meio” cultivado. Qualquer anedota de português (como somos injustos com os portugueses) você poderá aplicar, sem susto, ao francês: será sempre exata, justa, correta, adequada e... verdadeira. Para arranjar divisas, o austero De Gaulle chegou a permitir a impressão de selos (não consegui um exemplar, tal a procura universal filatélica) da Brigitte Bardot com o derrière exposto ao vento: voilà.

    PASQUIM – O que você acha da “onda estruturalista” que afoga o ensino de literatura nas universidades? 

    FUSCO – Quando um sujeito, depois de massudo arrazoado sobre um tema “esférico”, já em si e por si difícil, vem com um “o que eu quero dizer é o seguinte”, fazendo o exegeta de si mesmo, o que ele vier a dizer será mais confuso ainda. O negócio é aquilo do vosso Compadre Boileau: “o que se pensa com clareza, com clareza se enuncia”. Um professor de história literária – a literatura é um processo – que se apega a minúcias filatelistas, devia colecionar caixinhas de fósforo e não datinhas que nada significam. O romantismo começou com os Suspiros Poéticos e Saudades? Por quê? A história das letras no Brasil começa com a carta de Pero Vaz? Por quê? A periodologia é coisa de professor universitário e só voga nos compêndios, para provar que a história é uma invenção privada de quem a faz. Cada vez entendo menos essa sucessão de equívocos (estruturalistas, para empregar a palavra da moda) envolvendo e moendo pessoas. Dar nome aos bois não lhes muda a essência ou natureza. Daí a precariedade dos ismos. Basta a comemoração dos gritos que nos entulham os ouvidos: do “Fico” de Pedro I ao “Eu vou” do falecido Getúlio Vargas.  

    PASQUIM – A cultura, a civilização, o caos dos mass-media, o que pensa Rosário Fusco dessa confuzione toda?
 FUSCO – O audiovisual das comunicações cotidianas desmoralizou o mistério das terras e das gentes. Cartões postais, slides, livros e discos desmoralizam, hoje o conceito de cultura. Num excelente artigo no Le Monde, Ionesco perguntava o que é cultura. Se eu o tivesse en face eu diria cultura, sua besta, é informação. Mas informação metabolizada e não apenas codificada em termos de computador (máquina que guarda sem sentir). A poesia “progride” em nós ou fora de nós? É um tema de estética. E em estética o óbvio sempre precisa ser demonstrado. O eterno é o moderno... com apelidos episódicos. Não se modifica o que o grande Barbudo (no alto não há gilete... ou há?) criou. O resto não é apenas o silencio do nosso Shakespeare, mas o elenco de words, words, words, no dito ameno. Não acredito muito no próximo, mas no próspero.  

   PASQUIM – O que diz Rosário Fusco sobre Rosário Fusco? 

    FUSCO – Desse, posso testemunhar sem a pecha de suspeito. Se nada fez que prestasse, até agora, daqui por diante (pra lá dos sessenta – sexappealgenário, como diria o Oswald) nada fará. Com a velhice chegando, estou virando objeto de anedota: sujeito, objeto e (ou) a própria. Outro dia – saiu numa coluna de jornal – me “viram” ou ouviram cantando tango no Zum-Zum. Como gozação, é o máximo. Minha postura permanente é a do Cristo no Corcovado – braços abertos... o que não impede que, de estalo, eu resolva cruzá-los para uma ruidosa e federal banana. A biografia de Rosário Fusco? Quá, quá, quá: homem comum não tem biografia – sobrenada no mar existencial e já é muito. Não o lamentem, por favor. O homem está em estado de dentadura postiça e já não pode rir como antes ria de fazer inveja ao Newton Braga. Mais alguma coisa? Gracias, já estou intoxicado. Vou tomar um necroton. Et voilà!   

Continua na próxima semana



6 de abr. de 2016

Fusco no Pasquim 4: Na realidade, “já morri”

A seguir, a segunda parte da entrevista de Rosário Fusco que eu e Joaquim Branco fizemos pro Pasquim em 1976. 


O ESCRITOR BRASILEIRO É UM SUPERCAMELO 



 PASQUIM – Por que Cataguases? Fora os equívocos, normais, aliás, o que houve realmente? Como explicar uma experiência aparentemente de vanguarda nascida na roça que era a cidade na época, entre esterco, cascos de cavalos, entre as fofocas das comadres, que perduram até hoje, e a vida sem pressa, calma, cotidiana. Onde fica Cataguases nessa chorumela toda? 

    FUSCO – Na inconsciência do verdor de um elenco de rapazes, aspirando à afirmação de seus variados pendores – digamos, artísticos – Cataguases simplesmente cumpriu sua missão didática na época. Como, aliás, inúmeras outras pequenas cidades da província, acionadas por primário espirito de imitação. Premiar Cataguases, a propósito, com dois ou três adjetivos, em mais de uma linha impressa, só pode, a meu ver, “unfanar” sua linha de professoras de grupo aposentadas. Mestras episódicas dos gênios municipais, hoje – quase cinquenta anos depois da aventura – desencantados escribas na faixa do enfarte.


   PASQUIM – Como se explica seu silêncio desde 1961? 

  FUSCO – Na realidade, já “morri”. O que eu gosto mesmo é de ser. Mas ser, como je suis, eu posso ser em Belo Horizonte, Cabobró, Cataguases ou nos cambaus. Ninguém é por estar aí, mas por être en soi. Ninguém sai de si mesmo, ou se aliena de si mesmo, a não ser pelo sexo ou pelo álcool (digo pelo álcool para não ir à droga propriamente dita). Afinal, o que fica na vida de cada um (física ou mental) mais o que o esforço por algo que é a marca ou tara individual? Carga, ônus e pesadelo de nossa passagem (ou estada) no planeta?  

   PASQUIM – Dia do Juízo lhe rendeu quanto? O romancista brasileiro é, antes de tudo, um “duro”? 

   FUSCO – Dia do Juízo me custou três anos de trabalho (com interrupções). De 1954 a 57. Em dinheiro, líquido, o romance me rendeu cinco contos (cruzeiros novos).  O romancista brasileiro não é, antes de tudo, “um duro”: é um supercamelo carente de enzimas digestivas: rumina, mas não digere. Mas há os que digerem até tardes de autógrafos: o meu caro José Condé, p.ex., chegou a “comer” um verão em dezembro; em fevereiro, estará mais gordo do que o Rei Momo. 

    PASQUIM – A gente sabe que você tem, pelo menos, três livros novos, prontos para publicar. O que há, o que houve, o que está havendo? 

    FUSCO – O fato de ter livros prontos, nem chega a “significar”. No Brasil, não há quem não tenha um livro pronto, inclusive vocês. O problema é editar. Nunca tive um livro publicado em “bases comerciais”. Dada a mediocridade consciente do que faço, não ouso mais oferecer a ninguém. Nem oferecer, nem insinuar... etcétera. Duas vezes, cometi tais fraquezas: me mandaram plantar batatas. De fato, rende mais e chateia menos.  

     PASQUIM – O que é o romance, no seu sentido mais forte? 

    FUSCO – No mais forte, não sei. No mais fraco, romance é a vida da gente “dinamizada” pelos outros. Da participação do nascimento ao convite para a missa do sétimo dia (ou a partir desta) você já é fábula, com os ingredientes que cada qual acrescentar ao narrar o que você faz ou deixou de fazer.  

  PASQUIM – O nouveau-roman, segundo seus teóricos, acabou com o romance tradicional. Hoje, já é novidade velha. Novelhíssima. Entretanto Robbe-Grillet, sua peça mais importante, partiu pro cinema, como solução mais válida para suas pesquisas. O cinema vai acabar com o romance? 

   FUSCO – Esse negócio de nouveau-roman. Ou roman du régard é vigarice. Tudo o que é visto – já diziam os escolásticos – tem que passar pela cabeça para ter sentido. A máquina fotográfica não vê: registra. Quem vê sou eu, o fotógrafo. Mas com que autoridade eu posso assegurar que o seu azul, por exemplo, é igual ao meu? O assunto daria para um tratado de estética. O caso é que os franceses são muito sabidos e sua política literária (para exportação) é baseada na conquista de divisas. Pasmem: Gide não é conhecido pelas novas gerações da França. Roger Nimier (morreu, o coitado) confessou em entrevista (1960) que nunca ouvira falar em tal sujeito. Ora, Malraux mandando esses rapazes pra correr mundo (Robbe-Grillet, Butor etc) não fez mais que obedecer ordens de M. Pompidou, que era o Roberto Campos de lá. A Câmara do Livro Francês (saibam) é mais forte que o Pentágono ou do que o homossexualismo (o mais forte ismo do mundo). O chamado novo romance não é um gênero: é uma teoria. Ou um teorema (Pasolini). O assunto é material polêmico. Um cenário cinematográfico não é um romance: é uma agenda de ações plásticas. Na sutil diferença entre a imagem ideada (escrita), a imagem visualizada (lida) e a imagem grafada, montada e projetada (transcrita segundo a interpretação criadora de um sujeito sem o menor compromisso com o autor) é que, a meu ver, reside o busílis. Vejam se entendem. Lido, em termos de leitura dinâmica, Madame Bovary é a redução de vulgar adultério provinciano a dez ou vinte linhas, que poderão dar um filme da duração que o atleta quiser. Por volta de 1929/30, Afrânio Peixoto publicou um romance (Sinhazinha), acompanhado do respectivo roteiro, por ele também assinado. Leiam os dois e me digam com quantos bambus se pode fazer um balaio. Ou com quantos paus se pode fazer uma canoa capaz de romper as correntes barrocas de uma época. Porque do mau romance se pode tirar um filme excelente, a coexistência dos “gêneros” é possível. A debandada do escritor para o cinema é a falta de fôlego, de editor, ou falta de dinheiro. Nunca um script será um best-seller no sentido que dão à expressão – porque best-seller não é o que vende muito, mas o que vende sempre (Adonias filho). Não citarei a Bíblia como exemplo. Escolham outros: à vontade. 

Continua na próxima semana