Você já viu Bacurau? Essa a pergunta recorrente que volta-e-meia volta e volta novamente de forma joco-séria a cada apresentação do Greg News, o impagável seated down show de Gregório Duvivier. Você ainda não viu? Nem o programa e nem o excelente filme de Kléber Mendonça Filho?
Kléber é um nome de destaque no cinema
novo de Pernambuco, agora já internacional, de quem aprendi a gostar, e muito, desde
o imperdível O Som ao Redor, visto há
vários anos no Recife, com direito ao meu amigo, o multimídia artista W.J.
Solha, em brilhante atuação. Bacurau
é o máximo e repito aqui a pergunta-obsessão de Duvivier: você já viu Bacurau?
E Essa
Gente, o último e ótimo livro de Chico Buarque? Você ainda não leu Essa Gente? Puxa, nem Bacurau nem Essa Gente? Pois eu, com a devida licença, o li de lê-lo em três
sentadas. Literalmente: minhas melhores leituras, as mais atentas, são no
banheiro, onde tenho uma pequena biblioteca: livros, jornais, dicionários,
canetas, moleskine. Qualquer dia levo o laptop e não mais saio.
Hábito antigo, ali habito desde os
idos de minha mocidade. O que me
deixou/deixa marcas até mesmo cirúrgicas e para sempre ao sul e por detrás do Equador: mazelas hemorroidárias
(evoé, Rosário Fusco!) hoje já devidamente incorporadas ao cotidiano. Ali habito, repito, cerca de hora e meia a
cada dia. Lembro de uma namorada das antigas que me dizia sempre: “A melhor
hora do dia é quando você sai do banheiro”. Há Controvérsias.
Um híbrido
Mas vamos a Essa Gente, que é um híbrido onde poções de realidade invadem o
texto ficcional. E de repente camadas de ficção costuram o tecido da realidade.
“Há pontos de contato entre Chico Buarque e o protagonista de Essa Gente. Além de escritor, Manuel
Duarte tem esse sobrenome de perfil vocálico idêntico e gosta de bater pernas
atrás de inspiração pelos arredores do Leblon”, diz Sérgio Rodrigues no texto
das orelhas.
Mas a coisa para por aí. Essa Gente é e não é um roman-à-clef, pois nele personagens e fatos são alternadamente reais e inventados. Muitas vezes a trama, centrada na homofonia Duarte/Buarque, resvala para um tom aqui e ali bem-humorado, aqui e ali policialesco – retratando não só conflitos internos como a brutal realidade do Rio de Janeiro (do país?) de hoje em dia.
Mas a coisa para por aí. Essa Gente é e não é um roman-à-clef, pois nele personagens e fatos são alternadamente reais e inventados. Muitas vezes a trama, centrada na homofonia Duarte/Buarque, resvala para um tom aqui e ali bem-humorado, aqui e ali policialesco – retratando não só conflitos internos como a brutal realidade do Rio de Janeiro (do país?) de hoje em dia.
Exatamente de hoje em dia, pois se o
livro abre com uma carta de Duarte para o seu editor, datada de 30 de novembro de
2018, ele fecha com uma reportagem “policialesca” de um jornal, datada do
futuro 29 de novembro de 2019. Quer dizer, de ontem, de anteontem, de agora
mesmo, de hoje-amanhã. E é nessa curta defasagem de um ano que vamos acompanhar
as desventuras do escritor, suas dúvidas, suas dívidas, seus impasses, mulher,
mulheres, filho. Como pano de fundo, um Rio onde Essa Gente passa pelo diabo, quer dizer, por onde nem sempre o
diabo quer passar.
Entrecortado por entretítulos
relativamente curtos, de pouco mais de uma página, às vezes nem isso, a partir
das datas que situam a narrativa, Essa
Gente é de leitura fácil e envolvente. Fácil em termos, pois Duarte/Buarque
tem a escrita fina e afinada e de repente saltam do texto coisas como “A fim de
emagrecer, começou um tratamento com enzimas, e me pergunta se notei que está
falando em rimas”. E, logo à frente: “Como na época do nosso namoro, ela se
diverte, saltita, ri que ri, faz trocadilhos, me desafia com palíndromos assim:
sonsa Maria Clara vê: de varal caíram asnos”.
Quando Duarte sai a perambular pelas
ladeiras do Leblon para tentar jogar fora o revólver – que sua ex-mulher Maria
Clara, suicida em potencial, guardava – a narrativa, impregnada da mais pura
realidade, capta o desvario, a raiva ensandecida, o ódio, a violência que
assola um Rio (um país?) assomado por armas e mendacidade:
“Na calçada estreita e escura, sigo
meu caminho com o revólver na mão, sem perigo de topar com pedestres a esta
hora da madrugada. Sinto-me invisível até que o segurança da casa do cônsul
japonês me saúda:
– É isso aí, mestre! Tem que acabar
com a raça desses bandidos!
O vozeirão ecoa, e logo surgem vultos
nas janelas, gente que ergue o polegar e aclama:
–Estamos juntos, guerreiro! Contamos
contigo, campeão!”
Mas logo depois Duarte “dormia, dormia
noite e dia, sonhava com o presidente da República, só tinha sonhos mórbidos”.
O sim e o desagrado
O Chico de fina estampa surge assim
como quem não quer nada, jogando erudição quando em carta para um dos editores
cita um dos poemas do “poeta mais caro” dele (do editor ou dele mesmo,
Duarte?), aquela “faca só lâmina” de João Cabral (in “A Willy Lewin, morto”):
“você ainda é o fantasma de quem busco o sim e o desagrado”. Na verdade, a estrofe que fecha o metapoema
cabralino é “foste ainda o fantasma/ que
prelê o que faço/ e de quem busco tanto/ o sim e o desagrado”. Mas, bom leitor,
Chico sacou dela o essencial, a palo seco.
Pausa para um pequeno orgulho: em
1988, João Cabral me autografou da seguinte forma o seu “Museu de Tudo e depois
(onde se encontra o poema para Willy Lewin):
“Para Ronaldo Werneck, poeta de Cataguases, terra de tantos poetas, o
abraço de João Cabral de Melo Neto”.
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De repente, Chico faz uma observação
cortante, como se Duarte falasse dos cacoetes do telejornalismo da GloboNews
& adjacências:
“– Por que na praia?”
O rábula adota a velha retórica
doutoral de fazer pergunta a si mesmo, tendo as respostas na ponta da língua:
–Porque nossos telefones estão
grampeados...”
Parece coisa déjá-vu, artifícios dos
nossos telejornais, ou aquele macete recorrente quando o âncora faz uma
pergunta com a resposta já embutida sobre qualquer assunto e o repórter abre a
sua resposta com aquele esperado “exatamente, fulano/a...”.
Dívidas ou
ofensas?
Há horas em que me vejo nas indagações
de Duarte, quando observa: “Perdoai as nossas dívidas assim como nós... Através
da precária caixa de som, a voz lamentosa do padre parece me corrigir: perdoai
as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. Mudou o
padre-nosso, mudou a liturgia, mas todas as igrejas que conheço têm desde
sempre o mesmo cheiro”.
Bingo! Minha irmã Rosa que é
catequista e, se tivesse nascido Ronaldo, seria com certeza o pároco de
Cataguases, me diz que agora é assim mesmo que reza o padre-nosso de meus
tempos de coroinha da igreja-matriz de Santa Rita. “Perdoai as nossas dívidas, perdoai
nossos devedores”? Isso não se faz, devem ter reclamado banqueiros e agiotas. E
deu no que Deus. E Deus dará: E não vou me indignar e chega.
Zelo de mãe
Espero não estar dando spoiler, essa
palavrinha incensada, que viralizou na mídia – e nada mais é que uma extensão das
famosas dicas criadas por minha amiga, a poeta Olga Savary, no Pasquim dos anos
60. Mas eis que lá pelas tantas, filosofa Chico Duarte:
“Com certeza minha literatura seria outra se,
em vez de gastar sola de sapato por caminhos já trilhados, eu permanecesse
imóvel feito um boneco, a observar o movimento das ondas, o mar encarneirado,
jubartes, golfinhos, a agitação na praia sob o sol outonal. Seria quase como
se, ao invés de impor minha escrita ao papel, eu visse o papel deslizar sob a
ponta de meus dedos”.
O papel deslizar sob a ponta de meus
dedos: o livro tem muito desses insights, que saltam súbito das entrelinhas,
assim como quem não quer nada. Ou coisas como “deslizando bolhas alfabéticas
que não tardo a decifrar”. E Chico Duarte se emociona e nos comove nessa cena
onde vê o filho adormecido antes mesmo do terceiro verso de “Manhã, tão bonita
manhã/ Na vida uma nova canção” que cantava para ele:
“Ainda escuto umas ligeiras batidas de
funk, e só então percebo os fones, que retiro de seus ouvidos com zelo de mãe.
Reprimo a vontade de passar os dedos entre seus cabelos, como mamãe passava
entre os meus, igualmente encaracolados: meu filho”. Esse “meu filho”, como
diria Drummond, bota a gente comovido pra diabo.
Até aqui, meu Chico preferido era o de
Budapeste. Agora, Essa Gente perambula comigo. E aí,
gente, vocês ainda não leram Essa Gente?