Com
esta mostra em vídeo o Centro Cultural Banco do Brasil recupera na memória do
público as imagens oníricas de um dos magos do cinema, talvez o maior deles.
Simultaneamente, a tela estará imantada pela figura ao mesmo tempo frágil e
magnética da atriz-ícone de sua obra. Fellini & Gelsomina & Cabiria
& Ginger. Fellini & Masina. Criador & criatura. Federico &
Giulietta.
Em
entrevista publicada em Paris (Le Monde,
09.02.90), Federico Fellini dizia evitar cuidadosamente de ser fazer perguntas,
pois era incapaz de encontrar respostas. No início de cada um de seus filmes,
ele prendia com percevejos, num grande painel de feltro verde, as fotos de
todos aqueles que em um dado momento poderiam ter um papel, mesmo que pequeno,
a representar no projeto. Pouco a pouco, essas fotos invadiam o espaço, se
acotovelavam, ficavam sobrepostas, conquistando seu direito de participação.
Sua vida então era condicionada por
essa grande tapeçaria de rostos, completando um entrelaçamento de figuras,
bilhetes, telegramas, croquis, fragmentos de cenários, notas diversas. No
último dia de trabalho, ele arrancava tudo do painel, machucando os dedos,
esfolando-se com os percevejos. Por um momento, Fellini olhava para o feltro
verde vazio. Depois, como sempre, pegava uma folha em branco e escrevia: “E
agora?”. Sem jamais esquecer a interrogação.
Seus filmes não eram construídos de
imagens, mas construção a partir de imagens, dessas imagens que povoavam seus
sonhos, cristalizadas no painel de feltro. A maior delas estava sem dúvida em
sua própria casa, representada pela figura patética e clownesca de sua mulher,
Giulietta Masina. Foi ela quem melhor encarou a persona clown de Fellini. A
imagem franzina e pungente de Giulietta. Seus olhos, os trejeitos, o andar
gauche, a aparência de quem foi colocada ao acaso no mundo. Giulietta estava
ali e nos seus filmes como se estivesse sempre sobrando, à margem, como num
sonho.
Um ano antes da
entrevista ao Le Monde, Fellini havia
declarado ao La Repubblica (Roma
02.02.89) o seu fascínio pela atmosfera cigana, nômade, apesar de ter renegado
sua verdadeira vocação — a de diretor de teatro de comédias de uma trupe
mambembe, farsesca. Ele dizia que a única ambição de seus filmes era a de fazer
rir: “Jamais me importei com atores do tipo Greta Garbo ou Gary Cooper ou
Marlene Dietrich, com sua exaltação da sensualidade. As deusas e os deuses
nunca me levaram ao cinema. Os comediantes, sim. O herói, a paixão amorosa, me
são estranhos”.
Fellini confessava que ria e se
comovia às lagrimas com os atores cômicos. Com aquela condição clownesca,
circense, do ator que leva um tombo e permanece dentro da tradição do cômico,
para o qual a realidade é totalmente inimiga e lhe causa constantes e concretas
dificuldades. E concluía: “Fazer pensar? Ah, não cabe a mim. Meu cinema não
lhes parece uma arte de fazer rir?”.
Federico Fellini morreu em Roma em
outubro do ano passado. Giulietta Masina não suportou sua ausência. Após 50
anos de casamento, também desapareceu do set e da vida em março último. “E
agora?”. Esta parece ser a eterna pergunta de um fazedor de sonhos, melhor
ainda que Buñuel. Nas mãos, o papel em branco e um atônito percevejo. Giulietta
representava na verdade a soma de todas as imagens que povoavam o painel verde
de Federico. Figuras que se desvanecem no fim de um fade.
Ronaldo Werneck
CCBB/Rio, 1994