12 de jan. de 2023

A Rainha se curva em reverencia ao Rei

No vídeo do jogo de 1963, a fantástica tabelinha 
Pelé-Coutinho-Pelé

O homem que salta de dentro do atleta.

“O mito é o nada que é tudo“, escreveu um dia o poeta Fernando Pessoa. E como nada somos, com bem o sabeis – e só não sabem aqueles que bradavam ou ainda bradam pelo “mito falso e fujão”–, fiquemos com nossos mitos do gramado e com o que de humano cada um deles traz dentro de si. “Morreu, aos 82 anos, Edson Arantes do Nascimento – disse Juca Kfouri em artigo na Folha de S.Paulo de 30.12.2022 –, um homem igual a qualquer outro, com qualidades e defeitos. (...) E consta que morreu nesta quinta-feira (29), também aos 82 anos, Pelé, o melhor jogador de futebol de todos os tempos”. E Kfouri concluía seu longo e bem sacado texto: “É de se lamentar que, neste ponto, seja obrigatório informar a quem veio até aqui, que não, não é verdade que Pelé tenha morrido. Quem morreu foi o Edson”.

E com Pelé interpretando Pelé, como só ele sabia, adversário não havia” – escrevia eu, comentando a Copa de 1998 na França, mas me remetendo à Copa de 1970, aquela do México: Brasil Tricampeão. Mitos como Pelé, sobre quem eu pensava não haver mais nada a ser dito. Mas o Chico Buarque, que estava em Paris, cobrindo a Copa pro Globo, conseguiu uma novidade: “A impulsão com que Pelé celebrava o gol chegava a superar aquela, já extraordinária, com que subira para cabecear. Era como se, na celebração do gol, o homem saltasse de dentro do atleta”. O homem que salta de dentro do atleta: que imagem mais perfeita do futebol alegria, do futebol-arte, do futebol-poesia.  

 Um futebol de poesia”: era como anunciava o poeta e cineasta italiano Pier Paolo Pasolini ao escrever sobre a vitória do Brasil contra a Itália na final da Copa do México, em 1970. Publicado no jornal Il Giorno, em 03 de janeiro de 1971, o artigo de Pasolini girava em torno da dicotomia “futebol de prosa e futebol de poesia” – e tinha lances como: “Em futebol há momentos que são exclusivamente poéticos: são os momentos do gol. Cada gol é sempre uma invenção, é sempre uma perturbação do código: todo gol é fulguração, espanto e irreversibilidade. Precisamente como a palavra poética”.

E Pasolini continuava: “O melhor goleador de um campeonato é sempre o melhor poeta do ano. (...) Quem são os melhores dribladores do mundo e os melhores goleadores? Os brasileiros. Portanto, seu futebol é um futebol de poesia: de fato, todo ele está baseado no drible e no gol. (...) Se o drible e o gol são os momentos individualistas-poéticos do futebol, é por isso que o futebol brasileiro é um futebol de poesia. Sem fazer diferença de valor, mas em sentido puramente técnico, no México a prosa estetizante italiana foi vencida pela poesia brasileira”. E, no futebol, complemento eu agora o artigo de Pasolini, a poesia brasileira esteve sempre representada por Pelé. 

O Rei e Ela

Pelé, Brigitte Bardot mais eu. Era assim que durante muito tempo falava para amigos & quejandos quando perguntado sobre o dia do meu aniversário. Nós três de outubro, 23. Mas não sei bem como nem por que colocava Brigitte nesse trio, já que ela na verdade nasceu em 28 de setembro de 1934. Devo ter lido errado em algum lugar e Brigitte, estrela guia, ficou nos acompanhando em vários aniversários ao longo dos anos. Pelé, não. Pelé, sim: 23 de outubro de 1940, exatos três anos antes de mim. Um jornalista desses mais exaltados chegou a sugerir que a partir de agora o 23 de outubro seja sacramentado como o Dia de São Pelé. Não vou a tanto, mas bem que o Rei santista podia também figurar entre tantos outros reis e santos. Assim como escreveu Nelson Rodrigues em 1958, ao saudar o jovem Pelé: “Verdadeiro garoto, meu personagem, anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um Rei, Não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope”.

 

 A abertura deste tópico fica assim, como abertura mesmo, para falarmos dele, Pelé, antes de darmos um rápido corte e chegarmos numa tarde de 1991 à plateia do Teatro I do CCBB/Rio. Ali estou eu a conversar com a atriz Fernanda Montenegro, enquanto sua filha Fernanda Torres é ensaiada no palco por Geraldo Thomas, diretor do espetáculo The Flash and Crash Days, estrelado pelas duas, a estrear dias depois. Eu acabara de entrevistar a Fernanda para um vídeo que faria sobre a peça, a exemplo de outros tantos que fiz naqueles tempos do CCBB. Lembrei à Fernanda que já havíamos nos encontrado há quase vinte anos, lá pelos inícios dos anos 1970, quando a entrevistei no Teatro da Maison de France na época em que protagonizava a peça de Louis Verneuil, O amante de Madame Vidal, traduzida por Millôr Fernandes, com direção de seu marido Fernando Torres. Ela se recordou da nossa entrevista e da peça, de grande sucesso e longa temporada. 

Mas a Fernanda que conheci naquele dia na Maison de France era uma atriz séria, compenetrada, voltada para o fazer de seu ofício. Agora, não. Essa Fernanda que está ao meu lado é uma pessoa descontraída, que deixa antever o seu bom-humor, sinal de sua sagacidade, de sua inteligência. Finda a entrevista, câmera e microfone desligados, é tempo de se soltar, de falar como admirava o trabalho de Gerald, como confiava nele, como se submetia ao seu comando, quase sem pensar.

Dias depois, noite de estreia, eu conversava nos bastidores com Paulo José e  Ziraldo (sua filha, Daniela Thomas, era a cenógrafa do espetáculo). Disse Ziraldo: “não entendi nada, mas essa movimentação dos atores, essa iluminação que só o Gerald sabe fazer, isso sim, você sente que é teatro, que tem a força do teatro”.   E, voltando à Fernanda: além do Gerald ela começa agora a elencar outras admirações as mais diversas, do marido Fernando Torres a Sérgio Britto, de Chico Buarque a Caetano Veloso. De repente, Fernanda para e diz muito séria, para minha total surpresa: “Olha, mas quem eu admiro mesmo é o Pelé. O Rei Pelé”.  

Foi quando, tomado por súbito entusiasmo – e para espanto total da Fernanda –, levantei-me entre as poltronas e, em pé no corredor do teatro, tentei “narrar ao vivo” – em meio a chutes e cabeçadas no ar – a cena do inacreditável lance Pelé-Coutinho que vi no Maracanã numa noite de 1963, durante a decisão do Campeonato Brasileiro de 1962, com o time do Santos dando de cinco a zero no Botafogo.

Da rua da Grama à grama do Maracanã

Foi assim. Trabalhávamos num Banco, eu e um amigo botafoguense, e morávamos numa pensão da rua da Grama, em Leopoldina. Era a tarde de 2 de abril de 1963 e ele, botafoguense doente,  perguntou se eu topava irmos ao Rio assistir à final de Santos x Botafogo naquela noite. Sequer titubeei. Nunca vira Pelé jogar, o que só aconteceria com mais assiduidade quando me mudei para o Rio em 1965, assistindo a lances memoráveis no Maracanã, inclusive o gol-1000, aquele de pênalti, quando eu estava na arquibancada atrás do gol do arqueiro Andrada do Vasco.   Mas era, sempre fui, mais Pelé que santista ou qualquer outro time, com o perdão do meu Flamengo. E foi então que partimos num ônibus Rio-Bahia afora. Da rua da Grama para a grama do Maracanã. 

Pelé faz seu segundo gol naquele arrasador 5x0 contra o Botafogo

Nunca uma viagem valeu tanto a pena. Maracanã lotado, inclusive com a presença mais que anunciada de dois astronautas russos. Aquele acender incessante de fósforos e isqueiros, a arquibancada piscando que nem milhões de vagalumes e a grama, a verde, sacrossanta, iluminada grama onde pisavam nossos ídolos. No Botafogo, havia Garrincha, Nilton Santos, Manga, Amarildo, Zagallo e até Jairzinho. No time do Santos, aquele ataque endiabrado: Dorval (que faria um gol), Mengálvio, Coutinho (1 gol), Pelé (dois gols) e Pepe (1 gol).  Final: Santos 5 x 0 Botafogo, naquele que os cronistas hiperbólicos classificaram como “o maior jogo do mundo”.

Mas, e o lance, o lance Pelé-Coutinho que eu “narrei” pra Fernanda naquela tarde do CCBB? Não dá pra contar, só pra encenar, se é que me explico bem. Vamos lá, se é que consigo recuperar em palavras o que vi e descrevi pra Fernanda. Deu-se que Pelé estava na lateral direita, próximo da linha do corner, acossado pelo grande Nilton Santos. Foi quando ele saiu correndo em direção ao zagueiro e à grande área, mas deixou a bola pra trás. Nilton balançou o corpo sem entender, sem saber se seguia Pelé ou ia em direção à bola, que ficara lá na lateral. Foi quando Coutinho veio de trás em disparada, passou por Nilton, chegou até a bola que ficara na lateral e num átimo – sim, num átimo! – cruzou para Pelé que, já na pequena área, cabeceou para dentro das redes de Manga, um Manga também atônito com tudo aquilo. Um lance, um relance de dois gênios entrosadíssimos. O Maracanã veio abaixo e gritava comigo: Pelé! – inclusive meu botafoguense amigo.  Pelé! Pelé! Pois é.

Assim foi que parei minha trôpega, mas entusiasmada encenação entre os sorrisos e aplausos de Fernanda Montenegro.  Disse pra ela que nunca mais me esqueci daquela primeira vez que vi Pelé jogar.  Faço minhas as palavras do jornalista João Máximo: “Pelé alcançou o que se supunha impossível: a perfeição. Seu futebol era uma combinação de técnica e beleza, arte e magia, soma de virtudes que fizeram orgulhar-se dele um país com poucos motivos de orgulho”. Rainha dos palcos, nada mais justo que Fernanda Montenegro se curvasse em reverência à arte e magia do Rei do Futebol.