A lembrança do Planalto
Central leva-me a dezembro de 2017, quando de uma palestra sobre poema visual
que fiz na Biblioteca Nacional de Brasília – com a honrosa presença de Lina. O diretor
da Biblioteca, Carlos
Alberto Ribeiro, a acompanhou até à porta quando ela estava de saída. E depois
se desculpou comigo por ter deixado a sala por alguns minutos. Carlos Alberto
disse então uma coisa que me deixou orgulhoso de minha querida amiga: “Lina
Tâmega é uma entidade aqui em Brasília, foi uma honra tê-la conosco nesta
noite”. Não me lembro ao certo se o que ele disse foi mesmo “entidade”, o que
parece coisa do astral, mas se não foi deve ter sido alguma palavra afim, que
Lina é mesmo “alto astral”.
Ela sempre me
maravilhou com sua escrita delicada, elegante, escrita de fino trato – quer
surgida de seus belos poemas, quer adornando um mero email do cotidiano:
“Um abraço
quase de sombra que o spot constrói entre meus dedos. Lina”. “Desejo que tudo em você fique subordinado à
verticalidade e ao horizonte do mundo físico e às operações da inteligência
emocional. E permaneça com a extraordinária lucidez de torcer as nuvens do
desencanto para o clarão do imaginário”. “Escrevo-lhe
para deixar o cisco da letra, já que não houve o som do espírito. Depois, mando
palavras. Cambalhotas de abraços, Lina”.
Fala, escreve, respira poesia
Cataguasense moradora
em Brasília desde os primórdios de sua construção, a professora universitária e
ensaísta Lina Tâmega Peixoto é poeta de longo curso, e das grandes. Cidadã do
mundo, na verdade nunca se desprendeu totalmente do mundo-Cataguases, como
afirma: “Ser mineira de Cataguases é o que não me faz ser estrangeira em
Brasília, é o que me faz ser habitante de qualquer rua do mundo e nunca ser
traída no meu jeito de viver”.
Sua trajetória
literária inicia-se em 1949 ainda em Cataguases, com a edição da Revista
Meia-Pataca, ao lado do poeta Francisco Marcelo Cabral, seu (e meu também)
grande amigo. Em 1953, surge o primeiro livro “Algum dia”. Somente 30 anos
depois, o segundo, “Entretempo”, 1983.
Mais duas décadas sem publicar, quando em 2005 lança “Dialeto do corpo”.
E, na sequência, num só ritmo, “Água polida”, 2007; “50 poemas escolhidos pelo
autor”, 2008; “Prefácio de vida”, 2008; “Os bichos da vó”, 2008; “Entre desertos”,
2014.
“Alinhavos do
tempo”, de 2018, seu mais recente livro, aportou aqui em casa – na Cataguases
margeada pelo Rio Pomba, tão caro a mim quanto à minha amiga poeta – em
dezembro último. E, como sempre, trazendo a sutileza das metáforas tão características
até mesmo em suas dedicatórias: “Para o querido amigo Ronaldo, os ruídos do
coração que alinhavam o abraço de admiração e amizade que leva estas palavras
até você, Lina”. A poesia assoma em cada gesto, em cada um de seus escritos –
não só na força, nos muitos punti
luminosi de seus poemas, motor por excelência da poesia, mas num ensaio,
numa carta, num bilhete, numa postagem qualquer. “Qualquer”, palavra errada:
tudo nela indica extremo cuidado, emana resplendor, halos impregnados de uma
poética de grande intensidade. Lina fala, escreve, respira poesia.
O
boi (e a noite) no quadrado
Tão logo pude,
registrei por email o recebimento de “Alinhavos do tempo”: seu livro chegou às
minhas mãos já há vários dias, mas ainda não agradeci porque queria ler antes,
e ler pausadamente, como sempre degustando sua poesia, que me é muito cara.
Assim, ele andou comigo já algumas vezes durante breves e recentes viagens. E
eu viajei em suas páginas com grande prazer.
Como, por
exemplo, na narrativa para a construção do poema “O boi no quadrado”, num
enquadramento em contra plongée que remete ao cinema de Humberto Mauro. O
cineasta gostava de enquadrar bois no alto dos morros de Minas, na contraluz do
sol. Em sua infância, certamente você, Lina, nunca ouvira falar de Mauro, menos
ainda dessa sua preferência por enquadrar bois no alto dos morros. Mas o
alumbramento parece o mesmo, quase uma epifania: “Uma menina canta alguma
coisa. Súbito, entra no canto palavras sobre um boi no quadrado. A imagem deste
boi, sozinho no alto do morro, dentro de um quadrado de arame farpado, visto há
muitos anos, solta-se de sua prisão e vem ser o lamento da tristeza retido nos
ossos da solidão. Esquecida a música por instantes, fica o poema. A percepção
do mundo que me havia sido doada, foi um deslumbramento. (...) A partir daquele
momento, a poesia segurou minha mão: ´... não mexas no boi´ ´não batas no boi/
que o boi quer dormir/ sonhando que a noite/ subindo das noites/ sobe-lhe nas
costas./ E lá se vão eles/ o boi e a noite/ atrás da saudade”.
Que coisa mais perfeita
– disse ainda em meu email (sim, “papai trabalha por email”, como diz minha
filha Ulla) – isso que você escreve no “pré-prefácio”! Isso: “preciso
envelhecer o presente para recriar as coisas que se escondem dentro de mim e
que resistem às delicadas sutilezas da imaginação, no fazer-se obra literária”.
E, na sequência, a citação do poema: “Piso descalça histórias envelhecidas/ no
ranger das tábuas”.
Acho que aí está,
em perfeita conjunção, uma síntese de todo o seu livro, de toda essa delicada,
sutil viagem “para dentro de seu quintal”, de sua casa às margens do Pomba, ali
onde o presente é envelhecido com a imagem da infância-joaninha da menina
aturdida com o desconcerto do mundo. (...) “Perguntei à minha mãe como fora possível
eu ter mamado na joaninha. Ela riu muito e, me afagando a cabeça, revelou que
Dona Joaninha, a mulher que morava em frente à nossa casa, havia me amamentado
por uma semana. O estranhamento de antes se transformou no sopro da via
possível de ser inventada e carreguei o mundo para dentro de um casulo... e me
transformei em herança e poesia”.
Criação do mundo e seu naufrágio
Aliás, ao falar
na casa de sua infância na rua do Pomba, no quintal que se debruça sobre o rio,
e na Ponte Velha, surge logo aquela imagem belíssima: “uma carcaça de estrela,
tombada do azul que o céu sustenta”. E falar no “seu” quintal me leva
(você nos leva) ao impacto da imagem (como se nós a víssemos enquanto lemos)
daquelas formigas, cogumelos e etc que se abrigam “para que a água do regador/
venha cabisbaixa em sua fúria/ e não alveje a criação do mundo e seu
naufrágio”. A criação do mundo e seu naufrágio: que força têm essas
palavras-imagem no universo daquela menina que apreende o mundo a partir do
quintal que é “seu mundo”. Seus poemas respiram poesia a cada página, Lina. E nos encantam, como mágica! Sim, que encantamento tamanho salta dessas (suas) palavras que adejam sobre “a
clara, linda, alta e fina fala” (que belo e altissonante decassílabo!).
“Aquela escrita
de coisa, coração e susto/ é o encanto faminto que entra entre falas adentro”.
Drummond disse um dia ao ler um poema de “O Centauro” do então jovem Francisco
Marcelo Cabral, o nosso Cabruxa: “aqui tem coisa”. Não é preciso que eu repita
o dizer de Drummond, pois sei que sempre vou encontrar muitas e belas “coisas” (como
esses versos) em seus poemas. Mas quando me deparo com uma pedra-de-toque como
“Volteio o corpo/e a saia abre-se em varanda” sinto que a força dessa imagem só
pode me levar a dizer que aqui tem não só “coisa”, mas um constructo de muitas
e muitas belas coisas.
Ótima e mais que
oportuna citação a que você faz de Walter Benjamin, aquilo da importância de se
rememorar a vida (para o poeta) ser mais importante que a própria vida vivida.
O filósofo Benjamin, pelo menos aqui, me remete de certo modo (paradoxal, ou
não?) ao lema que Mário Faustino colocava como epígrafe de sua página
“Poesia-Experiência” no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil: “Poesia e
vida minha seguirão sempre paralelas”.
Ah, sim: não
posso me esquecer de mencionar o belo estribilho de Cantiga IV: “Vou a cuidar
da razão/ que do amor cuida o coração/ Ai, coitada de mim!”. Pois é, minha
amiga, conduzida pelo poema, a literatura assoma de cada palavra que você
escreve. Repito: você respira poesia – e da mais alta qualidade. Parabéns pelo
novo livro e receba daqui das margens do Pomba (infelizmente não do seu
quintal), o beijabraço mais afetuoso do admirador de sempre, Ronaldo.
Emoções
da inteligência
Sobre a poesia de
Lina Tâmega Peixoto, escreve o poeta Joaquim Branco: “Ler um livro de Lina
requer tempo. Não o tempo normal que se gasta para leituras cotidianas, mas um
tempo para se concentrar mais, pois ele exige do leitor mais do que a fruição
de palavras que vão puxando palavras. Seu discurso requer um silêncio dentre
desse tempo para se buscar. (...) Fui dirigindo meu voo por penetráveis porém
surpreendentes vias – que é assim o caminho dos bons livros – deparando ora com
o recurso da metalinguagem, ora com a difícil música de alguns versos ou com a
ligeireza do pensamento”.
O mesmo Joaquim –
meu grande amigo e companheiro de aventuras literárias que já vão para quase
meio século – citado por Lina num dos e-mails que me enviou: “Caríssimo amigo:
acabei de ver o que se maravilha da vida. E estive aí no Centro Cultural
Humberto Mauro para os 90 anos da Verde e escutei você narrando Humberto
Mauro e falando no Mac. Voltarei depois para ouvir mais coisas de seu gesto de
coração de poeta e mais, pedaços de sonhos que modificaram seu acordar em
Cataguases. A cidade precisa de pessoas como você e o Joaquim, capazes de por à
superfície a memória definindo o Rio Pomba e cheia de estrelas refazendo a
luminosidade do pensamento. Não pude deixar de registrar aqui as emoções da
inteligência que tive. Esta a mais perfeita e profunda que vive no espírito.
Peço que receba meu abraço de afeto por suas palavras e que o coloque na jarra
como uma flor. Lina”.
Cagiano
com a palavra
Presente ao lançamento de
“Alinhavos do tempo” em Lisboa, o escritor cataguasense Ronaldo Cagiano, que
vive atualmente na capital portuguesa, enviou, a meu pedido, o seguinte
depoimento:
“Caro Ronaldo, foi uma ótima
noite o lançamento da Lina na Casa do Brasil aqui em Lisboa: bom público,
apresentação da escritora Vania Chaves, um belo ensaio lido por uma professora
da Universidade de Lisboa e depois as palavras da Lina. No evento, houve a fala
dessa professora contextualizando toda a obra da Lina, seguida de leituras de
poemas por alguns dos presentes – inclusive eu li dois e fiz um pequeno
comentário, depois houve um pequeno coquetel. Em minha opinião foi um
evento marcante, principalmente porque reuniu amigos, colegas, leitores e
conterrâneos de Lina e todos tiveram oportunidade de percorrer esse
panorama sobre sua vida e obra, buscando a gênese de seu processo criativo,
desde os primórdios da estudante que criou com Francisco Marcelo Cabral a
revista Meia-Pataca; do estímulo do tio-poeta Francisco Inácio Peixoto; do
sopro literário de Hernâni Cidade, um primo materno e um dos reconhecidos
críticos literários de Portugal que, do outro lado do Atlântico, trouxe-lhe
informações, conselhos e dicas técnicas sobre o fazer poético; das influências
e amizade de Cecília Meireles, da presença de Cataguases e Brasília na sua
trajetória existencial e criativa, dos tantos tempos, entretempos &
alinhavos que constituem sua tessitura e culminam no polimento estético de sua
arte.
“Enfim, entre desertos que
constituem o ser e estar no mundo de qualquer indivíduo, a poesia de Lina
chegou a Lisboa como um prefácio de vida, abriu-se aos leitores, como as
asas da cidade que escolheu para seu escreviver. A poesia de Lina, que tem uma
profunda inflexão imagética e sensorial, carregada de símbolos e metáforas,
cristalina e diáfana na forma e na linguagem, sem dúvida a coloca entre as melhores
vozes da poesia que se faz em todo o mundo lusófono, uma palavra carregada de
simbologias e afetos, que é fruto de um esmerado senso de observação do mundo,
das coisas; de captura da memória e da geografia ancestral; que, entre o rigor
e a sofisticada elaboração, faz uma ponte dialética entre o lírico e o
metafísico, entre o passado e o presente, com um sopro de inegável humanismo.
É isso, meu caro. Lina merece uma grande acolhida em Cataguases e uma recepção
para o novo livro. Abraço do Ronaldo Cagiano”.