14 de mai. de 2021

Tudo muda, nada muda na cabeça e no coração

Em homenagem ao poeta norte-americano

Lawrence Ferlingetti, morto em fevereiro, aos 101 anos,

reproduzo crônica de 2006, escrita em Roma. 



 Não, não é bala não. Nem perdida, nem bem/mal endereçada. É apenas o poeta-beat Ferlinghetti e seus parques de diversão, A Coney Island of the Mind (City Lights, EUA, 1958) e A Far Rockaway of the Heart (City Lights, EUA, 1997). Ainda em Roma, e na livraria Bibli/Trastevere, agora viajamos (literalmente) com Un luna park del cuore (Mondadori, 2000), a versão bilíngue, inglês/italiano, do “parque do coração” desse surpreendente Ferlinghetti, que chega velhonovíssimo aos oitenta e oito anos.  Lawrence é de 1919 (Yonkers, Estado de Nova York), filho de uma francesa, Clemence Albertine Mendes-Monsanto – e veio ao mundo pouco depois da morte de seu pai, o italiano e anarquista Carlo Ferlinghetti.

Com menos de dois meses, o menino é levado para a França, onde mora com um tia até os seis anos. De volta aos EUA, estuda na University of North Carolina, em Chapel Hill, e serve na marinha norte-americana durante a Segunda Guerra (“mas já era pacifista, a ponto de não disparar um tiro”). O poeta termina seu mestrado pela Columbia University, em 1947. Completado em 1950, o doutorado é feito na Université de Paris (Sorbonne). De 1951 a 1953, quando se fixa em San Francisco, Ferlinghetti passa a pintar e torna-se crítico de arte. Em 1953, abre com Peter D. Martin a Livraria City Lights, que em 1955 passa também a publicar livros, com o nome de City Lights Books. Durante mais de meio século a City Lights serve como ponto de encontro de intelectuais, escritores e artistas.

Papo de Ferlinghetti com o poeta beat Ginsberg, de quem  editou o famoso Uivo. 

 A Editora começa com a publicação de uma série de poetas sob o formato de livros de bolso, com a qual Ferlinghetti criaria um fermento de dissidência de nível internacional. Em 1957, o lançamento de Howl, do poeta Allen Gisberg, causa um quiproquó dos diabos. Apreendido sob acusação de obra obscena, o livro acaba liberado e vende num só uivo 360 mil exemplares, além de atrair a atenção para San Francisco e para a explosão do movimento dos escritores da geração beat.  O chileno Neruda, o russo Ievtuchenko, o italiano Pasolini, o inglês Malcolm Lowry: são muitos e célebres os poetas editados pela City Lights.

Em 1984, a editora publica também os poemas do próprio Ferlinghetti, reunidos em A Coney Island of the Mind, carro-chefe da City Lights e até hoje o livro de poemas mais popular na América, editado em nove línguas, com mais de dois milhões de exemplares vendidos. Há um tradução brasileira de ótima fatura, feita por Eduardo Bueno e pelo poeta Leonardo Froés,  ”Um Parque de Diversões na Cabeça” (L&PM, 1984). A Far Rockaway of the Heart, de 1997, é seu mais recente livro de poemas, este que tenho agora em minhas mãos na versão italiana, Un luna park del cuore (Mondadori, 2000).  Só para nos situarmos: Coney Island é um parque de diversões na cercanias de Nova York.  Far Rockway, no Estado de Nova York, é uma localidade onde existe um também famoso parque de diversões.

Em 1980, o hoje historiador brasileiro Eduardo Bueno esteve com o poeta em San Francisco: “De jeans, camisa de flanela xadrez de lenhador canadense, botas rústicas, ali estava ele, Ferlinghetti – sorridente ao lado de três garotas lindas, olhar safado beatífico, rosto queimado pelo sol, barba grisalha. Sabedoria e vigor aos 60 anos. Apesar da origem italiana, mais parecia um irlandês ativo e empreendedor – daqueles que bebe uísque no gargalo e aparece trabalhando na construção das estradas de ferro em filmes classe B sobre o Oeste selvagem”.  Mas, na verdade, não era bem assim: estava ali também, à frente de Bueno, um poeta de extração super sofisticada, na linhagem de Appolinaire, ee. cummings, Ezra Pound, T.S. Eliot e William Carlos Williams.

Ferlinghetti tem o poder de transformar em poesia os objetos mais banais, as coisas corriqueiras do cotidiano. São poemas coloquiais, os seus, carregados por profundo poder de empatia e comunicação. Poesia altamente cantábile – e não é à toa que o octagenário poeta circula ainda hoje pelo mundo lendo seus poemas para um público cada vez mais numeroso. “O bardo da geração beat, o cronista mais extremo e corrosivo de nossos tempos, o sarcástico ´cabaretista trágico´, diz o texto da contracapa desta edição italiana. Que complementa: “Se A Coney Island of the Mind contribuiu em 1958 para abrir os olhos de toda uma geração e para construir uma aura política, A Far Rockway of the Heart surge como um vibrante e novo apelo ético à tomada de consciência da geração que transita passivamente pelo novo século”.

Não têm títulos os poemas de A Far Rockway of the Heart, apenas numerados em sequência. Não querendo absolutamente concorrer com meu poetamigo e excelente tradutor Leornardo Fróes, passo às pressas para a língua pátria um exemplo da poética de fina estampa de Lawrence Ferlinghetti, exatamente o primeiro poema do livro:

 

Tudo muda e nada muda

Séculos findam

                             e tudo continua

                                                     como se nada findasse

Como nuvens estáticas a meio-voo

                             Como dirigíveis presos contra o vento

E a urbana febre das feras do cotidiano

                             ainda domina as ruas

Mas ouço cantarem

                             ainda agora as vozes dos poetas

      mescladas ao grito das prostitutas

                                                     na velha Mannahatta (*)

                             ou na Paris de Beaudelaire

                  chamados de pássaros ecoam

                             nas ruelas da história

                                                     renomeados

E agora são os Novecentos

                  e a Bolsa quebrou de novo

E meu pai vagabundeia aqui perto com toda a sua coragem

                  os olhos na calçada

                             uma única lira italiana

                                         e um penny com a figura da cabeça de um indiano

                                                                                                                no bolso

                  Traficantes de bebidas e carros fúnebres passam

                                                                                        em câmera lenta

Enquanto ternos novos correm para o trabalho

                                                                 em arranha-céus que oscilam.

(*) Mannahatta: antigo nome dado pelos índios americanos ao lugar onde hoje se encontra Nova York.

 

 

Ronaldo Werneck

Roma, 2006/Cataguases, 11.03.2007

In Há Controvérsias 2. São Paulo, 2011