Em homenagem ao poeta norte-americano
Lawrence Ferlingetti, morto em fevereiro, aos 101 anos,
reproduzo crônica de 2006, escrita em Roma.
Com menos de dois meses, o menino é levado para a França, onde mora com um tia até os seis anos. De volta aos EUA, estuda na University of North Carolina, em Chapel Hill, e serve na marinha norte-americana durante a Segunda Guerra (“mas já era pacifista, a ponto de não disparar um tiro”). O poeta termina seu mestrado pela Columbia University, em 1947. Completado em 1950, o doutorado é feito na Université de Paris (Sorbonne). De 1951 a 1953, quando se fixa em San Francisco, Ferlinghetti passa a pintar e torna-se crítico de arte. Em 1953, abre com Peter D. Martin a Livraria City Lights, que em 1955 passa também a publicar livros, com o nome de City Lights Books. Durante mais de meio século a City Lights serve como ponto de encontro de intelectuais, escritores e artistas.
Papo de Ferlinghetti com o poeta beat Ginsberg, de quem editou o famoso Uivo. |
A Editora começa com a publicação de uma série de poetas sob o formato de livros de bolso, com a qual Ferlinghetti criaria um fermento de dissidência de nível internacional. Em 1957, o lançamento de Howl, do poeta Allen Gisberg, causa um quiproquó dos diabos. Apreendido sob acusação de obra obscena, o livro acaba liberado e vende num só uivo 360 mil exemplares, além de atrair a atenção para San Francisco e para a explosão do movimento dos escritores da geração beat. O chileno Neruda, o russo Ievtuchenko, o italiano Pasolini, o inglês Malcolm Lowry: são muitos e célebres os poetas editados pela City Lights.
Em 1984, a editora publica também os poemas do próprio Ferlinghetti, reunidos em A Coney Island of the Mind, carro-chefe da City Lights e até hoje o livro de poemas mais popular na América, editado em nove línguas, com mais de dois milhões de exemplares vendidos. Há um tradução brasileira de ótima fatura, feita por Eduardo Bueno e pelo poeta Leonardo Froés, ”Um Parque de Diversões na Cabeça” (L&PM, 1984). A Far Rockaway of the Heart, de 1997, é seu mais recente livro de poemas, este que tenho agora em minhas mãos na versão italiana, Un luna park del cuore (Mondadori, 2000). Só para nos situarmos: Coney Island é um parque de diversões na cercanias de Nova York. Far Rockway, no Estado de Nova York, é uma localidade onde existe um também famoso parque de diversões.
Em 1980, o hoje historiador brasileiro Eduardo Bueno esteve com o poeta em San Francisco: “De jeans, camisa de flanela xadrez de lenhador canadense, botas rústicas, ali estava ele, Ferlinghetti – sorridente ao lado de três garotas lindas, olhar safado beatífico, rosto queimado pelo sol, barba grisalha. Sabedoria e vigor aos 60 anos. Apesar da origem italiana, mais parecia um irlandês ativo e empreendedor – daqueles que bebe uísque no gargalo e aparece trabalhando na construção das estradas de ferro em filmes classe B sobre o Oeste selvagem”. Mas, na verdade, não era bem assim: estava ali também, à frente de Bueno, um poeta de extração super sofisticada, na linhagem de Appolinaire, ee. cummings, Ezra Pound, T.S. Eliot e William Carlos Williams.
Ferlinghetti tem o poder de transformar em poesia os objetos mais banais, as coisas corriqueiras do cotidiano. São poemas coloquiais, os seus, carregados por profundo poder de empatia e comunicação. Poesia altamente cantábile – e não é à toa que o octagenário poeta circula ainda hoje pelo mundo lendo seus poemas para um público cada vez mais numeroso. “O bardo da geração beat, o cronista mais extremo e corrosivo de nossos tempos, o sarcástico ´cabaretista trágico´, diz o texto da contracapa desta edição italiana. Que complementa: “Se A Coney Island of the Mind contribuiu em 1958 para abrir os olhos de toda uma geração e para construir uma aura política, A Far Rockway of the Heart surge como um vibrante e novo apelo ético à tomada de consciência da geração que transita passivamente pelo novo século”.
Não têm títulos os poemas de A Far Rockway of the Heart, apenas numerados em sequência. Não querendo absolutamente concorrer com meu poetamigo e excelente tradutor Leornardo Fróes, passo às pressas para a língua pátria um exemplo da poética de fina estampa de Lawrence Ferlinghetti, exatamente o primeiro poema do livro:
Tudo muda e nada muda
Séculos findam
e
tudo continua
como
se nada findasse
Como nuvens estáticas a meio-voo
Como
dirigíveis presos contra o vento
E a urbana febre das feras do cotidiano
ainda
domina as ruas
Mas ouço cantarem
ainda
agora as vozes dos poetas
mescladas
ao grito das prostitutas
na
velha Mannahatta (*)
ou
na Paris de Beaudelaire
chamados
de pássaros ecoam
nas
ruelas da história
renomeados
E agora são os Novecentos
e
a Bolsa quebrou de novo
E meu pai vagabundeia aqui perto com toda a sua
coragem
os
olhos na calçada
uma
única lira italiana
e
um penny com a figura da cabeça de um indiano
no
bolso
Traficantes
de bebidas e carros fúnebres passam
em
câmera lenta
Enquanto ternos novos correm para o trabalho
em
arranha-céus que oscilam.
(*) Mannahatta: antigo nome dado pelos índios americanos
ao lugar onde hoje se encontra Nova York.
Ronaldo Werneck
In Há Controvérsias 2. São Paulo, 2011
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