ave
vae
ave
ave voa
voar
é preciso
vae
é preciso
ir
vae vae
mirar
ir
ave wlad
vae
ave ave
ave wlademir
A importância de 1956 para a história da literatura
brasileira pode ser registrada mediante três episódios capitais: o lançamento
da poesia concreta, a publicação de Grande sertão: Veredas e o surgimento de A
ave, de Wlademir Dias-Pino, livro que se liga(va) às virtualidades gráficas e
verbo-visuais do concretismo, mas que apontava para um desdobrar novo nas
aventuras composicionais da própria poesia concreta.
Moacy Cirne in Revista Vozes, 1972
Wlademir Infinito
Aos 90 anos, Wlademir Dias-Pino é finalmente reconhecido
como o enorme poeta e artista plástico que é, o que vem acontecendo desde sua
grande exposição “O Poema Infinito”, que no ano passado ocupou todo um andar do
MAR, o Museu de Arte do Rio, e pelo Prêmio Faz Diferença 2016, recebido do
jornal O Globo na categoria artes plásticas.
A exposição no MAR tomou como eixo central quatro
poemas: “O dia da cidade”, “Ave”, “Solida” e “Numéricos”. Visando ampliar a
experiência sensorial dos trabalhos, esses livros-poemas foram transformados em
grandes instalações magnéticas, nas quais os elementos eram construídos e
rearranjados pelos visitantes.
Outro destaque foi a Enciclopédia Visual
Brasileira, na qual o artista vem trabalhando nas últimas duas décadas.
Composto por 1001 volumes, o trabalho pretende apresentar, por meio de pranchas
resultantes da montagem alegórica de referências culturais diversas, a história
da construção da imagem no mundo.
Falar em mundo, Wlademir é um
mundo habitado pelo pensador visual que traz dentro de si. Um artista
multifário: vitrinista, tipógrafo, designer gráfico, poeta-professor,
poeta-inventor, na classificação de Ezra Pound. Para Antonio Houaiss, “um dos
mais perspicazes pesquisadores visuais no Brasil". Para o crítico Assis
Brasil, “Wlademir Dias-Pino é o poeta mais independente na área da poesia
experimental”.
Pois é, já lá se vão 50 anos. A primeira vez em que vi
Wlademir Dias-Pino, foi aí por volta de 1967, não sei bem se em Cataguases, na
Mata Mineira, em casa do poeta Joaquim Branco (onde ele concederia em 1977
longa entrevista sobre os rumos da poesia visual para o Totem, jornal que então
editávamos em conjunto). Ou, quem sabe, no Rio, em Santa Teresa, numa reunião
na casa dos poetas Neide e Álvaro de Sá, já no início dos anos 1970. Ali, onde
sempre ao lado de outros companheiros, como o poeta-professor Moacy Cirne,
tentávamos estruturar os rumos do Poema Processo. Não sei bem se lá ou cá, mas
o importante é que nunca me esqueci do olhar de Wlademir.
Ele nunca nos olhava diretamente, mas sempre enviesado, como
se buscasse o infinito. “Quem olha é responsável pelo que vê”, ele nos dizia na
entrevista para o Totem, Um olhar pra além, pra algo além. Futuro ou coisa que
fosse. Esse olhar assim desencontrado de Wlademir Dias -Pino é tudo o que eu
captaria mais tarde como definição do que fosse, seja ou é o que entendemos, ou
não, sobre poesia visual. Que eu prefiro chamar de “poema visual”, já que poema
é uma coisa, poesia outra. Poema é veículo, poesia reta de chegada.
A vida no meio gráfico
Um rápido flashback sobre a trajetória e o próprio
nascimento de Wlademir Dias Pino já nos deixa dúvidas logo de início. É certo
que o poeta nasceu em 1927 no Rio (Rua Pareto, na Tijuca). Mas em que mês?
Fala-se em fevereiro, mas há registros de abril, outros de maio. Ainda bem que
ele está aqui e pode nos dizer a data certa: afinal, já foi comemorado ou ainda
vamos comemorar os seus 90 anos?
No Rio dos anos 1930, Luciano Pino, o pai de Wlademir, é
militante comunista, jornalista e trabalha como tipógrafo na Imprensa Nacional.
Figura marcante em sua formação, sua mãe, Laura, é quem ensina o filho a ler e
a escrever. O método didático da mãe é recortar com tesoura palavras dos
jornais editados pelo próprio marido. Esse sistema de recorte de palavras e
formas é mantido durante toda a vida do poeta, sendo a tesoura o instrumento de
realização de várias de suas obras.
Na primeira infância, Wlademir brinca com os tipos gráficos
de chumbo: “Vivi no meio gráfico, comecei a lidar com o tipo desde muito cedo e
ficou aquele amor pela forma das letras. Convivendo com o alfabeto desde a
tenra infância, um dia conclui que a maior arbitrariedade existente na cultura humana
é a imposição do código alfabético”.
Em 1937, por razões políticas, Luciano, é forçado a
transferir-se com a família para Mato Grosso. Wlademir chega a Cuiabá com 10
anos e lá permanecerá até os 24. Nesse período, costumava ler vorazmente os
clássicos na biblioteca pública da cidade. Seu pai foi responsável pela
renovação gráfica da imprensa de Mato Grosso e, como jornalista e comentarista,
também produzia crítica de cinema e ensaios sobre a vida social. Nessa época,
Luciano conhece o poeta Manoel de Barros que vai até sua casa para entregar um
exemplar de seu primeiro livro. A visita do jovem poeta mato-grossense marca o
pequeno Wlademir que, anos mais tarde, seria um dos responsáveis pelo início da
divulgação de sua obra.
“Os Corcundas”: Augusto e Philadelpho
Em 1938, com apenas 11 anos, já escrevia livros de poemas.
Sem seu consentimento e em segredo, um dia seu pai, que administrava uma
gráfica, publica um livro seu, que retira de um conjunto de manuscritos.
Extremamente tímido, quando vê a edição Wlademir revolta-se e coloca fogo nos
livros. Alguns exemplares são salvos.
Coincidência ou não, em 1967, para grande espanto dos
transeuntes e de tutti quanti, os poetas do movimento do Poema Processo,
Wlademir, Álvaro, Neide e Moacyr Cirne à frente, queimam livros de poetas
consagrados na Cinelândia. “Espantar pela radicalidade” era seu slogan, a
palavra de ordem.
Em 1939, “Os corcundas”, seu primeiro livro conhecido, é
impresso por seu pai, agora com sua concordância, como atesta o cólofon na
contracapa do único exemplar existente desta edição. Wlademir ainda não
completara 12 anos de idade. O universo grotesco dos personagens do poema foi
inspirado, segundo ele, na commedia dell'arte, que sua avó apresentava aos
netos, além de “forçá-los” a ouvir ópera e ler peças de teatro.
“Os corcundas e suas deformações linguísticas./ O avesso do
muro por toda a parte, o inverso./ Nuvens beliscando o perfil das coisas/
Trapézio com seus dentes catando // arreiam seus olhos e como doadores de
sangue/ se nivelam e dormem/ aos pés dos cogumelos/ (ficando suas sombras)/ em
ângulos retos borrados/ sobre seus travesseiros de lilases/ macios como o tato/
(cabelos invisíveis)// e a nuvem que desce forma uma jaula/ de manequins
tombados”.
“Os corcundas” foi reimpresso em 1954, passando essa data a
aparecer equivocadamente como a data em que foi escrito. Nas décadas de 1950 e
1960, a obra é objeto de análises críticas em jornais e publicações nacionais.
Em nenhuma delas é apontado o fato absolutamente extraordinário, então
desconhecido, de Wlademir tê-la escrito enquanto ainda era criança, e o
trabalho é tratado por toda a crítica como obra adulta e plena, precursora
formal de sua surpreendente originalidade e capacidade inventiva.
Em 1956, escrevia o poeta Augusto de Campos no Suplemento do
Estadão: “A rebeldia de Wlademir se manifesta ainda, ao nível semântico, pela
dessacralização do “poético”, através de um sistemático “culto do feio” ou do
“mau gosto” em ‘Os Corcundas’, onde ocorre a intromissão de um vocabulário
rejeitado em poesia e que pela constante reiteração chega a ser, mais do que
prosaico, propositadamente incômodo e perturbador. Nesse monturo de dejetos
verbais Wlademir trata de revolver e perseguir uma espécie de fenomenologia do
indizível poético, para chegar ao fim das calvas coisas. Ao mesmo tempo
sente-se nele a consciência existencial da solidão e da alienação do poeta no
mundo moderno".
E também o crítico e poeta Philadelpho Menezes, em seu
livro Roteiro de literatura: poesia concreta e visual: "Entre o muito
que foi soterrado na história da poesia concreta, há que se dar um destaque
especial para o poeta Wlademir Dias-Pino. Em livros como ‘Os corcundas’, do
final da década de 1940, (sic) Dias-Pino mostra uma poesia incomum para os
padrões brasileiros. Com imagens estranhas, associações imprevisíveis, um
vocabulário rebuscado colocado numa sintaxe toda desconjuntada, sua poesia em
verso é surpreendente e pede uma reedição cuidadosa. Em ‘Os corcundas’, o tema
é a deformação física. Mas a deformação não fica só no tema. Ela invade a
própria linguagem, entorta a sintaxe das frases, põe vocábulos antipoéticos nos
versos, deforma as palavras".
“A fome dos lados” & “Intensivismo”
Em “A fome dos lados”, de 1940, Wlademir, com apenas
13 anos, descreve o impacto de ver o corpo de um amigo do pai torturado e
assassinado pela polícia de Filinto Müller na ditadura Vargas:” Aqui está a
mancha do assassinado/ livre agora era bom e é livre/ sua mancha horizontal e
leve/ como são leves as coisas horizontais// Eis o morto livre/ raso e vazio/
em seu ninho de sangue calvo/ (calvo como a bala de fuzil)/ sangue que é
escudo/ assim tombado//Esse mesmo sangue cheirando/ ao sopro exausto de seu hálito
calvo/ como sombra duma parede lisa/ onde foi fuzilado outro rebelde”.
Em 1948, em Cuiabá, ao lado de outros poetas, como Silva
Freire, ele funda o movimento literário de vanguarda “Intensivismo”, trazendo
em seu ideário fortes inovações formais que antecipam as tendências mais
radicais da poesia visual e das artes plásticas dos anos 50 e 60. Wlademir
volta para o Rio de Janeiro em 1952. Nessa década, edita e programa visualmente
a Revista da União da Nacional dos Estudantes e participa dos movimentos de
vanguarda política e cultural da época. Mas, mesmo distante, está sempre com um
pé em Cuiabá, como ainda hoje.
De lá pra cá, é história já bem sabida, ou não: em 1958, o
“vitrinista” Wlademir transforma com sua arte o Carnaval do Rio numa grande
vitrine. Em 1962, escreve Antônio Olinto em sua coluna Porta de Livraria, no
Globo:
“Há quatro anos, fez o poeta Wlademir Dias-Pino, para a
então Prefeitura do Distrito Federal, uma série de desenhos concretos para a
decoração de rua do Carnaval do Rio. Pela primeira vez em nossa história,
entrou esse tipo de desenho em contato com o grande público. Os panos pintados
por Wlademir acabaram sendo a inspiração dos carnavais seguintes, e a verdade é
esta: não pode mais o carnaval do Rio voltar a ser figurativo, porque o povo se
acostumou com os triângulos, os círculos, o tipo geral de desenho, enfim, de
Wlademir Dias-Pino”.
Concretismo & SDJB
Um dos seis poetas-pioneiros do movimento da poesia concreta
no Brasil (junto a Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, Ferreira
Gullar e Ronaldo Azeredo), ele participa em 1956 da I Exposição Nacional de
Arte Concreta em São Paulo, que chega ao Rio no ano seguinte. Publica
poemas e textos no SDJB-Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, o grande
veículo que acolheu o concretismo em suas páginas. Em 1967, Wlademir é um dos
fundadores do Poema Processo, ao lado de Moacy Cirne, Álvaro e Neide Sá, entre outros.
Em 17.02.1957, uma versão gráfico-visual do poema “A Ave”
ocupa toda a terceira página do SDJB. Em 23.02.1958 publica no mesmo SDJB
artigo intitulado “Da negação e positivação do espaço”, ilustrado por um
fragmento em letras garrafais do poema “A Ave”.
Destaco alguns, vamos dizer, “aforismos” de seu texto:
“A arquitetura antes de ser parede é o buraco onde o homem
mora. É a arte de organizar vazios”.
“O músculo da máquina é a exatidão, daí o ar abstrato das
artes modernas. É como num poema concreto: é tal a sua movimentação interior
(em si) que ele passa a ser um poema sem contorno”.
“Um poema escrito é antes de tudo visual e não sonoro – ele
não é um instrumento musical. Não se há de confundir lira nem bandolim com um
poema. A poesia é silenciosa”.
“A visão completa do poema faz com que ele perca a lógica
linear, o tal contorno que é o máximo de continuidade de uma linha”.
“Poesia concreta é o aparecimento máximo dos recursos
naturais da palavra, porém não é a palavra flexível e sim os seus movimentos de
ligação. Por isso, a poesia concreta não ser confundida com trocadilho”.
ave vae
Na entrevista que concedeu em 1977 ao Totem, realizada
por Joaquim Branco, dizia Wlademir:
“Dentro da poesia concreta a poesia está ligada ao sentido
de conteúdo. É importante: não pode existir o poético sem o conteúdo. O
conteúdo é o mais importante no sentido de poesia, natural do poético. Agora,
quando é o poema independe do conteúdo, quer dizer, o grafismo ou a forma de
registro é mais importante do que o conteúdo”.
“O poema pode ser poético ou não, como um quadro pode ser
bonito ou não. O poema independe do poético: a inscrição é mais importante que
o conteúdo. Então ele está muito mais próximo do sentido de linguagem do que a
poesia”.
“O que é importante dentro do poema passa a ser então o
processo do poema. Na poesia, o que se lê é a estrutura, como foi estruturada a
poesia”.
“O que importa no poema é o processo que ele encerra. Você
vê o processo. Daí a possibilidade da versão. Na poesia se faz tradução do
poético. No poema, não. Não se permite uma tradução do poema, mas uma versão”.
Num de seus poemas nascidos ainda Cuiabá, Wlademir registra:
“muro gradeado de fuzilaria/ encostado ao limite/ – represa social.// O muro é
a tela para todo o poema”. Pound tinha razão: os poetas são as antenas da raça.
Esse velho muro de Wlademir, num olhar de hoje, antecipador de uma cena
pseudo-paulista, é mais que up-to-date: é o grafite que esplende na
integridade de sua arte.
Perdão Wlad, mesmo sabendo ser o poema visual e não sonoro,
não resiste a falar trechos de “A Ave”, como na na abertura dessas
minhas palavras. Menos ainda a dizer o poema que cometo a seguir,
versão e fecho apressado de meu texto e de seu próprio poema.
ave
vae
ave
ave voa
voar
é preciso
vae
é preciso
ir
vae vae
mirar
ir
ave wlad
vae
ave ave
ave wlademir
vae
ave
ave voa
voar
é preciso
vae
é preciso
ir
vae vae
mirar
ir
ave wlad
vae
ave ave
ave wlademir