16 de out. de 2023

VINICIUS POR VINICIUS: CARTA ABERTA A MARIA LUCIA RANGEL

   

     Querida Maria Lucia, o seu Vinicius chegou assim como quem não quer nada e logo desviou minha atenção de qualquer outra coisa: há dois dias que não largo o livro, que agora chamo de “Vinicius por Maria Lucia”. Na dedicatória que me fez, você bem diz “Vinicius por Vinicius" mostra que nosso amado poeta sabia tudo, e sentia também”. Sem dúvida, sem dúvida.

     Eu às vezes lia o poeta em sua coluna da Última Hora, Vinicius por Vinicius, que resultou no título de sua obra, Maria Lucia. Terminei ainda agora a leitura desse seu livro, onde você pinçou preciosos aforismos de Vinicius. Muitos deles eu já conhecia, já havia lido aqui e ali, e você me fez bem em relembrá-los. Outros, não. O que me enriqueceu a leitura. Marquei muitos deles, como sempre faço nos livros que me são caros. A seguir, algumas dessas marcações que fiz, com observações que me permito fazer agora.


A infância & a Nona de Vinicius



     “O mar da infância banha até hoje o meu peito com suas marés sussurrantes” – diz Vinicius –, o que nos leva (a mim, a você, a tutti quanti) ao Sartre de Les mots: “Ils ont oublié leur propre enfance”. E também ao Rilke, na primeira de suas Cartas a um jovem poeta: “Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, essa esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela. Procure soerguer as sensações submersas desse longínquo passado: sua personalidade há de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre lusco e fusco diante da qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar”. 
     “O difícil é separar. Casar é facílimo”, diz Vinicius.  Meu amigo e parceiro Carlinhos Vergueiro falava que eu devia ter conhecido o também seu parceiro Vinicius, pelo menos para papear sobre casamentos. Eu perdi a conta dos meus, mas acho que “não faria feio” perto dos do Vinicius. Aquele lance da “nona de Beethoven” referindo-se a Gilda Mattoso é simplesmente hilário: “Vocês conhecem a nona do Beethoven? Pois essa aqui é a nona de Vinicius”.  Conheci a Gilda nos anos 1990, quando eu era Assessor de Comunicação do CCBB: na época, nós a contratamos para assessoria de imprensa de alguns eventos. Em 2005, já em Cataguases, quando eu era Diretor de Comunicação do Cineport, o Festival de Cinema dos Países de Língua Portuguesa, eu indiquei a Gilda para divulgar o Festival. Dito e feito. Há anos não vejo “a nona do Vinicius”. 

 Mocassins & Poesia



     Não conheci pessoalmente o Vinicius, i.e.: eu o vi “de perto” uma ou duas vezes. Como num dia da década de 1950 em que ele “surgiu” no Colégio de Cataguases para um papo sobre poesia com os alunos. Eu, com meus parcos 12 anos, mal sabia o que era aquilo, poesia. Menos ainda quem era esse tal de Vinicius de Moraes. Mas fui assistir e fiquei impressionado. Então poeta era aquilo? Aquela aparição com sua camisa vermelha, brancos mocassins do Moreyra então na moda, cabelos caindo pela nuca afora? Na verdade, o poeta fora visitar o seu menino que para lá mandara como interno (Filhos: Filhos melhor não tê-los!), o meu colega de classe Pedrinho – que, claro, comia gilete, bebia xampu e fumava todas as bingas de meus cigarros.  

   Sim, não posso dizer que tenha conhecido o poeta, embora tenha assistido a vários de seus shows. Lembro-me até hoje de um deles, no Teatro Opinião, onde sentei ao lado da mesa onde ele “atuava” com seu cigarro e copo de uísque – e eu me sentia exalando as baforadas do poeta a cada canção que ele cantava. 

    Não, não conheci o Vinicius – mas acabou que fiquei amigo de três de seus grandes parceiros: Carlinhos Vergueiro, Carlinhos Lyra e Baden Powell. E todos me diziam maravilhas do poetinha. Do Vergueirinho, amigo querido, já andei falando por aí. Do Carlinhos Lyra, lembro-me dele me dizendo que Vinicius lhe pedia, ao entregar a letra de uma canção, que a repetisse várias vezes no violão. Às vezes balançava a cabeça de cima para baixo, parecendo um sinal de aprovação, mas Lyra sabia que aquilo era um não. O compositor aprendeu que aquela era uma forma elegante de o poeta reclamar, pois não estava gostando do que ouvia. Lyra encontrou em Vinicius um tipo de sensibilidade especial para detectar a combinação perfeita entre melodia e letra.


Baden & Vinicius



     Já com Baden Powell, nossas conversas caíam volta e meia em seu grande amigo Pierre Barouh – o ator-compositor francês, grande entusiasta da música brasileira, principalmente da bossa nova, que fez a versão e gravou o “Samba da Benção”, dele com Vinicius para o filme Um homem uma mulher. Isso porque Barouh era uma de minhas admirações desde que eu assistira ao filme de Claude Lelouch, principalmente por uma de suas canções, onde sussurrava frases como A l´ombre de nous/ Tout va rester/ Et restera toujours/ Un gôut d´éternité/ Et ce soleil/ Que brille tan fort/ Que nous brûle/ Et nous devore/ Encore, encore, ou coisa parecida, pois – encore, encore – eu cito de cor e me estendo, minha querida Maria Lucia, por tanto gostar do jogo de palavras da canção de Barouh, daquela imagem de “um gosto de eternidade”. 

     Mas, de Pierre Barouh, Baden saltava quase sempre para seu parceiro Vinicius de Moraes. Ele falava com muita saudade do poetinha, dos porres que tomaram juntos, dos pertinentes “recolhimentos” estratégicos hospitalares. Formosa, por exemplo, o antológico samba da dupla, surgiu da visão de uma bela passageira do trem noturno onde eles se encontravam rumo a um show em São Paulo, mas terminou de ser criado na Clinica São Vicente, onde os dois estavam internados. Desintoxicação à base de soro e uísque, é claro. 

      Pois é, Baden, que saudade de nossos papos e de vê-lo, violão em punho. Nunca mais a agilidade de seus dedos mágicos, os acordes alucinados, alucinantes, inesperados. Nunca mais Baden de branco e fala magra e mansa e magro – e tão mago e leve como se no fim por vício levitasse. Como se pelas veredas de Vinicius seu violão voasse. 


O material da vida



      “O material do poeta é a vida, e só a vida, com tudo o que ela tem de sórdido e sublime”. Bingo! “Cada poeta é uma coisa em si, mas todos os poetas devem o mesmo à Poesia: A própria vida”. Bingo 2!

     “Acho que os poetas servem para não serem presidentes da República”. Engraçado que me parece ter lido novamente, dia atrás, em alguma coluna de jornal, essa tirada que já conhecia do Vinicius. Onde? Quando?

     “Liberdade é poder cagar de porta aberta”. Aqui Vinicius parece copiar a célebre máxima de seu grande amigo Antônio Maria (que o chamava de “Poesia”): “a melhor coisa de viver sozinho é poder ir ao banheiro de porta aberta” (ou coisa parecida: cito de cabeça), que meu amigo Paulinho Pontes colocou no espetáculo “Brasileiro, Profissão: Esperança”.  

     “Você já passou um Sete de Setembro, Tomzinho, sozinho num porto estrangeiro, numa noite sem qualquer perspectiva? É fogo maestro”. Adoro essa “Carta ao Tom”, enviada do Porto do Havre em 1964, e lida no show “Vinicius e Caymmi no Zum Zum” (tenho até hoje o LP e até mesmo um cd do show, lançado depois). Adoro também o poema “Olha aqui, Mr. Buster”, aquele que não sabia (e como poderia?) o que é torcer pelo Botafogo. 


Miguel Faria: Chico & Vinicius




     “(João) Cabral gosta muito de mim e me disse uma vez que se o Brasil tivesse um poeta com meu talento e a sua disciplina, o país enfim teria um grande poeta”. Essa citação de Caetano (sobre a tirada do Vinicius) no filme de Miguel Faria Jr me fez voar novamente até Lagos, no Algarve, quando realizamos em 2006 a segunda versão do Cineport. Eu editava o jornal “Cineport na Tela” e entrevistei diretores de vários países presentes ao Festival. Acabara de ver o Vinicius, do Miguel Faria, e me emocionara quase às lágrimas. Foi uma de minhas melhores entrevistas a que fiz com ele. Anos depois, eu estava em Búzios quando o Miguel me ligou, perguntando se podia usar algumas crônicas do “jovem” Chico Buarque no filme que estava fazendo sobre ele, e se eu tinha outras crônicas além das que publicara. 
     Eram crônicas que o Chico publicou, do alto de seus 15 anos, no jornal “O Pirilampo” dos alunos internos do Colégio de Cataguases, onde ele escrevia sob o pseudônimo de “Bananal”. Eu havia organizado em 2013 uma edição especial sobre Cataguases para o Suplemento Literário Minas Gerais e publicara duas crônicas do Chico (com autorização dele, claro!).  Disse pro Miguel que assim que voltasse de Búzios nos falaríamos de novo e veria outras crônicas do Chico para passar pra ele, se fosse o caso. Parece que não foi: ele não me ligou, eu também pra ele não liguei. O filme dele ficou pronto e a coisa ficou por isso mesmo. Gosto do filme do Chico, mas o do Vinicius me emociona mais. 


Ovalle, Winter, Romano



     Na página 95, Maria Lucia, você cita Vinicius ao exaltar seu grande amigo Jayme Ovalle, “o mistério poético em toda a sua inocência, em toda a sua beleza natural”. E, na página 124, a “Contracapa para Paul Winter”, com aquela definição precisa: “(...) Bossa Nova é o canto puro e solitário de João Gilberto (...) buscando uma harmonia cada vez mais extremada e simples nas cordas de seu violão (...).” 

     Pois bem, olha a coincidência. Nos anos 1990, a então coordenadora cultural da Faculdade Cândido Mendes em Ipanema, minha amiga Eridan Leão, convidou-me para fazer uma palestra (ou um “papo”, que melhor me cabe) sobre canções & poemas, letristas & poetas. Isso porque havia dito a ela que estava escrevendo alguma coisa sobre o tema, provocado por um quiproquó com o também meu amigo, o poeta Waly Salomão. Acabou que não rolou: Eridan saiu da Cândido Mendes e eu deixei meu texto de molho. 

     No final da década, já em Cataguases, resolvi retomar a coisa: convidei uma amiga para falar comigo os poemas (de vários e vários poetas) e um trio que executou as canções (de vários e vários letristas), e tudo virou um espetáculo chamado “Dentro & Fora da Melodia”. 

     Em 2001, gravamos um cd ao vivo naquilo que o Affonso Romano de SantAnna chamou de talk-show na contracapa do meu disco. Lá pelas tantas eu falava um trecho de um poema de Vinicius que eu adoro, talvez o poema dele de que mais gosto, O Haver, fechando com aquela quadra mais-que-perfeita: “Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio/ Pelo momento a vir, quando, emocionada/ Ela virá me abrir a porta como uma velha amante/ Sem saber que é a minha mais nova namorada”.


Leitura cotovelar




     O poema, talvez o último que Vinicius escreveu, estava num poster na sala do meu apartamento de Copacabana, anos 1980. Engraçado que, lembro agora, o poster-poema foi um presente dado pelo Affonso Romano. E eu sempre o lia, fascinado por aquele “O Haver” pendurado em minha parede: um pôster imenso, ilustrado por uma foto de que gosto muito do Vinicius, ele lendo atentamente numa mesa, o cotovelo sobre ela e uma das mãos na cabeça. Exatamente como seu amigo Rosário Fusco me ensinou um dia: “Leitura a sério só a de mesa e cotovelo. Cabeça na mão, olho no livro, cotovelo na mesa. Leitura que preste, só mesmo a cotovelar, meu caro”.  O poema do Vinicius era então inédito em livro. Acabou que um dia ele sumiu de lá, pousou pra fora da parede e desapareceu assim num só repente: voou Copacabana afora, como se para sempre. 
     Lembrei-me dele quando estava começando a reescrever o “papo-palestra” como roteiro para o show em que estava trabalhando. E calhou de a Marió (acho que foi ela, minha querida Marió, amiga e namorada daquele tempo, assessora de imprensa das melhores) me apresentar a uma das filhas do Vinicius, de quem era amiga, não me lembro agora se pra Georgiana ou pra Luciana. Sei que ela (Luciana? Georgiana?) me ditou todo o imenso poema por telefone, num tempo pré-celular. No show, um pouco antes da entrada em cena do poema, eu falava trechos dessa “Contracapa para Paul Winter” (sem saber de onde tirara o texto, como digo mais adiante):
     “Bossa Nova é mais Greenwich Village do que a Rua 52, é mais uma chuva fina olhada através da janela de um modesto hotel da Rua 46 que um rubro poente sobre a ilha de Manhattan, visto do Empire State Building. Bossa Nova – para citar esse grande new yorker que foi Jayme Ovalle, é mais a namorada que abre a luz do quarto para dizer que está, mas não vem, que a loura bonita num casaco de mink que se leva para dançar no El Morocco. Bossa Nova é mais a solidão de uma rua de Ipanema que a agitação de Copacabana. Bossa Nova é o canto puro e solitário de João Gilberto, buscando uma harmonia cada vez mais extremada e simples nas cordas de seu violão – e uma emissão cada vez mais perfeita para os sons e palavras de sua canção”. Vinicius de Moraes, Janeiro de 1965.
     Mandei o cd para alguns amigos, inclusive o jornalista e escritor Humberto Werneck que me ligou depois, perguntando de onde eu tirara o texto de Vinicius, pois estava escrevendo um livro sobre Jayme Ovalle e queria publicar aquele texto. Não é que eu não me lembrava? Tinha uma vaga ideia de que, quando estava escrevendo meu texto, ainda no Rio, extraíra as palavras de Vinicius da contracapa de um disco. Mas qual? Você agora me salvou, Maria Lucia: era o texto que Vinicius escrevera para a contracapa de um disco do grande saxofonista americano Paul Winter. Pena que agora o Humberto Werneck já publicou seu livro, “O Santo Sujo – A Vida de Jayme Ovalle”.


Antifiguri ou Anfiguri?



     Na página 112 de seu livro, quando Vinicius fala do filme Limite, você ressalta (ou o jornal A Manhã, onde aliás Vinicius publicou nos anos 1940 uma série de artigos defendendo o cinema mudo contra os filmes sonoros) que a fotografia é de Edgar Brasil. Bingo! Foi Adhemar Gonzaga quem pediu a Humberto Mauro que indicasse o seu fotógrafo Edgar Brasil para o filme de Mário Peixoto. Não só o fotógrafo, como a câmera, a velha Ernemann 35mm, alemã, com que Mauro rodara seus filmes pioneiros na Cataguases dos anos 1920. Fica uma pergunta, minha amiga: o que, diabos é “antifiguri”, que está na citação de Vinicius? Procurei, procurei e não achei. Não seria “anfiguri”?
     Na página 132, “O problema de São Paulo é que a gente anda, anda e nunca chega a Ipanema”. Como o próprio Vinicius gostava de dizer, “que coisa mais direita!”. E, na página 152, essa grande sacada do poeta: “Arte não é só fazer: é também esperar. Quando o veio seca, nada melhor para o artista que oferecer a face aos ventos, e viver, pois só da vida lhe poderão advir novos motivos para criar”.
     Como eu gostaria de ter conhecido o Vinicius! É uma das minhas falhas, “do rol das confessáveis”, como dizia o Rosário Fusco. Mas na verdade eu não o “pratiquei” como também gostava de dizer o seu (dele, Vinicius) amigo Fusco. Eu não o “pratiquei”, o que foi uma pena. Isso aí, minha querida amiga. Acabou que escrevi talvez menos que devia sobre seu livro, que curti muito. Mas ele merece muito mais. Está aqui agora em minha biblioteca o seu “Vinicius por Vinicius”, ao lado de outros e outros livros de e sobre Vinicius. Parabéns pela bela e preciosa pesquisa. 
Beijos do Ronaldo


VINICIUS MEU TEMPO É QUANDO




Com as lágrimas do tempo
E a cal do meu dia
Eu fiz o cimento
Da minha poesia. 
E na perspectiva
Da vida futura
Ergui em carne viva
Sua arquitetura.

     Em paralelo ao livro da Maria Lúcia, reli alguns textos constantes do Catálogo de “Meu tempo é quando”, o grande evento dedicado a Vinicius pelo CCBB/Rio em 1990. Destaco a seguir, trechos de alguns desses textos que nos permitem ver a grandeza do poeta. 


Laetitia Cruz de Moraes (irmã)


     Irmã mais moça, só me lembro de muito mais tarde, com aquele seu olhar distante e resoluto de quem tem uma ingente tarefa a realizar. Aí não eram sonhadores os olhares do poeta menino. Eram talvez ausentes, mas determinados, como se vissem logo adiante um grande dever a cumprir... e o tempo fosse pouco. (...) Menino ainda, confessou à minha mãe que desejaria ser amado por todas as mulheres e amigo de todos os homens.
     (...) Acompanhei-te de perto, vi a grande poesia surgir de ti e guardei, comovida, a lembrança dessa revelação que me fez, do irmão, um ser à parte, tocado de graça. Ou talvez de desgraça – pois haverá alguma coisa pior do que ver sempre além das coisas, ter a morte presente, viver a consciência do efêmero? Será a graça da poesia, no entanto, bem maior que tudo isso, pois permitirá a Vinicius transmitir em beleza sua permanente angústia.
      (...) Tinha o trato suave, dançava bem e era o monstro de simpatia que continua a ser até hoje.  (...) Tem mais imaginação que o comum, grandes ideias, amigos que o adoram. À sua presença o ar fica mais denso, cria-se uma atmosfera de expectativa. Algo está sempre para acontecer. 
     Se me fosse dado descrever um poeta pelo que sei de um deles, diria que um poeta será sempre manso, suave, de gestos calmos e riso bom. Terá grandes olhos claros e abertos, a voz doce e amiga, a palavra avara. Mesmo em meio ao maior entusiasmo, à mais completa participação da vida, há de ser um eterno ausente, atento à sua música interior. Será quieto, adaptado a seu meio e sempre estranho a ele. Nada exigindo, terá o direito de contar com todos que o amam, inapelavelmente. 
     De uma imensa bondade, será às vezes cruel e indiferente, mas sempre delicado. Nunca usará de gestos bruscos ou palavras duras. Capaz de violência, terá, no entanto, horror à violência, à injustiça social. Guardará dentro de si um grande, inesgotável amor pela humanidade e derramará torrentes de ternura sobre as mulheres, as herdeiras da vida e do sofrimento. Será generoso e leal, incapaz de um sentimento mesquinho, errando em grande e largo. E o seu nome, perdoem-me, será muito provavelmente, Vinicius.

Laetitia Cruz de Moraes (irmã do poeta)
Rio de Janeiro, 2-11-1961.

Antonio Candido

     Os poetas que valem realmente fazem a poesia dizer mais coisas do que ela dizia antes deles. Por isso, precisamos deles para ver e para sentir melhor, e eles não dependem das modas nem de escolas, porque as modas passam e os poetas ficam. Se hoje dermos um balanço no que Vinicius de Moraes ensinou à poesia brasileira, é capaz de nem percebermos quanto contribuiu, porque justamente por ter contribuído muito, o que fez de novo entrou para a circulação, tornou-se moeda corrente e linguagem de todos. 

  Do que trouxe, lembro apenas a peculiaríssima ligação que estabeleceu entre o mar, a praia e a vida amorosa. (...) E a capacidade de dessolenizar as coisas solenes para guardar o que tem de sério no meio da pilhéria aparente. E a capacidade de se apegar às coisas pequenas e humildes para lhes dar uma gravidade que não vem do tom, mas da estrutura latente de paradoxo que enforma sua poesia. 



Manuel Bandeira

(Sobre as “Cinco Elegias” de Vinicius, 1939)
     Ele que aspirava ser apenas homem e não poeta, “ser apenas Moraes sem ser Vinicius”, é aqui mais do que nunca Vinicius sem mais nada, um monstro de delicadeza, que, como certos santos, distribuiu todas as suas roupas entre os pobres e saiu nu, que loucura!
     (...) A evolução do poeta se vem processando com uma abundância e variedade que nos deixa a nós, seus admiradores e amigos, convencidos de estarmos diante de uma força criadora de natureza sem precedentes em nossa literatura. Porque ele tem o fôlego dos românticos, a espiritualidade dos simbolistas, a perícia dos parnasianos (sem refugar, como estes, as sutilezas barrocas) e finalmente, homem bem do seu tempo, a liberdade, a licença, o esplêndido cinismo dos modernos. 


Tom Jobim

(Sobre uma noite em dormiram no mesmo quarto de um hotel em Nova York)

     O Poetinha, conforme ia bebendo, ia passando do branco pro rosa, do rosa por vermelho, do vermelho pro roxo! Botou o ar condicionado no máximo e deitou-se. O Poetinha gostava de se ninar para adormecer. Cantava baixinho as cantigas que Maria lhe cantava na infância, dava-lhe tapinhas na barriga: “Tutu Marambaia, sai de cima do telhado deixa esse menino dormir sossegado”. Vinicius dormia e eu aproveitava para diminuir o ar condicionado que ficava, baixo, ao lado da cama de Vinicius, ao alcance de sua mão. Pois o danado girava logo o botão para o frio máximo, o quarto gelava e eu, que remédio, me metia embaixo das cobertas.
     Um dia Vinicius me disse que só conseguia dormir depois que sua bunda gelava. Ele, o autor do Orfeu Negro, tinha uma bunda branca difícil de congelar, e só dormia despido. Era um urso polar. 


Vinicius pra fechar: Sobre Poesia

O material do poeta é a vida, e só a vida, com tudo o que ela tem de sórdido e sublime. Seu sentimento é a palavra. Sua função é a de ser expressão verbal rítmica do mundo informe de sensações, sentimentos e pressentimentos dos outros com relação a tudo o que existe ou é passível de existência no mundo mágico da imaginação. Seu único dever é fazê-lo de maneira mais bela, simples e comunicativa possível, do contrário ele não será nunca um bom poeta, mas um mero locubrador de versos.

Ronaldo Werneck
Cataguases, 2023 :
em plena primavera. 



O Haver comme il faut

     A seguir, o poema O Haver, de Vinicius. Na integra, pois é meu favorito entre todos os poemas que Vinicius escreveu. 


O HAVER

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo:
— Perdoai! — eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia de simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano, ou essa súbita alegria
Ao ouvir na madrugada passos que se perdem sem memória...

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de sua inútil poesia e sua força inútil.

Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa tola capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem de comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no 
vir-a-ser
E ao mesmo tempo esse desejo de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não têm ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
E transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta essa obstinação em não fugir do labirinto
Na busca desesperada de alguma porta quem sabe inexistente
E essa coragem indizível diante do Grande Medo
E ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer dentro da treva.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem história
Resta essa pobreza intrínseca, esse orgulho, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do próprio reino.

Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento
Esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável
Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços
E esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio
Pelo momento a vir, quando, emocionada
Ela virá me abrir a porta como uma velha amante
Sem saber que é a minha mais nova namorada.

Vinicius de Moraes