Memória, que nos leva a memorabilia, é também e muitas vezes coisa imemorial. Afinal, 50 anos (de Bossa Nova) em cinco (crônicas) dá nisso: falha(s) nossa(s). Mesmo porque a gente não pode assumir, incólume, a juscelinidade dos cinqüent´anos-em-cinco. Andei trocando nomes e me esquecendo de outros. Não é que chamei meu caro amigo Juquinha de José Maria, quando o bravo baterista e primeiro parceiro de Tom Jobim na verdade chama-se João Batista Stockler? Acho que – justo de Juquinha e só disso ser chamado – nem mesmo ele se lembra desse “tal de João Batista”. Mas, vá lá. Quer dizer, fica aqui. E registre-se: João Batista Stockler. Também indoutrodia, na volta de rápida viagem, o acaso me trouxe “vívidas” relembranças – que ele também traz dessas coisas, na impossibilidade de carregar “mortas” lembranças. Eis que na estrada deparou-se-me (sempre quis usar essas mesóclises, mesmo com o carro andando) um outdoor que me recordou a logomarca da Metal Leve do José Mindlin. Não me perguntem qual era o outdoor: o fato é recente e eu só me lembro, vocês bem sabem (“eu sou um rapaz de bem”: evoé, Johnny Alf!), de acontecimentos pra-lá-pra-cá de cinqüentenários.
Parágrafo para Conexão-Cataguases (há sempre um link/conexão Cataguases em toda e qualquer história): Mindlin foi quem lançou a edição fac-similada da Revista Verde, em 1978. Falo “de cadeira”: a coleção de números da Revista que possuo é autografada por ele e por alguns dos remanescentes da Verde. Todos, como eu, presentes ao lançamento em Belo Horizonte. O outdoor me levou então ao logo da Metal Leve e a ninguém menos que ao cineasta Walter Carvalho, há tempos (mas não ainda naquele tempo) o melhor fotógrafo do nosso cinema. Havia me esquecido de meu querido amigo Waltinho quando falei aqui do Festival Audiovisual de Cataguases, que Joaquim Branco e eu organizamos em 1970.
Ainda em fase de preparativos para o Festival, viemos do Rio o Waltinho Carvalho, o compositor Marcus Vinícius e o artista plástico Raul Córdula – todos esses impávidos paraibanos num fusquinha que eu modestamente dirigia. Ainda na baixada fluminense, Waltinho – na época aluno da ESDI, a famosa Escola Superior de Desenho Industrial carioca, e por isso mesmo – chamou minha atenção para um outdoor da Metal Leve, para a perfeição de sua logomarca. Eis o “link” que me levou a lembrar dessa história toda: Waltinho Carvalho seria um dos membros do júri; Raul, o responsável pela cenografia do Festival, desenhando belos e “práticos praticáveis” para o palco do Edgard Cine-Teatro. Já Marquinhos-Marcus Vinícius de Andrade, que vencera o Festival anterior, vinha para se inscrever. E sua música, “Meio-dia doze mortes”, acabaria em segundo lugar.
Foi um rápido fim-de-semana, só pra tomarmos pulso da cidade, ver a quantas andava Cataguases às vésperas do Festival. Na madrugada do outro dia voltamos ao Rio em meio a um toró maior que um tororó, uma chuvarada daquelas. O fusquinha estava, por assim dizer, desprovido de limpador de pára-brisa. Eu não enxergava nadica – embora dissesse aos meus brancaleônicos amigos que nem precisava, pois sempre estive “local” naquela estrada. É bem verdade que a turma não acreditou muito nessa minha “localidade” interestadual e o Waltinho logo se prestou a me ajudar. Foi quando o poeta-processo – que ele o era naquela era – retira sua camisa, mete metade do corpo e a cara toda fuscafora, quer dizer, pra fora do fusca, e põe-se bravissimamente a lutar contra a chamada intempérie.
Quanto mais Waltinho esfregava a camisa, mais a chuva-chovia sobre o pára-brisa. Eu nada via, nem podia. Havia a estrada? Havia. Mas a via estava vazia. Ainda bem. Vários e fortes pingos, outras tantas esfregadelas e muitas rimas depois, a chuvarada cedeu – acho que amainada pelos golpes camisísticos & Waltínicos. Coisa do Carvalho. Muitos anos depois, Waltinho faria o excelente “Janela da Alma”, um filmensaio sobre a cegueira – não por acaso um dos entrevistados era o próprio Saramago – e sobre deficientes visuais & afins. Mas já naquela viagem, quem diria, ensaiávamos nossas cegueiras estrada afora. Corações e olhos apertados, vislumbramos enfim o Dedo de Deus ao deus-dará, ao nada apontar. Névoa de nada, Teresópolis surgia assustada em meio à manhã que se desfazia.
“Chove chuva choverando/ que a alma do meu bem/ está-se passando-se”: cito Oswald de Andrade de cabeça e a chuvas tantas – cabeça ainda molhada pelos pingos do parágrafo anterior. E tudo isso me leva à Joyce. A crase não é por acaso. Não ao Joyce, James – mas à cantora, minha preferida entre tantas. Exatamente “Joyce na Chuva” chamava-se um artigo que escrevi para o “Voz Ativa”, um jornal que eu fazia em Cataguases no final dos anos 80 – ao lado de Silvério Torres, Marcos Spíndola, Rogério Torres, Acir Vassalo e Washington Magalhães.
Eu vinha do Rio todo fim-de-semana para o “fechamento” do “Voz Ativa” – pois era, vamos dizer, o “subeditor carioca” do jornal. Entre seus colaboradores, nomes como os de Luiz Ruffato, Jair Ferreira dos Santos e Carlos Alberto de Mattos, além dos saudosos Roberto M. Moura e Carlos Alberto Castelo Branco – e até uma coluna da Glória (de Ipanema) Horta. Mas, na verdade, eu vinha mesmo era mais pra namorar a Olga Juliana – namoro no(i)vo, vocês sabem como é – até que ela fosse comigo lá morar (no Rio).
Sempre fui (e vim) de dirigir à noite. Numa dessas, achei uma fita esquecida no porta-luvas e botei pra tocar. De início, não ouvi direito: chovia muito na subida da serra e minha atenção voltava-se para a estrada. Mas, de Teresópolis pra cá, fui ficando “local” com a chuva e a estrada e comecei a prestar atenção na música. A fita era da Joyce, que eu sempre ouvira assim como quem não quer nada. A chuva, a noite, a estrada. Tudo ao som de Joyce, minha inesquecível companheira daquela noite de brEu sozinho na mata mineira. Como é que eu nunca percebera a grande cantora e compositora que ela é? Chego a Cataguases e ainda naquela noite escrevo o tal Joyce na Chuva. E, mesmo sem chuva, sem Joyce jamais.
As Costas. Tem as duas, a Alaíde e a Gal. Tem Áurea Martins e Rosa Passos. Tem a Silvinha Telles. A Elis. A Leny. A Elizete. E Bethânia. E Elza. E Ná Ozzetti. Tem sempre a Nara. E agora tem até japonesas, a Lisa Ono e a Fernanda Takai. Ex-namorada vale? Tem a Andréa Dutra. A Daniela Aragão. A Neti Szpilman. Mas não vem que não tem ninguém como Joyce. A voz, o violão, as canções. A batida perfeita da viola, as divisões inteligentes, o seu cantar, o texto sofisticado, as bem-sacadas crônicas – o que fazem vocês que ainda não leram seu livro “Fotografei você na minha Roleiflex”? As letras, as mutretas, as costas.
Seu baterista-muso Tutti Moreno que me perdoe, mas as costas de Joyce – ah, as costas de Joyce – quequieisso, minha gente?!!! Aquelas costas – aquilo sim são as veras (en)costas do Rio que sobre o (meu) mar de Minas se debruçam –, aquelas costas magníficas antevistas anos atrás em cada rodada que Joyce dava dentro de um longo-verde-vestido-frente-única a girar no palco de um teatro do Leblon. Estava comigo naquela noite e está de “provas costais” o Afonsinho, meu muso-baterista – que eu também carrego um, ora pois! E até mesmo o Caetano Veloso, a aplaudir (as costas?) na fileira à nossa frente.
Mas parecia que era pra mim que ela cantava – e quem dizia que não? “Eu com vestido verde hortelã/perdida em seus olhos de xamã/de deslumbrante cor de avelã/pra me aquecerem, feito astracã/mas pra que me cobrir de lã/se cá não ardo em febre terçã?/me seduzindo assim como um fã/com fala mansa, cantada chã/pra um passeio no seu Sedan/e ver um filme de Jean Gabin/me convidou para um coq-au-vin/que encomendou lá no Bec Fin”. Mas logo sua voz, a cristalinamada voz de Joyce, me acordava na noite malsã: “e com a benção de Iansã/prossigo firme no meu afã/de não tirar o meu sutiã/e o meu vestido verde hortelã.//(Até amanhã, galã tantã...)”.