24 de ago. de 2023

A mais nova namorada



E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

 

Eu possa me dizer do amor (que tive)
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure

Vinicius de Moraes

Estoril, outubro de 1939

 

 

 “Meu deus, o que é a morte?”, interrogava-se e nos interrogava Lúcio Cardoso pela boca de seu personagem André na abertura de seu seminal romance “Crônica da Casa Assassinada”. Quem morria era Nina, suposta mãe e amante insuspeitável de André. O câncer corroía a vida e transmutava em pus e degeneração o que fora flor e viço. Com Nina, caía de câncer a casa e todos os Meneses. Findo o romance, finda a casa e a família, a pergunta de André/Lúcio ficava sem resposta. Meu deus, o que é a morte? – perguntei-me muitos anos após a primeira leitura do romance, ao ver o cineasta Olney São Paulo, meu velho amigo baiano, definhando de câncer num leito da Beneficência Portuguesa no Rio. O corpo franzino sumia entre o lençol e mal chegava aos 40 quilos, exatos três dias antes de sumir de vez.

Meu deus, o que é a morte? É mamãe que chora no Oncológico de Juiz de Fora, mamãe que não quer pronunciar seu nome: a morte é câncer. A morte é meu querido Luiz Linhares, como mamãe perdendo a voz e a vez neste mundo. É Nando Nogueirinha, morando no andar aqui de cima, rouco-rouco que ele só e já passando em definitivo pro outro andar de cima, a garganta totalmente tomada e evitando tossir pra não me incomodar: só soube depois – e que coisa mais patética. A morte cansa, a morte é câncer. Mesmo em si não o sendo, ela é em si seu signo e significação, nosso cotidiano câncer. A morte é tia Dalila, Lilila querida, morrendo assim como quem diminui a luz – velas, brancas velas, as mãos entre as minhas, seda e celofane. As mesmas mãos logo em desalento, logo levantadas em grito, enquanto a maca some numa curva do corredor rumo à UTI – as mãos pro alto e pra nunca mais.

Meu deus, o que é a morte? É agora Teresa Cristina Mauro, a quem velo e desvelo nesta noite: “Dona Teresa, a senhora não quer abrir os olhos por quê? – Simplesmente porque meus olhos não queriam se abrir. Nem fuga, nem medo: abandono”, diria ela em “Retratos e Reflexos”, seu primeiro livro. Teresa falava de sua volta à vida na UTI, no pós-operatório de uma cirurgia de vesícula. “Ainda que eu ande pelo vale das sombras, não temerei mal algum”, escrevia ainda, citando o Salmo 22. E parecem de novo teimar em se abrir seus olhos míopes nesta noite em que é velada na capela do cemitério de Cataguases.

Meu deus, o que é a morte? Será só abandono, torpor, sonolência? “Ouvia, no aparelho, atrás de mim, a minha vida: as batidas, tão certinhas de meu coração”. Sua vida era assim mesmo, pura e plena de delicadeza: com “batidas certinhas”, bate o coração de Teresa. “O mundo não será salvo/ pela filosofia/ falsa passionária/ mas empurrado pelos séculos/ nas mesas frias dos laboratórios”, disse meu amigo Vitto Santos num velho poema dos anos 1960. Será? Não houve laboratório que salvasse Teresa, muito menos Marina, paixão de minha adolescência. Morta Marina, morta Teresa, o mesmo mal, eu sei, cansei de câncer, cansei.

Meu deus, o que é a morte? “Subir, subir e, esplendidamente, ganhar o azul, pratear-me da lua e chegar lá, de onde vim e para onde devo voltar”. Surgem assim suas palavras, junto a uma lua-mas-que-lua nesta noite em que velo Teresa: “Eu subia o morro. De repente, percebi que, para trás, ficava bem verde, onde eu passara e nada existira antes. Eu me sentia feliz como se tivesse chegado ao meu lugar, encontrado o princípio e o fim, alcançado o eixo, o ponto central do meu viver e isto me trazia vontade de dançar, cantar, de braços abertos e leves”. Uma lua-mas-que-lua era o que era. Ela é que era. Assim: “Lua me lembra Maria-Mãe, segurança, e brilho, com seu luar – o olhar – de bondade que, mansamente, convida com carinho: ´Dá-me tua mão, vem dormir e sonhar no meu colo, vem!”. Vai, tua vida, teu caminho é de paz e amor/te.

Meu deus, o que é a morte? Quem sabe, a mais nova namorada? Assim a chamava o poeta Vinicius, o mesmo desse “vai tua vida” aí de cima, a quem auxiliei com aquele “amor/te”, e que também foi com ela se encontrar. Pois é, paixão à primeira vista: “Resta esse diálogo cotidiano com a morte/ esse fascínio pelo momento a vir, quando, emocionada,/ ela virá me abrir a porta como uma velha amante/ sem saber que é a minha mais nova namorada”.

 

Ronaldo Werneck

Cataguases, 04.07.2004

in Há Controvérsias 2, São Paulo, 2009