E assim,
quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me
dizer do amor (que tive)
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure
Vinicius de Moraes
Estoril, outubro de 1939
“Meu
deus, o que é a morte?”, interrogava-se e nos interrogava Lúcio Cardoso pela
boca de seu personagem André na abertura de seu seminal romance “Crônica da
Casa Assassinada”. Quem morria era Nina, suposta mãe e amante insuspeitável de
André. O câncer corroía a vida e transmutava em pus e degeneração o que fora
flor e viço. Com Nina, caía de câncer a casa e todos os Meneses. Findo o romance,
finda a casa e a família, a pergunta de André/Lúcio ficava sem resposta. Meu
deus, o que é a morte? – perguntei-me muitos anos após a primeira leitura do
romance, ao ver o cineasta Olney São Paulo, meu velho amigo baiano, definhando
de câncer num leito da Beneficência Portuguesa no Rio. O corpo franzino sumia
entre o lençol e mal chegava aos 40 quilos, exatos três dias antes de sumir de
vez.
Meu deus, o que é a morte? É mamãe que chora no
Oncológico de Juiz de Fora, mamãe que não quer pronunciar seu nome: a morte é
câncer. A morte é meu querido Luiz Linhares, como mamãe perdendo a voz e a vez
neste mundo. É Nando Nogueirinha, morando no andar aqui de cima, rouco-rouco
que ele só e já passando em definitivo pro outro andar de cima, a garganta
totalmente tomada e evitando tossir pra não me incomodar: só soube depois – e
que coisa mais patética. A morte cansa, a morte é câncer. Mesmo em si não o
sendo, ela é em si seu signo e significação, nosso cotidiano câncer. A morte é
tia Dalila, Lilila querida, morrendo assim como quem diminui a luz – velas,
brancas velas, as mãos entre as minhas, seda e celofane. As mesmas mãos logo em
desalento, logo levantadas em grito, enquanto a maca some numa curva do
corredor rumo à UTI – as mãos pro alto e pra nunca mais.
Meu deus, o que é a morte? É agora Teresa
Cristina Mauro, a quem velo e desvelo nesta noite: “Dona Teresa, a senhora não
quer abrir os olhos por quê? – Simplesmente porque meus olhos não queriam se
abrir. Nem fuga, nem medo: abandono”, diria ela em “Retratos e Reflexos”, seu
primeiro livro. Teresa falava de sua volta à vida na UTI, no pós-operatório de
uma cirurgia de vesícula. “Ainda que eu ande pelo vale das sombras, não temerei
mal algum”, escrevia ainda, citando o Salmo 22. E parecem de novo teimar em se
abrir seus olhos míopes nesta noite em que é velada na capela do cemitério de
Cataguases.
Meu deus, o que é a morte? Será só abandono,
torpor, sonolência? “Ouvia, no aparelho, atrás de mim, a minha vida: as
batidas, tão certinhas de meu coração”. Sua vida era assim mesmo, pura e plena
de delicadeza: com “batidas certinhas”, bate o coração de Teresa. “O mundo não
será salvo/ pela filosofia/ falsa passionária/ mas empurrado pelos séculos/ nas
mesas frias dos laboratórios”, disse meu amigo Vitto Santos num velho poema dos
anos 1960. Será? Não houve laboratório que salvasse Teresa, muito menos Marina,
paixão de minha adolescência. Morta Marina, morta Teresa, o mesmo mal, eu sei,
cansei de câncer, cansei.
Meu deus, o que é a morte? “Subir, subir e,
esplendidamente, ganhar o azul, pratear-me da lua e chegar lá, de onde vim e
para onde devo voltar”. Surgem assim suas palavras, junto a uma lua-mas-que-lua
nesta noite em que velo Teresa: “Eu subia o morro. De repente, percebi que,
para trás, ficava bem verde, onde eu passara e nada existira antes. Eu me
sentia feliz como se tivesse chegado ao meu lugar, encontrado o princípio e o
fim, alcançado o eixo, o ponto central do meu viver e isto me trazia vontade de
dançar, cantar, de braços abertos e leves”. Uma lua-mas-que-lua era o que era.
Ela é que era. Assim: “Lua me lembra Maria-Mãe, segurança, e brilho, com seu
luar – o olhar – de bondade que, mansamente, convida com carinho: ´Dá-me tua
mão, vem dormir e sonhar no meu colo, vem!”. Vai, tua vida, teu caminho é de
paz e amor/te.
Meu deus, o que é a morte? Quem sabe, a mais nova
namorada? Assim a chamava o poeta Vinicius, o mesmo desse “vai tua vida” aí de
cima, a quem auxiliei com aquele “amor/te”, e que também foi com ela se
encontrar. Pois é, paixão à primeira vista: “Resta esse diálogo cotidiano com a
morte/ esse fascínio pelo momento a vir, quando, emocionada,/ ela virá me abrir
a porta como uma velha amante/ sem saber que é a minha mais nova namorada”.
Ronaldo
Werneck
Cataguases, 04.07.2004
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