12 de out. de 2021

CRISTO COM CHUVA E FOGO PAULISTA

        


     Noite de sábado que já vai alta num mês qualquer do Rio de 1969. Chuva fina e falta de cigarro na madrugada. Eu morava no Leme: desci e assumi o Gordini, o famigerado e imbatível  bólido. Mal liguei o motor, lembrei-me que podia ir a pé, pois o Bar do Careca, a salvação da madrugada, ficava logo ali, no início da Gustavo Sampaio.  

     Mas chuviscava, e bateu preguiça. Nem bem passei a terceira e já chegava ao bar, ao lado das boates onde fervilhavam os jovens músicos da época – do Chico Buarque, que fazia show com a Odete Lara no Arpège, ao pessoal do Grupo Manifesto, Gutemberg Guarabira & Cia. Todos saíam das boates e terminavam a noite no Careca.

    Nem bem adentrei o expediente, meu saudoso e prezado Afonsinho e sua bateria desceram de um táxi, vindos de um baile na Zona Norte. Um encontro desses, assim na madrugada, merecia um chope, né mesmo? Uns dez chopes depois, resolvi dar uma carona pro meu amigo e sua bateria. Nem bem entramos no carro e perguntei (de onde fui tirar isso?) se ele já tinha ido alguma vez ao Cristo Redentor.

     Pois é, nós morávamos no Rio há uns quatro anos e nunca subimos  o Corcovado  – “o Redentor, que lindo” da canção do Tom Jobim. “Ora, ora, Afonsinho, então vamos lá”. E fomos, em meio à chuva, os chopes ainda chacoalhando em nós. No final do Cosme Velho, paramos numa padaria, o dia já querendo vir, e compramos uma garrafa de Fogo Paulista. Até hoje, só de ouvir esse nome já me sinto meio nauseado.  

   Na subida, Fogo Paulista rolando, o Gordini ia também rolando na pista molhada, em meio a curvas e mais curvas (pra quê tanta curva, meu Cristo?) – e nada do Redentor surgir. Lá pelas tantas, o Gordini deu uma rabeada, pura imperícia de motorista iniciante, e Afonsinho se assustou. Tudo bem, eu disse: “tamo subindo, mas já tô testando o freio pra descida”. Não sei se Afonsinho acreditou na tirada surrealista, mas lá fomos nós até el cumbre del Corcovado. Nem bem os faróis bateram no platô vi dois fuscas e um punhado de gente estranha parecendo dividir drogas, roubo, coisas da malandragem. Reduzi o bólido num só lance, dei meia volta e desci desabalado.   

     Pelo retrovisor, vi os fuscais faróis dos dois fuscas (o)fuscando ensandecidos atrás de nós. Não sei mais como fiz todas aquelas curvas, o coração aos saltos. Num lance de sorte, dobrei numa estrada vicinal. Os dois fuscas sumiram do retrovisor. Parecia perseguição de cinema. E não era? Como os fuscas, também o porre passou. Percebi que estávamos em Santa Teresa. Pegamos alguma outra descida, ainda meio perdidos, e nos vimos nas proximidades da Avenida Brasil. Levado pelos fuscas, o susto sumiu. Ufa!

     Virei pro Afonsinho, mais branco que eu devia estar, e soltei de uma só vez: “vamos pra Vila da Penha fazer uma surpresa pra Marilda”. Acho que esse era o nome da sobrinha do pianista que tocava com ele (ou seria Marilene?), e que eu andava meio que namorando. Na Vila da Penha, deixei o Afonsinho num boteco e bati na casa da moça. Ela estava saindo pra missa das sete e me olhou assustada, pois eu estava mesmo de assustar.

     Mal me cumprimentou e partiu a passos firmes e dominicais pra igreja. Eu voltei pro boteco, pedimos um pão com salame e uma cerveja pra rebater. Fim de noite, de susto, de “Redentor, que lindo”, de namoro infindo e finito. Pão com salame parecia ser o “gran finale” de todos nossos porres. Na volta pra casa, Avenida Brasil afora, lá do alto o Cristo parecia nos olhar entre nuvens esparsas. Meio molhado e ainda sem acreditar no que vira. Fogo Paulista na madrugada, a primeira vez no Cristo a gente não esquece. Ele também não.


13 de set. de 2021

JOVENS POETAS EM BH: OS BRANCO E WERNECK

1968: nossa primeira vez no Suplemento Literário Minas Gerais. Os irmãos Joaquim e Pedro Branco mais eu: Cataguases na capital. Entrevista de página inteira no Suplemento.

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14 de mai. de 2021

Tudo muda, nada muda na cabeça e no coração

Em homenagem ao poeta norte-americano

Lawrence Ferlingetti, morto em fevereiro, aos 101 anos,

reproduzo crônica de 2006, escrita em Roma. 



 Não, não é bala não. Nem perdida, nem bem/mal endereçada. É apenas o poeta-beat Ferlinghetti e seus parques de diversão, A Coney Island of the Mind (City Lights, EUA, 1958) e A Far Rockaway of the Heart (City Lights, EUA, 1997). Ainda em Roma, e na livraria Bibli/Trastevere, agora viajamos (literalmente) com Un luna park del cuore (Mondadori, 2000), a versão bilíngue, inglês/italiano, do “parque do coração” desse surpreendente Ferlinghetti, que chega velhonovíssimo aos oitenta e oito anos.  Lawrence é de 1919 (Yonkers, Estado de Nova York), filho de uma francesa, Clemence Albertine Mendes-Monsanto – e veio ao mundo pouco depois da morte de seu pai, o italiano e anarquista Carlo Ferlinghetti.

Com menos de dois meses, o menino é levado para a França, onde mora com um tia até os seis anos. De volta aos EUA, estuda na University of North Carolina, em Chapel Hill, e serve na marinha norte-americana durante a Segunda Guerra (“mas já era pacifista, a ponto de não disparar um tiro”). O poeta termina seu mestrado pela Columbia University, em 1947. Completado em 1950, o doutorado é feito na Université de Paris (Sorbonne). De 1951 a 1953, quando se fixa em San Francisco, Ferlinghetti passa a pintar e torna-se crítico de arte. Em 1953, abre com Peter D. Martin a Livraria City Lights, que em 1955 passa também a publicar livros, com o nome de City Lights Books. Durante mais de meio século a City Lights serve como ponto de encontro de intelectuais, escritores e artistas.

Papo de Ferlinghetti com o poeta beat Ginsberg, de quem  editou o famoso Uivo. 

 A Editora começa com a publicação de uma série de poetas sob o formato de livros de bolso, com a qual Ferlinghetti criaria um fermento de dissidência de nível internacional. Em 1957, o lançamento de Howl, do poeta Allen Gisberg, causa um quiproquó dos diabos. Apreendido sob acusação de obra obscena, o livro acaba liberado e vende num só uivo 360 mil exemplares, além de atrair a atenção para San Francisco e para a explosão do movimento dos escritores da geração beat.  O chileno Neruda, o russo Ievtuchenko, o italiano Pasolini, o inglês Malcolm Lowry: são muitos e célebres os poetas editados pela City Lights.

Em 1984, a editora publica também os poemas do próprio Ferlinghetti, reunidos em A Coney Island of the Mind, carro-chefe da City Lights e até hoje o livro de poemas mais popular na América, editado em nove línguas, com mais de dois milhões de exemplares vendidos. Há um tradução brasileira de ótima fatura, feita por Eduardo Bueno e pelo poeta Leonardo Froés,  ”Um Parque de Diversões na Cabeça” (L&PM, 1984). A Far Rockaway of the Heart, de 1997, é seu mais recente livro de poemas, este que tenho agora em minhas mãos na versão italiana, Un luna park del cuore (Mondadori, 2000).  Só para nos situarmos: Coney Island é um parque de diversões na cercanias de Nova York.  Far Rockway, no Estado de Nova York, é uma localidade onde existe um também famoso parque de diversões.

Em 1980, o hoje historiador brasileiro Eduardo Bueno esteve com o poeta em San Francisco: “De jeans, camisa de flanela xadrez de lenhador canadense, botas rústicas, ali estava ele, Ferlinghetti – sorridente ao lado de três garotas lindas, olhar safado beatífico, rosto queimado pelo sol, barba grisalha. Sabedoria e vigor aos 60 anos. Apesar da origem italiana, mais parecia um irlandês ativo e empreendedor – daqueles que bebe uísque no gargalo e aparece trabalhando na construção das estradas de ferro em filmes classe B sobre o Oeste selvagem”.  Mas, na verdade, não era bem assim: estava ali também, à frente de Bueno, um poeta de extração super sofisticada, na linhagem de Appolinaire, ee. cummings, Ezra Pound, T.S. Eliot e William Carlos Williams.

Ferlinghetti tem o poder de transformar em poesia os objetos mais banais, as coisas corriqueiras do cotidiano. São poemas coloquiais, os seus, carregados por profundo poder de empatia e comunicação. Poesia altamente cantábile – e não é à toa que o octagenário poeta circula ainda hoje pelo mundo lendo seus poemas para um público cada vez mais numeroso. “O bardo da geração beat, o cronista mais extremo e corrosivo de nossos tempos, o sarcástico ´cabaretista trágico´, diz o texto da contracapa desta edição italiana. Que complementa: “Se A Coney Island of the Mind contribuiu em 1958 para abrir os olhos de toda uma geração e para construir uma aura política, A Far Rockway of the Heart surge como um vibrante e novo apelo ético à tomada de consciência da geração que transita passivamente pelo novo século”.

Não têm títulos os poemas de A Far Rockway of the Heart, apenas numerados em sequência. Não querendo absolutamente concorrer com meu poetamigo e excelente tradutor Leornardo Fróes, passo às pressas para a língua pátria um exemplo da poética de fina estampa de Lawrence Ferlinghetti, exatamente o primeiro poema do livro:

 

Tudo muda e nada muda

Séculos findam

                             e tudo continua

                                                     como se nada findasse

Como nuvens estáticas a meio-voo

                             Como dirigíveis presos contra o vento

E a urbana febre das feras do cotidiano

                             ainda domina as ruas

Mas ouço cantarem

                             ainda agora as vozes dos poetas

      mescladas ao grito das prostitutas

                                                     na velha Mannahatta (*)

                             ou na Paris de Beaudelaire

                  chamados de pássaros ecoam

                             nas ruelas da história

                                                     renomeados

E agora são os Novecentos

                  e a Bolsa quebrou de novo

E meu pai vagabundeia aqui perto com toda a sua coragem

                  os olhos na calçada

                             uma única lira italiana

                                         e um penny com a figura da cabeça de um indiano

                                                                                                                no bolso

                  Traficantes de bebidas e carros fúnebres passam

                                                                                        em câmera lenta

Enquanto ternos novos correm para o trabalho

                                                                 em arranha-céus que oscilam.

(*) Mannahatta: antigo nome dado pelos índios americanos ao lugar onde hoje se encontra Nova York.

 

 

Ronaldo Werneck

Roma, 2006/Cataguases, 11.03.2007

In Há Controvérsias 2. São Paulo, 2011