Noite de sábado que já vai alta num mês qualquer do Rio de 1969. Chuva fina e falta de cigarro na madrugada. Eu morava no Leme: desci e assumi o Gordini, o famigerado e imbatível bólido. Mal liguei o motor, lembrei-me que podia ir a pé, pois o Bar do Careca, a salvação da madrugada, ficava logo ali, no início da Gustavo Sampaio.
Mas
chuviscava, e bateu preguiça. Nem bem passei a terceira e já chegava ao bar, ao
lado das boates onde fervilhavam os jovens músicos da época – do Chico Buarque,
que fazia show com a Odete Lara no Arpège, ao pessoal do Grupo Manifesto,
Gutemberg Guarabira & Cia. Todos saíam das boates e terminavam a noite no
Careca.
Nem bem
adentrei o expediente, meu saudoso e prezado Afonsinho e sua bateria desceram
de um táxi, vindos de um baile na Zona Norte. Um encontro desses, assim na
madrugada, merecia um chope, né mesmo? Uns dez chopes depois, resolvi dar uma
carona pro meu amigo e sua bateria. Nem bem entramos no carro e perguntei (de
onde fui tirar isso?) se ele já tinha ido alguma vez ao Cristo Redentor.
Pois é,
nós morávamos no Rio há uns quatro anos e nunca subimos o Corcovado – “o Redentor, que lindo” da canção do Tom
Jobim. “Ora, ora, Afonsinho, então vamos lá”. E fomos, em meio à chuva, os
chopes ainda chacoalhando em nós. No final do Cosme Velho, paramos numa
padaria, o dia já querendo vir, e compramos uma garrafa de Fogo Paulista. Até
hoje, só de ouvir esse nome já me sinto meio nauseado.
Na
subida, Fogo Paulista rolando, o Gordini ia também rolando na pista molhada, em
meio a curvas e mais curvas (pra quê tanta curva, meu Cristo?) – e nada do
Redentor surgir. Lá pelas tantas, o Gordini deu uma rabeada, pura imperícia de
motorista iniciante, e Afonsinho se assustou. Tudo bem, eu disse: “tamo
subindo, mas já tô testando o freio pra descida”. Não sei se Afonsinho
acreditou na tirada surrealista, mas lá fomos nós até el cumbre del
Corcovado. Nem bem os faróis bateram no platô vi dois fuscas e um punhado de
gente estranha parecendo dividir drogas, roubo, coisas da malandragem. Reduzi o
bólido num só lance, dei meia volta e desci desabalado.
Pelo
retrovisor, vi os fuscais faróis dos dois fuscas (o)fuscando ensandecidos atrás
de nós. Não sei mais como fiz todas aquelas curvas, o coração aos saltos. Num
lance de sorte, dobrei numa estrada vicinal. Os dois fuscas sumiram do
retrovisor. Parecia perseguição de cinema. E não era? Como os fuscas, também o
porre passou. Percebi que estávamos em Santa Teresa. Pegamos alguma outra
descida, ainda meio perdidos, e nos vimos nas proximidades da Avenida Brasil.
Levado pelos fuscas, o susto sumiu. Ufa!
Virei
pro Afonsinho, mais branco que eu devia estar, e soltei de uma só vez: “vamos
pra Vila da Penha fazer uma surpresa pra Marilda”. Acho que esse era o nome da
sobrinha do pianista que tocava com ele (ou seria Marilene?), e que eu andava
meio que namorando. Na Vila da Penha, deixei o Afonsinho num boteco e bati na
casa da moça. Ela estava saindo pra missa das sete e me olhou assustada, pois
eu estava mesmo de assustar.
Mal me
cumprimentou e partiu a passos firmes e dominicais pra igreja. Eu voltei pro
boteco, pedimos um pão com salame e uma cerveja pra rebater. Fim de noite, de
susto, de “Redentor, que lindo”, de namoro infindo e finito. Pão com salame
parecia ser o “gran finale” de todos nossos porres. Na volta pra casa, Avenida
Brasil afora, lá do alto o Cristo parecia nos olhar entre nuvens esparsas. Meio
molhado e ainda sem acreditar no que vira. Fogo Paulista na madrugada, a
primeira vez no Cristo a gente não esquece. Ele também não.
4 comentários:
rs ...fogo paulista ...rs nunca vi ...nem nunca o cristo ...nem o do corcovado nem outro, o tal, que espero apareça logo! ...tudo lindo e bem contado! belo relatexto!
Belo texto, meu amigo, com sua dicção culta, lírica e plena de humor e poesia. Parabéns!
Muito bom, Ronaldo.
Caraca, que aventura! Dois malucos no pedaço...
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