2 de fev. de 2022

MONICA VITTI , Profissão: escritora.

 Maria Andrea Muncini

e Ronaldo Werneck




       Marcante musa da incomunicabilidade na famosa trilogia de Michelangelo Antonioni – A Aventura, A Noite, O Eclipse –  Monica Vitti, atriz e escritora italiana, é na realidade uma pessoa  sociável, extremamente divertida, que busca  entender e estar “com o outro”, que adora e necessita de uma roda de amigos. É com muito humor que Monica  administra a solidão, melhor forma de ficar de bem com a vida.

       Antonioni a viu pela primeira vez no teatro (“se não me engano, interpretando Feydeau: ela fazia um papel de raro brilho”) e sentiu-se logo atraído: “era uma atriz absolutamente profissional, que sustentava maravilhosamente personagens dramáticos ou cômicos, seja no teatro, no cinema ou na televisão. Convidei-a logo a fazer um teste e assim nasceu A Aventura. Monica Vitti vinha de uma experiência clássica, nunca interpretara nada de moderno. Seria um pecado não lhe dar o papel, pois Monica é um personagem moderno tanto no cinema como na vida”.

       Maria Andrea Muncini encontrou-se com Monica Vitti em Roma no final de 1995, ano em que a atriz  recebeu o Leão de Ouro no Festival de Veneza. Mas a escritora Monica Vitti estava na verdade contentíssima por outra honraria que acabara de receber do governo francês, o título de Officier des arts et des lettres

  Nesta entrevista, a eterna musa da incomunicabilidade nos comunica suas experiências com os grandes diretores do cinema italiano,  a necessidade que tem do convívio diário com seus amigos e que hoje gostaria mesmo de ser reconhecida é  como escritora. E de grande sucesso: Il letto è una rosa, seu segundo livro, editado pela Mondadori, está desde o seu lançamento entre os mais vendidos na Itália.  Monica Vitti não para. Ainda no ano passado  fez uma série de programas de grande repercussão para a rádio italiana.


Maria Andrea MunciniComo foi essa sua recente experiência radiofônica?

Monica Vitti – No último verão, fui convidada a fazer uma série de programas radiofônicos na Radio 2 e foi uma experiência maravilhosa. Foram 55 programas diários, de uma hora de duração, escritos em conjunto com Roberto Russo e Luciana Lanzarotti e dirigidos e interpretados por mim. O título era Insieme quasi al mare (“Juntos, quase na praia”) e eram programas  culturais, mesclando variedades, música e muita ironia. Recebíamos inúmeros telefonemas, a aceitação era ótima. Foi uma experiência muito importante, que me permitiu passar, somente com minha voz, toda a minha verve artística, cômica, toda a minha alegria. Foi uma aventura muito bonita. Gostaria muito de fazer mais programas radiofônicos.


MAMQual o enfoque de seu último livro?

Monica Vitti –  Está aqui o livro. Il letto è una rosa é, como diz a contracapa, “um rio, um lugar de amores, de abandonos, onde se fala, onde se deixa estar, onde se ama, se odeia, se trai, se chora, se ri, se lembra, se esquece...”, fico meio envergonhada de ler este texto, de repeti-lo. Ele está indo muito bem, foi reeditado recentemente, é um dos mais vendidos no momento. É um livro de certa forma de memórias, ilustrado com alguns desenhos meus. Um relato  sincero que agrada muito aos homens. Mas acho que as mulheres se encontram muito mais em seu contexto, porque ele é muito dirigido para elas, mesmo não abordando exclusivamente o mundo feminino, mesmo que eu me detenha por vezes no relacionamento homem-mulher. Acredito que Il letto è una rosa deixe os leitores com uma espécie de ânsia, mas também de esperança que alguma coisa chegue, que alguma coisa que você tinha imaginado, esperado, salte da janela para dentro de sua casa. A espera é uma coisa bela, é um espaço de tempo muito frutífero. Meu livro fala de espera e esperança na espera.



MAM –  Parece que ultimamente a literatura tem absorvido muito de suas  energias criativas. Com isso você não está deixando o cinema meio de lado? 

MV – Não, claro que não!  O cinema é meu amante, meu zen, minha terapia, meu trabalho, meu jogo preferido. Tive a grande felicidade de estrear exatamente com L’Avventura, que é um dos cem melhores filmes já feitos. Em meus quatro primeiros filmes tive grande sorte, porque comecei com o máximo. Como dizia Silvio D´Amico (fundador da Academia de Arte Dramática de Roma), “o ator deve saber fazer tanto papéis dramáticos quanto cômicos”. Foi o que fiz quando me pediram para fazer papéis em filmes cômicos, de Ettore Scola,  de Alberto Sordi, de Mario Monicelli.  Para as mulheres, é muito difícil fazer rir sem perder a feminilidade, mantendo o seu pudor. Não deixei o cinema de lado. Eu escrevo também para fazer cinema. Escrevi sempre, desde criança. Quando me pediram pra escrever um livro, eu pulei de felicidade. Il letto è una rosa foi antes de tudo uma alegria, porque a Editora Mondadori é uma segurança, pela qualidade de seu trabalho e pela liberdade que eles dão ao autor. Foi um livro escrito com plena liberdade. Acho que as mulheres vão gostar muito porque ele contém todos os desejos psicológicos, todas as fantasias, todas as revoltas, todas as fraquezas. É um livro para as mulheres. Ao escrevê-lo, não pensei em para quem ele era dirigido, mas só em ser sincera ao máximo, falar com extrema sinceridade do que estava ao meu redor.


MAMMonica, seus livros possuem grande poder de fabulação, de ironia, momentos  engraçados,  atraindo os leitores de forma envolvente. Você é assim na vida real?

MV – Claro que sou assim! Eu sou o bobo da corte, a comediante, o clown  para todos os meus amigos, estou sempre brincando, levanto o astral de todo o mundo. Não consigo ficar sem os amigos, senão enlouqueço. Preciso ter sempre alguém comigo, para rir, para brincar.


MAM – À semelhança de seus livros, você também trata com ironia as coisas que ama, como Roma, o cinema, as pessoas?

MV – Espero que sim. Procuro sempre o lado irônico nas coisas e nas pessoas. Às vezes encontro, às vezes não. Mas isso não é grave.  A vida, sozinha, já nos faz rir.


MAM Com Antonioni você viveu um momento extraordinário de sua vida de atriz. Que recordações você tem daquela experiência?

MV –  Não se esquece uma coisa assim tão forte. Fora o nosso relacionamento, que foi muito profundo e longo, a coisa mais importante estava no fato de ele ter me escolhido como a imagem que ele queria de seus filmes. Isto é, a incomunicabilidade através de meu rosto e através de suas histórias foi uma coisa muito bonita pra mim, uma jóia infinita, porque mesmo com toda a minha  ironia eu era aquela personagem do filme. Aliás, os personagens de Antonioni me pertencem muito, pois são personagens extraídos da própria vida. E, ao mesmo tempo, não. Acredito que um ator tem que fazer todos os papéis, senão não é um ator completo. Eu fiz todos, até os mais cômicos, com Alberto Sordi, atravessando toda uma comicidade de que muito gosto.



MAMApós suas experiências como atriz dramática nos filmes de Antonioni, você protagonizou filmes que mostraram sua verve cômica. Quais outros papéis você gostaria de interpretar?

MV – Tive a sorte de começar com Michelangelo Antonioni, que é o máximo em qualidade. Depois, passei por Scola, Monicelli, Alberto Sordi, Buñuel. Sempre trabalhei com autores maravilhosos. Isso é que faz o cinema, bons autores e diretores.  Sem eles, o ator perde o ponto de referência. Meus encontros com os cineastas sempre foram extraordinários. Não existem papéis específicos que gostaria de interpretar no momento. Se houver afinidade entre mim e o diretor, faço qualquer papel. Gostaria, por exemplo, de filmar com Woody Allen. Recentemente, recebi o convite para fazer um filme policial na França, mas ainda não sei se vou aceitar. Principalmente pela minha conhecida fobia de viagens aéreas.


MAMDe onde vem essa sua capacidade de atuar tanto em filmes dramáticos como nas comédias mais rasgadas?

MV – Acho que do convívio familiar.. Eu era a única filha mulher, e menor, com dois homens prepotentes e fortes como irmãos. Um deles era muito divertido.  O desejo de representar me veio muito cedo, por volta dos sete anos. Junto com meus irmãos, especialmente com Giorgio, o mais novo, que era também o mais simpático, eu fazia espetáculos, brincávamos de teatro. Minha estréia teatral foi aos 14 anos no Teatro Reale, aqui em Roma. Na  peça, eu fazia o papel da inimiga de Nicodemos, uma mulher de 40 anos, a protagonista.  Isso porque já naquela época eu era muito alta, com a voz rouca. Eles só me deram o papel porque fui taxativa: ou fazia a protagonista, a inimiga de Nicodemos, ou não mais se tocava no assunto. Dada a minha determinação, eles resolveram arriscar, dizendo qualquer coisa como ‘vamos ver se você consegue interpretar o papel’.  Consegui – e muito bem. Lembro-me que um jornalista escreveu um artigo dizendo que ‘essa menina excepcional, imprevisível, que fez essa personagem maior que ela,  se não for uma grande atriz no futuro terá sido por falta de sorte ou por muita sorte’. Vou sempre lembrar disso, porque essa frase de certa forma condicionou a minha vida. Ir contra meus pais era muito cansativo, mas sentia que representar me fazia bem, me acalmava, deixava eu sair de uma realidade que não me agradava. 


MAMO trabalho do ator pressupõe uma grande capacidade de fazer sua a vida dos outros. Você se acha uma atriz que é sempre ‘Monica Vitti’ ou cada interpretação significa esquecer um pouco de si mesma para encontrar-se no personagem?

MV – Quem dera... se um personagem pudesse mudar a realidade seria muito cômodo. Mas isso não acontece nunca. Não sei se acontece com os outros. Mas como comecei muito cedo, e desde então tendo entendido que a vida não era tão simples e bela como sonhávamos, senti necessidade de me comunicar. E aquele era o meu meio. Acho que a vida é uma coisa e interpretar é uma outra.



MAM  –  Apesar de ser muito bela, você conseguiu se afirmar em papéis onde o que aparece em primeiro plano é sua capacidade de atriz. Você acha que a beleza de uma atriz atrapalha o seu desempenho?  

MV – Eu não sou nada bonita. Nunca acreditei nisso. Na verdade, era a mais feia em minha família. Isso é muito engraçado. Mesmo assim, tive sorte, pois meu rosto nunca foi bonito. Eu tinha a cara certa para  a época, para Antonioni, para Scola, que acho um diretor excepcional. Queria dizer isso para ele a cada manhã. Quer dizer, minha beleza ou minha não-beleza não foi um fato importante em minha carreira.  Possuía também a voz rouca desde o início e achei que poderia ser um obstáculo. Em vez disso, a voz acabou me dando personalidade, sendo uma de minhas marcas, o que sempre achei muito curioso. No fundo, acho que as anomalias não diminuem, mas enriquecem as pessoas. E, naturalmente, os atores.


MAMCom quais atrizes italianas, ou estrangeiras, você se identifica? Você  tomou alguma delas como modelo?   

MV –  Graças a Deus, nunca imitei ninguém. Isso porque era impossível, devido à minha personalidade física e de trabalho. Não posso inspirar-me em ninguém. Posso amar, como amei muito Anna Magnani ou Katherine Hepburn, que era o meu sonho como atriz.  Amei muito as atrizes italianas, mas não podia inspirar-me nelas, porque eu tinha que utilizar o que eu possuía e não aquilo que era dos outros.



MAM –  O que significou o prêmio recebido no último Festival de Veneza por sua carreira como atriz? 

MV –  Gostei muito, é claro. É sempre gratificante receber essas honrarias. Agora mesmo, acaba de me acontecer uma uma coisa maravilhosa: a França acaba de me conceder uma de suas mais altas condecorações, a de Officier des arts e des lettres. Recebi a honraria no Palácio Farnese, um local incrível, com afrescos michelangelescos, arcadas, cores, uma arquitetura que nos faz sentir em outro mundo. Foi um dia belíssimo. Gostaria que minha mãe lá estivesse. Ela que tanto se preocupava com minha carreira tem agora uma filha Officier des arts e des lettres, não é maravilhoso? A França concede muito raramente este prêmio e o bonito é que eu o ganhei devido à minha maneira de ser, meu modo de viver. Claro, o fato de estar sempre ao lado de  importantes personagens me ajudou. Mas com certeza não joguei fora nenhuma possibilidade. Tenho uma vida muito rigorosa. Procuro aproveitar cada momento de meu dia.  Pelo menos 12 horas de cada dia.


MAM  –  Existe algum diretor especial, com quem você gostaria de trabalhar? É importante filmar com atores e diretores amigos?

MV – Tem muitos, todos extraordinários. Espero encontrar o Woody Allen, que conheço, é meu amigo, um homem muito curioso, fora do normal, um artista de uma inteligência construtiva, genial. Um homem muito interessante. Gostaria de fazer um filme com ele. Mas também, vou repetir, com Scola, Monicelli, meus  amigos, com quem sempre me dei bem. Pois a gente se entende com um simples olhar,  já sabe os defeitos e qualidades um do outro, é tudo mais simples.. Os amigos são importantíssimos. Preciso muito de afeto. A amizade é um sentimento extremamente construtivo e necessário. Não posso passar um dia inteiro sem ver alguns amigos. Mas, mesmo não sendo com amigos, às vezes a coisa dá muito certo, como por exemplo meu encontro com Buñuel e André Cayatte, com Roger Vadim e muitos outros.


MAMO cinema italiano atual é carente de bons papéis femininos. A que você atribui isso? Os diretores não têm confiança nas atrizes, os roteiristas enfocam mais o mundo masculino ou as mulheres têm dificuldade em se impor, em falar delas próprias?

MV – É preciso pensar que 98% dos filmes italianos são feitos por homens, que naturalmente “contam” o mundo como conhecem, sob a ótica masculina. Alguns como Antonioni e Scola  abordaram o mundo feminino porque eram curiosos, queriam falar de um mundo que não conheciam.  Por outro lado, as pessoas falam do “mundo feminino”, como se existisse um só. A meu ver, existem muitos “mundos femininos”, uma imensa variedade de personalidades femininas. O mundo feminino é ainda um mundo em evolução, um mundo a ser descoberto. A mulher sempre foi importante não só para a família, para o homem que ama, mas para a sociedade. Porque ela é diferente. Uma das  melhores roteiristas do cinema italiano, conhecida mundialmente,  é Suso Cecchi D’Amico. Mas existem poucas mulheres roteiristas. Mesmo nos trabalhos artísticos, o que prevalece é a masculinidade,  porque a mulher tem que abandonar suas aspirações para se limitar a cuidar da casa, dos filhos, da família.


MAMMonica, você nunca fez filmes dirigidos por mulheres. Gostaria de filmar, por exemplo com Jane Campion ou Francesca Archibugi?

MV – Começaria amanhã mesmo. São duas grandes diretoras, muito sensíveis, com o olhar muito atento não só para vida da mulher mas para suas batalhas, suas esperanças. Porque a mulher é ainda uma potencialidade. Claro que do tempo de minha mãe até hoje as mulheres tiveram muitas conquistas. Se formos hoje a Milão encontraremos muitas mulheres executivas, chefiando indústrias, destacando-se nas ciências, na política. Papéis impensáveis há quarenta anos.



Pré-seleção de perguntas, texto de abertura e tradução de Ronaldo Werneck

O ESTADO DE SÃO PAULO, CADERNO 2 – CAPA

12 DE ABRIL DE 1996


3 comentários:

ss.sonia.sales@gmail.com disse...



Ótima entrevista, fez com que Monica Vitti se mostrasse totalmente. Gostei da sagacidade dos entrevistadores.
Sonia Sales.

NELSON CUNHA disse...

Adorei a entrevista de Mônica Vitti. Que Deus a tenha.

Helena Lanna disse...

Muito boa a entrevista,me mostrou uma Mônica Vitti que eu não conhecia.