17 de mar. de 2022

HÁ EXATOS 50 ANOS: UH Revista/ Rio, 17.03.72

 

 

O primeiro show de Caetano Veloso depois da volta,
no Teatro João idem, foi uma loucura. Gilberto Gil
repetiu a dose semana passada. Mas a mocidade vai
ficar mais louca amanhã quando o mano Cae e Gil
vão juntar o som no Teatro Municipal. Nem os preços
altíssimos espantaram a moçada. Aqui um papo com Gil.



 Quem atende a porta do apartamento no Flamengo é Sandra, mulher de Gil: “Ah, você quem telefonou... Entre. O Gil está descansando lá no quarto. Sabe... ele está muito cansado, muito rouco, sabe, o show do Teatro João Caetano...”. Enquanto isso, Pedrinho, o filho de Gil, está transando pela sala: “Eu agora não tô mais com medo/ Tô com Pedro”.
   Gil está deitado no quarto, lendo uma revista. Os cabelos são outros, eriçados, black-power, e o corpo também é outro: exatamente 23 quilos mais magro do que quando foi para Londres, em 69. Jogado sobre a cama, um livro de macrobiótica-zen. Mas o sorriso é o mesmo de antes, aberto, baiano: “ O que que há, ô cara, tudo legal?”.

 

Aquele abraço

 


    Fala dos shows do João Caetano, como ele encontrou o público carioca três anos depois, principalmente após os espetáculos feitos “em casa”, em Recife (2, 3,4 de março) e na Bahia (6, 7, 8), com um público já conhecido, já amigo

     – Pois é, cara, o Rio de Janeiro continua sendo, a gente sente na plateia carioca aquela expectativa, aquela conscientização e ao mesmo tempo aquele entusiasmo que só se encontra aqui no Rio, aquela  vibração que acaba se transformando em uma forma de contribuir, de apoiar o que é novo, como por exemplo o que representa Gilberto Gil – após três anos de ausência – cantar 10 músicas inéditas em um espetáculo.  No fundo, o público carioca é quem sabe clicar a coisa, é o exemplo vivo de um happening que só o Chacrinha consegue alcançar em termos de Brasil.

 

Nonsense


     Gil fala em televisão e eu pergunto até que ponto ele seria capaz de botar música nas novelas que estão sendo feitas na televisão brasileira, aquele negócio de o sujeito encarar a coisa em termos profissionais: “Eu quero a música assim-assim, porque o tema da novela é assim-assim”.
      – Pois é, como experiência, eu acho isso muito bom, muito profissional. É quase um teste: o sujeito pede uma música de tal jeito e você faz. Minha experiência com esse tipo de coisa é em cinema. E sempre foi um troço muito honesto. Agora, em televisão, o negócio não dá pé. De vez em quando, dou uma olhada nas novelas da televisão brasileira e realmente sinto que a jogada não é essa: é puro nonsense, de um baixo astral incrível.
    – Claro, em determinadas circunstâncias econômicas, envolvido pelo esquema, o compositor brasileiro acaba por ceder, por conceder. Mas não acredito que ele possa se satisfazer com o produto final, acabado. Pronta, a novela acaba por deturpar a ideia inicial e a trilha sonora termina se perdendo dentro do nonsense geral. Eu não seria capaz de me arriscar numa aventura desse tipo.

 

Cae, Municipal, ingressos

 


     – Você vê, eu e Caetano assinamos um contrato com a Globo para fazermos um show de televisão. Isso ainda em Londres. Pois bem, eu já estou por aqui, Cae está fazendo um espetáculo na Bahia, deve chegar na sexta-feira, e só agora tomo conhecimento – através da imprensa – de que o negócio não é bem esse, de que o espetáculo vai ser realizado no Municipal, com o público pagando preços altíssimos, o que acho incrível.

     – Quer dizer, o show vai ser no sábado e ainda não se fez nada. Inclusive, preciso dar uma ensaiada com o Caetano, pois devemos cantar juntos, ver como fica a coisa, as músicas, sabe como é. E o público, pagando o olho da cara, vai acabar saindo prejudicado, pois o contrato é para a gente fazer um “show de televisão”, onde o timming é diferente, a marcação é outra, essas coisas. Não vai ser um show ao vivo, um espetáculo para o público, como por exemplo esse que fiz no João Caetano.

 

Como antes, nas feiras

 


 Gil esteve recentemente em Pernambuco, fugindo da “loucura da confusão turística” em que se transformou a Bahia: “O negócio todo começou com Beira-Mar, uma canção de parceria com Caetano, que gravei em meu primeiro disco, uma música que nós gostamos muito. A partir daí, e quase sem querer, Caetano se transformou numa espécie de arauto da Bahia. Mas a Bahia é muito forte. Ela resiste”.
 A verdade, no entanto, não é bem assim. Gil saiu da Bahia para ver/rever a Banda de Pífanos de Caruaru e principalmente os cantadores nordestinos, a quem está ligado afetivamente. Mais do que isso:eles representam uma “tradição viva”. E Gil reconhece a importância do cantador, tem a intuição exata de como sacar o novo em cima da tradição. Aquele negócio de “rever para aprender, aprender para renovar”.
– O ideal seria o próprio compositor cantar suas músicas. Como antes, nas feiras medievais: o povo chamava o poeta de cantor. A palavra é soma, caráter & som. No caso de uma parceria, por exemplo, colocar música em determinada letra transforma-se em um processo dialético onde o compositor (cantor) joga com o ritmo, com a melodia exata das palavras com que está trabalhando. Um negócio muito cantabile. O compositor é o homem da praça, o cantor da feira. E sob esse aspecto o cantador é o que existe de mais sofisticado, de mais autêntico. O improviso faz com que a canção fique mais densa. Sacando as palavras na hora, descobrindo seu som, sua música ganha mais substância e se realiza melhor.

 

Safra espanhola


     Pedrinho entra no quarto, Gil começa a brincar com o filho, o fotógrafo aproveita para umas fotos, eu me lembro de Volks-Volkswagen Blues, Com Medo, Com Pedro, pergunto pelas músicas mais chegadas a ele, aquele negócio.

     – Volks-Volkswagen Blues é a música aqui de casa, da família, eu falo em todo mundo, um troço muito afetivo, como Com Medo, Com Pedro. Engraçado é que fiz esta música pensando que a Sandra estivesse grávida. Mas era alarme falso, Pedrinho só nasceu depois, quando a música já estava pronta. Pois é, das músicas antigas, gosto muito de Beira-Mar, que já falei, de Domingo no Parque, Luzia Luluza. Ah, gosto também de Bat-Macumba, resultado do meu contato com os concretistas de São Paulo, uma tentativa de musicar o poema concreto, a funcionalidade do bloco (graficamente), o jogo de palavras, a fragmentação das sílabas, essas coisas. Hoje, minha música é Oriente, Crazy Pop Rock, todas elas feitas durante o verão espanhol.

 

Satélites artificiais



     Depois do Municipal, Gil faz um show em São Paulo e em maio volta a Londres onde tem compromissos. Em agosto, Nova York: ali vai terminar o disco que começou a gravar na Inglaterra, e fazer um espetáculo com Caetano e Gal. Pergunto pela música popular brasileira hoje, como ele vê a coisa agora, depois de tanto tempo no exterior.
     – Sabe, eu estou muito na minha, meu caminho hoje é muito solitário. Meu trabalho é uma coisa muito minha. Inclusive, estive discutindo isso com o Caetano em Londres. Continuamos tão ou mais amigos quanto antes, continuamos morando juntos, mesmo agora na Bahia. Mas nosso trabalho é outra coisa. Há muito tempo não compomos juntos. Cada um está na sua. Em Londres, tentamos repensar a realidade econômica, política, as coisas que aconteceram, o mercado brasileiro, tudo isso.
     – Agora no Brasil, tenho ouvido pelo rádio a música de consumo. Engraçado como são as coisas: ficou o que já existia, o Chico Buarque, o Paulinho da Viola, mais um ou outro. O resto é diluição: são meros satélites artificiais a serviço do sistema de telecomunicações. 
      Deixo também com vocês o link para um programa de tevê de 1972, onde Gil apresenta um arrasador “Back in Bahia”, com direito a uma participação relâmpago de Caetano. Tudo muito no clima do show que os dois fizeram no Municipal. E botaram a mocidade louca, inclusive o jovem entrevistador daquela época:

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