26 de jun. de 2020

APITOS DE NOEL EM CATAGUASES



     Dias desses, meu amigo e parceiro Eduardo Henriques me encomendou um pequeno texto sobre a canção Três Apitos de Noel Rosa, uma das selecionadas para a live que iria fazer em companhia do tecladista Dé.  Foi quando lembrei-me dos apitos da fábrica de tecidos da Cataguases de minha infância. Ao chamarem os operários em plena madrugada, os apitos acordavam a cidade e eram nosso mais certo relógio. Às duas da tarde a fábrica voltava a apitar para a troca de operários. Era quando mamãe gritava: “Ronaldo, Rosa, venham que está na hora do café... a fábrica já apitou!”. Como tudo começa e acaba em Cataguases, foi também aqui que a Fina, a musa-operária de Noel – a que era “mesmo artigo que não se imita” –, acabou se finando.
Vejam o vídeo no link a seguir:
https://www.youtube.com/watch?v=tOVvYXnnOx4

4 de jun. de 2020

A residência das rugas


      Cachaça, Cartola e Cavaquinho. Foi num bamboleio de embriaguez e delicadeza, na musicalidade e manemolência dos compassos surgidos desse soberbo trio de criadores que o samba-no-pé desceu da Mangueira e evoluiu pela cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Um tripé de bambas, onde Cachaça é Carlos, Cartola é o próprio e Cavaquinho é naturalmente Nelson – dramático, soturno, definitivo: “Se eu for pensar muito na vida/ morro cedo, amor./ Meu peito é forte/ nele tenho acumulado tanta dor./ As rugas fizeram/ residência no meu rosto/ não choro pra ninguém/ me ver sofrer de desgosto”.
       O corpo emborcado, como se aconchegasse aquele violão que acariciava de forma estranha, com o polegar e o indicador, dando margem ao indefectível cigarro preso entre os dois próximos dedos. O olhar entre sério e desprotegido, mesmo quando sob grossas lentes, a pele parda-quase-cobre realçando a cabeleira branca. Nelson Cavaquinho fazia bela figura em cena, assumindo a voz devastada por noitadas (“Ela é rouca como a daquele americano, o Armstrong – mas eu tenho sentimento!”). Bom de boemia, de música, de amores, ele viveu em permanente dificuldade e não viu em vida a retribuição financeira por seu talento. “Me dê as flores em vida/ um carinho, a mão amiga/ para aliviar meus ais./ Depois que eu me chamar saudade/ não preciso de vaidade/ quero preces e nada mais”. 
     Na música, como na vida, Nelson casou muitas vezes. Fora Guilherme de Brito, co-autor de alguns de seus maiores sucessos, foram inumeráveis os parceiros e é sempre temerário afirmar quem fez o quê, letra ou música – num tempo em que as parcerias eram quase sempre por partes: “Faz aí a primeira (letra e música) que eu completo”. E fica ainda mais difícil com Nelson, acostumado a vender com a maior desfaçatez suas criações, como no caso daquela imortal parceria com Cartola, aquela de “Não quero mais/ amar a ninguém./ Não fui feliz/ o destino não quis...”. Pois é, Nelson vendeu, mas justificou-se com Cartola: “Bem, eu vendi a ´minha´ parte, né?”. Ainda bem.
     Na verdade, Nelson era maior que tudo isso. As ideias eram sempre dele e sua marca está gravada em cada um de seus mais que antológicos sambas. São composições que oscilam entre a morte e a amargura, mas com tiradas de um inesperado humor – a nata da malandragem gingando em capoeira com a vida. “Em Mangueira/ quando morre/ um poeta/ todos choram./ Vivo tranquilo/ em Mangueira porque/ sei que alguém/ há de chorar/ quando eu morrer”. 
     Morto em fevereiro de 1986, Nelson Cavaquinho era mangueira, escorpião e carioca de 1910: no próximo 28 de outubro iria completar 110 anos. Isso se não tivesse dado mais uma daquelas escapulidas de boêmio inveterado, daqueles que só voltam quando o carnaval se for. “Vou partir/ não sei se voltarei/ tu não me queiras mal/ hoje é carnaval./ Partirei para bem longe/ não precisas te preocupar/ só voltarei pra casa/ quando o carnaval acabar”. Bem, espera-se que o carnaval acabe logo. Volta pra casa, Nelson!