O disco Caravanas está rolando no meu carro já há algum tempo. Fora “Tua Cantiga”, fora a própria canção “Caravanas”, há de Havana (de e sobre) um suave, quase melancólico bolero cubano, “Casualmente”, composto com Jorge Helder: “No volverá nunca más/ La canción sentimental/ Que casualmente em La Habana/ escuché cantar/ A uma mujer/ Como ya no veré/ Outra vez nada igual/ (...)/ La canción, la mujer/ El crepúsculo, la catedral/ Hasta el mar de La Habana es lo mismo, pero/ No es igual/ No es igual”. E “A Moça do Sonho”, canção-constatação, belíssima, em parceria com Edu Lobo: “Súbito me encantou/ A moça em contraluz/ Arrisquei perguntar: quem és?/ Mas fraquejou a voz/ (...)/ Há de haver algum lugar/ Um confuso casarão/ Onde os sonhos serão reais/ E a vida não/ (...)/ Um lugar deve existir/ Uma espécie de bazar/ Onde os sonhos extraviados/ Vão parar”.
Tem também “Massarandupió”, uma coisa, uma
dessas pedras-de-toque tão Chico Buarque, feita com e para o “parceiro mais
amado”, seu neto Chico Brown. O mar, o menino, a areia, o tempo. Areia que se
faz de ampulheta como se regesse o passar da vida que não volta. É quando no
palco as linhas arquitetadas por Hélio Eichbauer se transformam em teias que se
movimentam no ritmo das ondas: “No mundaréu de areia à beira-mar/ de
Massarandupió/ Em volta da massaranduba-mor/ de Massarandupió/ Aquele piá/
Aquele neguinho/ Aquele psiu/ Um bacuri ali sozinho/ (..)/ É o xuá/ Das ondas a
se repetir/ Como é que eu vou saber dormir/ Longe do mar/ (...)/ Devia o tempo
de criança ir se/ arrastando até escoar, pó a pó/ Num relógio de areia o areal
de/ Massarandupió”.
Em seu livro “Letra
e Música 1”, Humberto
Werneck registra que “para trás de ´Tem mais samba´, ficou o que Chico chama de
sua pré-história musical”: ´Tem mais samba no homem que trabalha/ Tem mais
samba no som que vem da rua/ Tem mais samba no pranto de quem vê/ Que o bom
samba não tem lugar nem hora/ Vem que passa/ teu sofrer/ se todo mundo sambasse/
seria tão fácil viver´. Mas entre essas canções “pré-históricas” existem coisas
como ´Marcha para um dia de sol´, que já prenunciava uma certa participação
social: ´Eu quero ver um dia/ numa só canção/ o pobre e o rico/ andando mão em
mão/ que nada falte/ que nada sobre/ o pão do rico/ o pão do pobre”.
Canções que saltam da pré-história
para toda a história musical de Chico Buarque, suas recorrentes “assinaturas”,
como “Caravanas”, que dá título ao disco e ao show e onde ele ironiza seus
vizinhos da Zona Sul carioca: “É um dia de real grandeza, tudo azul/ Um mar
turquesa à la Istambul/ enchendo os olhos/ Um sol de torrar os miolos/ Quando
pinta em Copacabana/ (...)/ A caravana do Arará/ A caravana do Irajá, o comboio
da Penha/ Não há
barreira que retenha esses estranhos/ Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho/A
caminho do Jardim de Alá/ (...)/Com negros torsos nus deixam em polvorosa/ A
gente ordeira e virtuosa que apela/ Pra polícia despachar de volta/O populacho
pra favela/Ou pra Benguela, ou pra Guiné// Sol, a culpa deve ser do sol/ Que
bate na moleira, o sol/ (...)/ Tem que bater, tem que matar, / engrossa a
gritaria/ Filha do medo, a raiva é mãe da covardia/ Ou doido sou eu que escuto
vozes/ Não há gente tão insana/ Nem caravana do Arará/ Não há, não há”.
Gumes aguçados
Mas ouvir ao vivo e a cores o
cantar de Chico é mais, muito mais, “quase uma epifania”. Ah, as cores, as
muitas cores reinventadas pela iluminação de Maneco Quinderé, que se harmonizam
com o tom de cada canção. Cores que dialogam com a fantástica cenografia de
Hélio Eichbauer, cordas que se entrecruzam no fundo e no alto do palco, onde
surge uma espécie de astrolábio como a direcionar as caravanas que intitulam o
disco e o show.
Escreve Arthur Dapieve, com
rima e tudo: “Passada a polêmica da internet em torno do suposto machismo de ´Tua
Cantiga´, ela pode ser apreciada pelo que é: uma linda canção de amor. Os anos
me tornaram uma manteiga derretida, sei, sei, mas ao final da última estrofe
(´E quando o nosso tempo passar/ Quando eu não estiver mais aqui/ Lembra-te,
minha nega/ Desta cantiga/ Que fiz pra ti´) tive de secar o canto dos olhos com
os dedos indicadores”.
Quando
fez a letra de “João e Maria” para a música de Sivuca, Chico não entendeu o que
ele mesmo tinha querido dizer com aquele “e o meu cavalo só falava inglês”.
Levou o enigma a Francis Hime, que arriscou: “Acho que é um cavalo muito
educado”. Como a canção falava de heróis e caubóis, eu arrisco outra coisa:
cavalo de caubói em faroeste (clima de sonho da música) tinha mesmo era que
falar inglês. Mas a gente às vezes não sabe mesmo o que quis dizer com
determinados versos. Quando escrevi um poema em homenagem a João Cabral, disse
lá pelas tantas: “a canção/ a praça/ o perfume/ tudo resta/ incólume/ imantado/
fotograma de gumes aguçados”. Canção, praça (infância), perfume estão presos ao
passado, imantados acionadores da memória. OK. Mas, “fotograma de gumes
aguçados”? Ah, sim: seria o cinema? Ou “gumes” era uma referência à “faca só
lâmina” de Cabral? Vá lá saber. Não tente entender muito o poema, qualquer
poema. Nem letras de música. A graça é mesmo o mistério.
Disse um dia Ney Matogrosso: “Eu
dançava, embora não seja dançarino. Eu cantava, embora não fosse cantor. E eu
atuava porque eu achava que era ator. Nunca subi no palco como uma pessoa.
Sempre subi como um personagem”. Chico, ao contrário, diz sobre sua suposta
timidez no palco: “Eu percebo que me exponho muito, fico muito vulnerável.
Quase todo artista está lá como personagem, esse personagem o protege – a própria
roupa de artista é uma máscara. Eu, não, eu estou no palco como pessoa física”.
Fecho com Tom
Pois
foi essa pessoa física, de extrema delicadeza e sofisticação, que mais uma vez
me encantou naquela noite no Rio de janeiro, ou vice-versa: de janeiro no Rio. Canções
acionam a memória, fixam momentos, impulsionam o passado. Olha a voz que me
resta. Olha a veia que salta. Olha a gota que falta. Vou voltar. Sei que ainda
vou voltar. Vou deitar à sombra de uma palmeira. Que já não há. Não vai ser em
vão que fiz tantos planos. De me enganar. Como fiz enganos. De me encontrar. Pretendo
descobrir no último momento. Um tempo que refaz o que desfez. Que recolhe todo
sentimento. E bota no corpo uma outra vez. “Gota d´água”, “Sabiá”, “Todo o
sentimento”, me emocionavam como da primeira vez – e quase tive que “secar o
canto dos olhos”, como Arthur Dapieve. E qualquer desatenção, faça não. Pode
ser a gota d'água.
Quando
Chico mandou de lá todo aquele blues de “A história de Lily Braun” (há uma
gravação antológica da Gal, mas esse entoar de Chico não fica a dever), Patrícia,
“a minha patroa”, a “Patrícia do poeta” – que como eu também adora essa música
– me abraçou perguntando se eu estava feliz. Não consegui emitir qualquer som:
segurei seu abraço em minhas mãos, meus olhos embotados de silêncio quase
lágrimas.Pode serque passe o nosso tempo como qualquer primavera.
Espera.
Me espera. Eu
vou voltar. No palco, a voz de Chico: “Como num romance/ Era
mais um/ Só que num relance/ Os seus olhos me chuparam/Feito um zoom”.
Fecho
com Rubem Braga: “A coisa mais importante no momento em matéria de música
popular é mesmo Chico Buarque de Hollanda. Sem desfazer em ninguém, porque o
Brasil é grande, saudemos Chico Buarque de Hollanda como a bela novidade. Até
assusta ver um rapaz tão novo fazendo as coisas tão boas e tão certas. Que a
glória, que lhe vem tão fácil, não o atrapalhe”. (in Diário de Notícias, Rio, 13.10.1966).
Fecho
com Caetano: “Chico foi, em todas as oportunidades, o mais elegante, discreto e generoso de todos os nossos
colegas. Conheço-o bem e sempre soube que é isso que ele é, além de um virtuoso
das rimas e dos ritmos verbais”. (in
Verdade Tropical, 1997).
E
fecho finalmente (nos dois sentidos) com Tom Jobim, o parceiro e maestro
soberano, naquele memorável bilhete enviado de Nova York, outubro de 1989:
“Chico
Buarque meu herói nacional. Chico Buarque gênio da raça. Chico Buarque salvação
do Brasil. A lealdade, a generosidade, a coragem. Chico carrega grandes cruzes,
sua estrada é uma subida pedregosa. Seu desenho é prisco, atlético, ágil,
bailarino. Let´s dance! Eterno,
simples, sofisticado, criador de melodias bruscas, nítidas, onde a Vida e a
Morte estão sempre presentes, o Dia e a Noite, o Homem e a Mulher, tristeza e
alegria, o modo menor e o modo maior, onde o admirável intérprete revela o
grande compositor, o sambista, o melômano inventivo, o criador, o grande
artista, o poeta maior Francisco Buarque de Hollanda, o jogador de futebol, o
defensor dos desvalidos, dos desatinados, das crianças que só comem luz, que
mexe com os prepotentes, que discute com Deus e mora no coração do povo. Chico
Buarque de Hollanda Rosa do Povo, seresteiro poeta e cantor que aborrece os tiranos
e alegra a tantos, tantos”.
E
Tom termina parodiando o famoso poema que Drummond dedicou a Charles Chaplin:
“Ó Francisco, meu querido amigo/Tuas chuteiras caminham numa estrada de pó e
esperança.”.