“Chico
Buarque vive no tempo próprio da delicadeza, sem deixar de dar
pernada a três por quatro se alguém lhe desafia, como diz em 'Partido Alto'. A
música está presente no show Caravanas, baseado em seu disco mais recente, que
inicia temporada em São Paulo” – dizia o texto “paulista” de divulgação do show
do Chico. Foi quando o imponderável, repentino Tom Zé mandou um recado:
“Chico, ´Tua
Cantiga´, que coisa! Chico, que Deus lhe abençoe! Quando Chico cantou essas
canções parecia a voz dele quando era jovem. Parece um homem que depois de
chegar aos 80 anos (não sei se ele tem 80 anos, eu tenho 81)... um homem quando
chega aos 80 anos o Tai-Chi diz, a concepção oriental de vida diz que nasceu de
novo, está começando tudo de novo. Novamente cantando como se fosse criança,
capaz de se apaixonar. Ter visto esse renascimento seu, que coisa pra nossa
vida, que bênção! Que maravilha!”.
Danuza
Leão escreveu outro dia que estava certa vez tomando uma chá em Paris, no Flore
(como, íntima que só ela, chama o famoso Café de Flore de Saint-Germain-des-Prés),
quando lembrou-se de uma canção da Piaf e começou a “cantarolar em silêncio”,
pra dentro de si – se é que me faço (ou ela me fez) entender. Ela estava “em
êxtase”. Mas, pra quê! Logo sentiu que rolavam insistentes lágrimas por suas
faces. E percebeu que eram lágrimas de alegria, um momento único. Uma amiga lhe
disse depois que ela havia tido uma epifania.
Danuza foi então ao dicionário procurar por epifania. Se vocês não sabem
o que é, sugiro fazerem o mesmo. De certa forma, foi o que aconteceu comigo em
janeiro ao ver no Rio o show Caravanas.
Um
alumbramento, diria Manuel Bandeira. Mas existem também alumbrados outros, como
o sujeito que confessou (è vero!) ter
visto Chico Buarque em Paris, sentado numa mesa do Café de Flore. Ele
estava numa mesa atrás daquela do Chico e ficou ali de vigia até que seu ídolo foi
embora. O cidadão levantou-se de um jato e sentou-se na cadeira que o Chico
ocupava. “Só pra sentir o quentinho do Chico”, como declarou depois. Haja!
Nunca
cheguei a tanto, mesmo porque nas raras vezes em que estive em Paris, e algumas
no “Flore” (olha a intimidade aí!), jamais vi o Chico sentado em uma de suas
mesas (quem sabe um dia?). Mas me orgulho de um autógrafo que recebi dele em
1990, no livro “Letra e Música 1”, organizado pelo escritor Humberto Werneck
(que me chama de “primo rico”, ora vejam só!). Na época, andei agarrando no gol
do time do Chico, o Politheama, daí o porquê do autógrafo: “Para o grande poeta
e goal-keeper Ronaldo Werneck, um grande abraço do center-forward Chico
Buarque”.
Comunhão
& castigo
Chico
estudou como interno no Colégio Cataguases durante o segundo semestre de 1959,
mas me lembro muito pouco dele nessa época, pois éramos de turmas diferentes:
ele estava no quarto ano do ginásio e eu já no primeiro científico. E Chico
também não tem lá muitas lembranças daquele tempo em Cataguases, mesmo porque
veio para cá de castigo. Como escreve Humberto Werneck, um pouco antes Chico e
seu amigo Joaquim de Alcântara Machado embarcaram num movimento religioso, os
Ultramontanos, que viviam ancorados na Idade Média e anunciavam para já o Juízo
Final, quando a espada justiceira dos anjos do Senhor não pouparia mais que uns
poucos eleitos. Para merecer ingresso nessa reduzida elite de sobreviventes,
Chico e seus colegas puseram-se a comungar desenfreadamente.
Nas
férias de julho de 1959, passadas na fazenda dos Alcântara Machado, os dois
amigos empreendiam caminhadas de oito quilômetros, verdadeira peregrinação,
para assistir à missa – todos os dias. Alarmados, os pais acharam que já era
demais tamanha santidade. Os de Chico foram buscá-lo e o despacharam para o
internato em Cataguases. É possível avaliar a irritação que tomava conta de sua
mãe, dona Maria Amélia, ao preencher a ficha de inscrição do filho no Colégio:
“De modo geral: influenciabilidade – desordem – faroleiro. Nas circunstâncias
atuais: falta de solidariedade humana. Desinteresse pelas ocupações próprias do
estado e da idade”.
Mas
em Cataguases o aluno Chico Buarque iria logo se destacar. Havia no pátio do
Colégio um quadro de honra onde eram colocados no final de cada mês os nomes
dos alunos com as melhores notas. Nunca o nome de um interno surgiu ali. Até
que um dia um tal de Francisco Buarque de Hollanda apareceu em primeiro lugar
entre todos os alunos do Colégio. Lembro que eu estava olhando o quadro de
honra, rodeado por um bando de alunos curiosos. Foi quando um deles soltou sua
máxima: “Também, pudera, o cara é filho do homem do dicionário!”. Contei isso
pro Chico quando voltávamos de um jogo do Politheama. Ele estava dirigindo e
quase bateu com o carro de tanto rir. Na
verdade, seu pai, o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, não tinha nenhum
parentesco com o “homem do dicionário”, o filólogo Aurélio Buarque de Holanda.
Footing & futebol
Ainda
em Cataguases, sob o pseudônimo “Bananal”, Chico escreveu crônicas para o
jornalzinho O Pirilampo, “que não guardou”, segundo Humberto Werneck. Mas eu
consegui uma coleção do Pirilampo com seu editor, Eduardo Lunardelli, e cheguei
mesmo a publicar algumas dessas crônicas do Chico (autorizadas por ele) na
edição especial sobre Cataguases que organizei em 2013 para o Suplemento
Literário Minas Gerais. Naquela época do Colégio, como nós todos,
também Chico fazia o footing nos fins
de semana na Praça Rui Barbosa – é possivel que tenha visto a Banda do maestro Rogério Teixeira desfilar pela cidade. E não perdia jogo do Flamenguinho, onde nosso colega,
o também interno Alfredo Napoleão, enfiava sucessivos gols no “Operal, Campeão
local”, o meu pobre Operário Futebol Clube. “Mui modestamente”, é claro, foi no
juvenil do Operal que eu “despontei” para a minha esporádica carreira de goal-keeper, finalizada décadas depois
num fatídico jogo do Politheama do Chico.
Meu contato com o Chico nos anos 1990 foi em
face do futebol. E deveu-se ao meu querido amigo, o compositor Carlinhos
Vergueiro, médio-apoiador e um dos destaques do Politheama, ao lado do Vinicius
França, empresário do Chico, que nasceu aqui do lado, em Leopoldina. Foi
Carlinhos quem me indicou como goleiro do Politheama. “Ali está o goal-keeper, fazendo cinema”, disse um
dia o também goal-keeper Ary Barroso,
que atuava portando impávido seus óculos – e não sei como conseguia enxergar aqueles cocos chutados do coqueiro que dava os próprios.
E
foi “fazendo cinema” que eu defendi um dia um potente tirambaço num dos jogos
do Politheama. Mas quebrei duas costelas naquela “magnífica ponte”, o que só
percebi quando cheguei em casa: o corpo quente escondera a dor. Dias depois, num
show do Carlinhos Vergueiro, eu estava em uma mesa com uma amiga quando alguém
bateu às minhas costas: “E aí, você não aparece mais no Politheama?”. Era o
Chico, o próprio. Minha amiga falou depois, com cara de espanto: “Ronaldo, o
Chico Buarque levantou da mesa dele só pra vir falar com você!”. Foi quando
disse pra ela que aquele não era o Chico Buarque que ela pensava, o compositor.
Quem veio falar comigo foi o center-forward
Chico Buarque.
Apoteose
“O
show do Chico tem sido uma apoteose atrás da outra. O público ovaciona o
talento do Chico e o outro Brasil que ele representa”, escreveu Luis Fernando
Veríssimo no Globo. E também Zélia Duncan, no mesmo jornal: “Chico andou
passando poucas e boas apenas por se colocar, mas o que nos devolve dessas
fases sombrias é um sol que, como sempre foi, ilumina e aquece. Os cães ladram
e o Caravanas de Chico passa... e sempre vai passar”.
Chico já disse que gosta de
caminhar e, "por onde caminho, nos bairros chiques
do Rio, as pessoas finas passam com seus carros grandes e gritam: ´viado filho
da puta!´, ´viado, vai pra Cuba´, vai pra Paris, viado. O único consenso é o viado”.
No show do Rio, ao cantar ´Partido Alto´ – quando diz “Mas se alguém me desafia e
bota a mãe no meio/ Dou pernada a três por quatro e nem me despenteio/ Que eu
já tô de saco cheio!” –, Chico dá uma pausa, meio que um breque. E frisa e
repete umas duas vezes: “e bota a mãe no meio”. A plateia vem abaixo.
Como
registrou o crítico Carlos Marcelo em dezembro, quando da estreia do show em
Belo Horizonte: "Vai pra Cuba!", ordenam os críticos do
cantor nas redes sociais. Pois Chico foi. Voltou de lá para o novo show com a
tabelinha entre ´Iolanda´ e ´Desaforos´, resposta enviesada aos agressores
virtuais (´Custo a
crer que meros leros-leros de um cantor possam te dar tal dissabor´), reforçada
pela inclusão de ´Injuriado´ (´Não entendo/ Porque anda agora falando de mim´).
Durante ´As vitrines´, na qual surge o vigia que tanta polêmica histérica
rendeu na linda ´Tua Cantiga´, a moça ao meu lado, não mais do que 20 anos,
tira os óculos e enxuga as lágrimas. Como ele já dizia em Jorge Maravilha:
“Você não gosta de mim, mas sua filha gosta”.
Fecho
com a voz rediviva de Vinicius de Moraes, surgida há exatos 50 anos: “Outro dia
saímos em passeata cívica, e éramos 100 mil na Avenida Rio Branco, estudantes,
intelectuais, clero, donas de casa, protegidos por um extraordinário esquema de
segurança bolado pelos próprios garotos. Uma beleza. Se alguma coisa de bom tem
que sair deste país, vai ser à base do novo movimento estudantil. E,
naturalmente, Chico Buarque de Hollanda”. (Prefácio do livro O jornal de Antônio Maria, julho de
1968).
Continua na próxima semana
8 comentários:
Grande texto, Werneck. Coisa de quem viu Chico ao vivo.
W. J. Solha
Que texto incrível!!!!!!!!
estou tentando desde ontem postar um comentário, queria dizer, que história!! que lembrança mais feliz!! que belo texto!! obrigada Ronaldo Werneck!!!
Estou maravilhado com o texto; parece que estou vendo o Chico em carne e osso. Vc, como sempre, perfeito, fluido, cirúrgico, lírico e amoroso. Aplausos!
Tanussi
Caríssimo Ronaldo,
Adorei seu texto com cara de curta metragem. Quase pude "ver" as cenas transcritas do seu relato.
Aguardando o próximo texto.
Saudades, amigo!
não dá pra trazer o chico a cataguases pra uma pelada e umas palinhas do caravanas não? ele precisa saber que agora quem tá caminhando pruma "religiosidade" radicalmente burra somos nós, e precisamos da recíproca... ...parabéns, ronaldo, pelo texto, e pelas vivências relatadas!
Ronaldo,meu amigo,assim você me mata do coração!Você trouxe o Chico pra mais perto da gente! Parabéns!
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