24 de set. de 2020

VINTE ANOS SEM BADEN POWELL

 

 “Baden-Chopin: Samba em prelúdio”

 

“Baden de branco/ e fala magra e mansa e magro/ e tão mago e leve/  como se no fim por vício/ levitasse/ como se pelas veredas de Vinicius/ seu violão voasse”. Assim eu fechava um poema dedicado a Baden Powell (1937-2000) por ocasião dos dez anos de sua morte.

Num dia do início dos anos 1990 Baden me procurou no Rio, com o projeto de um show com seus afro-sambas, que queria levar ao CCBB. Convivi com ele por algum tempo e acabamos  amigos: às vezes, ele aparecia lá em casa em Copacabana e, assim como quem não quer nada, soltava seus dedos mágicos naquele violão de nunca mais.

No dia 26 de setembro agora completam-se 20 anos sem Baden Powell e seu “violão veloz, seus acordes alucinados, alucinantes”. Volto a homenageá-lo, reproduzindo, com alguns acréscimos, o texto que escrevi quando de sua morte.

    

A BÊNÇÃO, BADEN POWELL!

RW/Cataguases, outubro de 2000

 

Era assim – com esse “A bênção, Baden Powell! – que eu fechava o show Dentro & Fora da Melodia, que escrevi há coisa de dois anos, apresentado em Cataguases no Anfiteatro do Museu da Eletricidade no Natal de 1998. E foi no mesmo local, semana passada, durante uma apresentação do grupo de chorinho Patápio Silva, que me deu uma vontade súbita de pedir de novo e para sempre a bênção de Baden Powell. Era sexta-feira, uma “sexta básica”, e Baden morrera no Rio de Janeiro há apenas dois dias.

A meu lado, o baterista Afonso Vieira – o prezado amigo, parceiro e compadre Afonsinho, que se apresentara várias vezes com Baden na Europa dos anos 1970 – ouvia com ares de grande satisfação o grupo de chorinho cataguasense. Eu confesso que estava meio alheio, olhando o rapaz do violão e pensando na morte da bezerra, quer dizer, do Baden, quando o grupo iniciou aqueles acordes rápidos e guerreiros de Berimbau, exatamente a música que eu usara para terminar meu show. Afonsinho acenou-me, polegar pra cima, e cantarolamos juntos, baixo-baixinho, a canção do Baden com o Vinicius, eterna como eles: “quem de dentro de si não sai/ vai morrer sem amar ninguém”.

"Baden-Vinicius: Cantando até o sol raiar"

Berimbau

No dia 7 de setembro de 1964, Vinicius de Moraes escrevia carta para Tom Jobim, direto do Porto do Havre:  “Tomzinho querido, deixei Paris para trás com a saudade de um ano de amor e pela frente tem o Brasil, que é uma paixão permanente em minha vida de constante exilado. A coisa ruim é que hoje é 7 de setembro, data nacional, e em nossa Embaixada há uma festa que me cairia muito bem, com o Baden mandando brasa no violão. (...) Estou doido pra ver você e o Carlinhos (Carlos Lyra) e recomeçarmos a trabalhar”.

“Imagine que este ano foi praticamente dedicado ao Baden, pois Paris não é brincadeira. (...) Fiquei muito contente com a notícia do sucesso de Berimbau aí no Brasil: dizem que estão tocando a musiquinha pra valer. (...) Lembro-me tão bem quando fizemos o samba há coisa de três anos, por aí. Eu disse a Baden: isso tem pinta de sucesso. E ficamos cantando o samba até o sol raiar: Quem é homem de bem não trai/ o amor que lhe quer seu bem/ (...) / Quem de dentro de si não sai/ vai morrer sem amar ninguém”.

São esses octossílabos os meus versos preferidos entre todos os que Vinicius escreveu para suas inúmeras parcerias: “Quem de dentro de si não sai/ vai morrer sem amar ninguém”.

  

Benil & seu cast

Nunca mais em toda a minha vida vou ver um violão veloz como o de Baden Powell. Nunca mais a agilidade de seus dedos mágicos, aqueles acordes alucinantes e inesperados. Nunca mais.  Ficamos amigos por conta de um texto que escrevi sobre ele a pedido do compositor e empresário Benil Santos. Deu-se que há muitos, muitos mais de trinta anos atrás, lá pelos inícios dos anos 1970, fui contratado por Benil para editar um catálogo com seu cast de artistas.

Ele queria que eu fizesse não só o texto como a programação visual: quer dizer, Benil me pedia um produto que “vendesse o seu peixe” em todo o país. E olha que eram peixes graúdos os de sua rede. Na época, ele tinha em suas mãos o melhor elenco da MPB, gente como Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Maria Bethânia, Nara Leão, Carlos Lyra, Paulinho da Viola, MPB-4, Gonzaguinha, Milton Nascimento, Clara Nunes e outros, e outros, inclusive Baden Powell.

Varei várias noites viradas em vários dias. Em vão. Quando os textos estavam todos prontos e muitas fotos já produzidas para o catálogo, o Benil me conta num almoço melancólico no velho Zeppelin de Ipanema – salvo somente pelo ótimo scotch – que acabara de se desfazer de todo o seu maravilhoso cast, ficando apenas com Bethânia.

Mas queria que eu editasse um jornal-toalha pra ele. Jornal-toalha? “É, isso mesmo – diz Benil, talvez influenciado pelos famigerados chopnics do Jaguar, colocados num painel atrás de nós –, um negócio formidável que eu vi nesta última viagem (Benil estava voltando do Festival do Midem, em Paris, onde fora acompanhando Clara Nunes): o sujeito vai almoçando, lendo as notícias e vendo os anúncios, estampados no papel-toalha sob seu prato. Um espetáculo!”.

Claro que nosso jornal-toalha não saiu da mesa do Zeppelin. Mas “a novidade” acabou sendo adotada por vários bares que serviam refeições ligeiras: os jornais-toalha iriam proliferar mais tarde nas chamadas “lanchonetes”  – palavra que Caetano colocara na canção Baby, embora a detestasse (a palavra, não a canção).

O catálogo do Benil não saiu, mas a feitura dos textos acabou me aproximando da maioria dos artistas – e com alguns deles cheguei mesmo a fazer certa amizade. Com o Baden, não. Na época, ele estava morando na Europa e acabamos não nos encontrando. Baden foi dos poucos que não chegou a ler os textos que fiz, um para cada artista. Só vinte anos depois, já no início dos anos 90, veria o que escrevi para ele.

 


 

Afro-sambas no CCBB

Foi quando, em 1992, um amigo do Baden me procurou no Centro Cultural Banco do Brasil, querendo falar sobre um “projeto”. Maior mistério: Baden Powell queria segredo e mandava perguntar se não poderíamos nos encontrar em outro lugar, quem sabe na minha casa. “Dito e feito”. como diria o Fernando Sabino da década de 80, em sua coluna do Globo. No outro dia, abro a porta prum Baden Powell meio tímido, ressabiado, o que percebi logo depois ser parte de sua personalidade.

Baden queria reeditar os afro-sambas – as matrizes, de sua propriedade, haviam sido recentemente remasterizadas em Paris – e fazer um grande show de relançamento no CCBB. Acontece que a agenda do Centro Cultural era, e ainda é, fechada com grande antecedência. Não havia espaço na programação – e Baden tinha pressa.

A partir daí, nós nos encontramos várias vezes – na minha casa, na dele, no velho Garota de Ipanema e, quase sempre, no Antonio’s –, procurando ajustar datas e adequar o projeto, que acabei reescrevendo enquanto a Sílvia, mulher do Baden, cuidava de acertar o orçamento. Só então mostrei pro Baden o texto que havia feito para ele, aquele do catálogo do Benil, cujo título era “O Violão Epiceno”. E não me perguntem o porquê, pois naturalmente não me lembro mais.

Talvez, quem sabe, porque Baden soltava suas onças, os onças machos, sobre as cordas do violão, e nelas se enroscava como só as onças fêmeas se enroscam. Sabem vocês, não? Epiceno: o onça, a onça. Pois é, minha gente, na época em que escrevi o texto eu era realmente movido a onças de uísque, várias onças. Muito que bem. Baden releu várias vezes e ficou nitidamente impressionado – e de novo não perguntem o porquê. Tanto que pediu pra Sílvia botar o meu texto como apresentação do book que divulgava o seu trabalho. Acho que ainda hoje lá está. E eis que aqui está, e agora.

 


O violão epiceno

     Como os  músicos, também as pessoas se dividem em comuns e eruditas. Com uma ligeira colher-de-chá para os comuns de dois, ou epicenos. E tanto para uns como para outros, cabe a inversão de lugares & valores: o que aqui é coisa de gênio, pode ser banal mais adiante & etc. Mas num ponto as pessoas, como os músicos, estão sempre de acordo: Varre-e-Sai, cidadezinha do Estado do Rio de Janeiro, conseguiu a façanha aparentemente inacreditável de dar ao Brasil um compositor e virtuose de projeção internacional. E ao bravo e mui nobre poetinha Vinicius de Moraes a chance de fazer uma das mais profícuas parcerias da MPB.

      Desde garoto ele tirava do violão os acordes mais incríveis, com espantosa agilidade. E a intimidade entre homem & instrumento cresceu a tal ponto que hoje os dois chegam a se fundir, a se enroscar quase pecaminosamente a cada contato, a cada reaproximação, como se sentissem a falta do outro.           Dois amantes que se encontram e se integram e se entregam insaciáveis, entre fragmentos de sons brilhantes. E é como dois seres que se amam a união entre Baden Powell e seu instrumento: mãos que machucam e acariciam, mandando ver, num só repente, do afro-samba a Johann Sebastian Bach.

 

Drinques finos no Antonio´s

Dos muitos e “epicenos” meses de nossa convivência naquele ano ficaram várias histórias envolvendo suas músicas, além de extraordinárias e inesperadas noitadas de violão. Vejam que loucura: Baden não se apresentava desde que voltara ao Brasil, estava “seco” pra tocar e acabava invariavelmente, para minha alegria e de algumas amigas de fé, chegando lá em casa com o famoso violão a tiracolo. Lembro particularmente de uma noite em que ele acompanhava empolgado a voz de minha amiga Neti Szpilman e o “diálogo” entre os dois era tão perfeito que chegamos, ideia do próprio Baden, a pensar num espetáculo de voz & violão.   Ficou no pensamento, mas daria um belo show – e como!

Assim, naqueles inícios dos anos 90 – e até sua volta para a Alemanha, vários meses depois – Baden e eu nos encontramos quase todos os dias: na minha casa em Copacabana, na casa dele na Joatinga, no Garota de Ipanema, no Antonio’s, num súbito, misterioso e inacreditável botequim de Jacarepaguá.  Em todos os botequins dessa vida... e de cara limpa. Baden não mais bebia, pelo menos naquele tempo: nem eu, naquele tempo e ainda agora.

Ficaram também as tardes no Antonio’s, regadas a drinques finos. Modestamente, uma velha invenção de minha lavra, que está fazendo dez anos e que Baden adorou (também ele havia parado de beber). Uma bebida plural, se me explico bem. Uísque sem uísque. Sim, um copo alto de uísque, mas sem uísque, regado a guaraná diet, gelo e água tônica. Na dosagem certa, os drinques finos têm a cor exata do melhor scotch, com a vantagem de um sabor supimpa e de o freguês estar permanentemente livre de qualquer vestígio de ressaca.

E foi numa dessas tardes no Antonio´s, nós dois a nos encharcar de drinques finos, que apareceu o ator Lúcio Mauro: “Ué, Baden, voltou a beber?”. Baden fez cara de tacho, mas logo emendou: “Pois é, tava com saudade, tô tomando esse uisquinho, mas só esse”. Lúcio segue para sua mesa, enquanto Baden vira-se pra mim, risonho: “Não é que o troço tem mesmo cara de uísque?”. 



Baden no meu sofá 

Claro que Baden não tocava nos botequins em que íamos, mas lá em casa. E minhas amigas Ana Luiza Fonseca e Bel Cabral até agora devem estar sem entender o que viram naquela noite: Baden Powell sentadinho no meu sofá, mandando ver no violão. Ou na casa dele, ou às vezes de algumas amigas, como a de Neti Szpilman – onde os dois andaram, como já disse, fazendo um dueto diabólico –, ou numa festinha chez Cely Bianchi, empresária da Rio Jazz Orchestra. Baden não tinha shows marcados e, mais do que isso, estava muito a fim de tocar. Imaginem só: foi o próprio Baden quem me pediu para levá-lo à festa da Cely, que não era a Campelo, como acreditava meu inacreditável amigo Zé Maria de Abreu, e muito menos de arromba.

Eu estava sem carro e fomos, Cely e eu, pegar o Baden na Joatinga. Logo estávamos subindo uma enluarada Estrada das Canoas: eu, Baden & violão socados no velho e charmoso fusquinha conversível da Cely, cantando “noite alta, céu risonho” sem que Cely acreditasse no que (ou)via. Já na casa da Cely, Mr. Powell não se fez de rogado: antes que alguém pedisse, já empunhava o violão e durante mais de uma hora mandou ver, de Bach a Baden, com direito a Pixinguinha & tudo o mais. Meses depois, encontrei uma das amigas da Cely na cidade, ainda atônita e fascinada com o que ou(vira) naquela noite.

  

Canção de Natal

Quem de dentro de si não sai/ vai morrer sem amar ninguém”. Como já disse, esses octossílabos são meus versos preferidos entre todos os que Vinicius escreveu em suas canções. A vida dá muitas voltas, mas de dentro de si não sai, pois acaba no mesmo lugar. Lá em casa, numa noite dos anos 1990 – Copacabana, café, cigarros caretas –, o próprio Baden Powell pegou o violão e começou a se lembrar do Vinicius, dedilhando os acordes de uma canção inacabada. Contou-me que o poeta morrera sem colocar letra naquela música. Também eu tentei letrar a música do Baden, uma canção natalina. Qual o quê! Saiu um poema, “Velhas Vozes”, que vai a seguir, mas neca de letra pra canção. Pois é, o Baden também acabou morrendo, e nossa parceria não aconteceu. A canção ficou mesmo sem letra, mas ela é tão bonita que nem precisa.

 

VELHAS VOZES    

a Baden Powell

sim

não mais

sinos

meninos

velhos

uais

 

sonhos

címbalos

símbolos

 

sim

não mais

presentes

no passado

hinos

janelas abertas

meninos

na memória

 

sons

sinos

sapatos

 

nós

nozes

nós na garganta

velhas vozes

 

hoje só

só sons

estranhos

martelando

a madrugada

 

janelas fechadas

ruídos rompendo

interrompendo

a manhã

 

geladas nozes

veladas vozes

de outroragora

sambam soltas

entre as frestas

 

da janela

de nunca

de jamais

entre as festas

 

velhos

tantos

anelos

elos

tontos

 

tônicos

natais atônitos.

 

 

Baden & Barouh: SARAVAH!


 

Barouh, Formosa, Bofetada: Saravah!

Voltando aos bons tempos daqueles drinques finos, um dia nosso papo no Antonio’s acabou chegando a Pierre Barouh, o ator-compositor francês que fez a versão e gravou o Samba da Bênção para o filme Um Homem, Uma Mulher (1966), em que também atuava.

Plagiando o Vinicius de Moraes daquele “o branco mais preto do Brasil”, Barouh se dizia “o francês mais brasileiro da França”. Ele esteve depois no Brasil, em 1968, quando  – ciceroneado pelo próprio Baden Powell – rodou o ótimo documentário Saravah, com Pixinguinha, João da Baiana, Clementina de Jesus, Paulinho da Viola, Bethânia e o próprio Baden, que canta com ele O Samba da Bênção.

Barouh e Baden acabaram muito amigos e eu disse ao Baden como gostava das canções que Barouh fizera para o filme de Claude Lelouch, principalmente uma em parceria com Francis Lai, que dizia qualquer coisa como A l’ombre de nous/ Restera toujours/ Au noms de l´amour/ Un goût d’éternité. / Au nom de notre amour/ Une ombre va rester/ Ces soleils.../ Ils sont si chauds/ Ils sont si forts/ Qu´ils nous brûlent/ Et qu´ils nous devorent/  Encore, encore, encore. Ou coisa parecida, pois – encore, encore, encore – eu cito de cor. Ainda hoje me agrada muito o jogo de palavras da canção e aquela imagem do “gosto de eternidade”, perfeita dentro do filme – onde Barouh é o marido e stunt-man morto em cena, cujas peripécias e canções são lembradas pela viúva interpretada por Anouk Aimée (na vida real, ele foi casado com Anouk, minha ídala felina e felliniana). 

Baden-Vinicius: samba, soro & uísque


De Pierre Barouh, Baden saltou quase que naturalmente para seu parceiro Vinicius de Moraes. Ele falava com muita saudade do poetinha, das canções, dos porres que tomaram juntos, dos pertinentes “recolhimentos” estratégicos-hospitalares. “Formosa”, por exemplo, o antológico samba da dupla, surgiu da visão de uma bela passageira do trem noturno onde eles se encontravam rumo a um show em São Paulo, mas terminou de ser criado na Clínica São Vicente, onde os dois estavam internados. Desintoxicação da pesada, à base de soro, glicose e uísque: nada de drinques finos.  

Baden me contou que ele e Vinicius ficavam cantando o samba noite aforadentro na Clínica, a pedido de um paciente do quarto ao lado, que estava adorando a tal Formosa:A gente nasce, a gente cresce/  A gente quer amar / Mulher que nega/  Nega o que não é para negar/  A gente pega, a gente entrega/ A gente quer morrer/ Ninguém tem nada de bom/ Sem sofrer/ Formosa mulher!

Engraçado que sem saber disso, e sem querer imitar a grande dupla, anos depois também eu fazia “recolhimentos” similares. Após seguidas sessões de uísque, costumava tomar soro num hospital que existia em Ipanema, na Farme de Amoedo. Glicose na veia – e devidamente recuperado –, eu saía de lá, atravessava a rua e continuava meu uisquinho no Bofetada, o tradicional botequim daquela famigerada rua. Um dia, o enfermeiro que me atendia passou por lá e não acreditou no que via: quase tomei uma bofetada. Bem que ofereci o uisque, mas “o de branco” não aceitou: acho que só tomava soro.

 

No Metropolitan a última vez 

No início de 1993, consegui um espaço pro Baden no CCBB, num projeto que juntava violões, verão, sambas e Rio de Janeiro. Tudo certo, todo mundo adorou a honra de participar ao lado de Baden Powell, ídolo da maioria dos artistas que iriam se apresentar no projeto. Já começávamos a divulgação quando a Sílvia me ligou dizendo ter recebido uma proposta irrecusável para uma temporada do Baden na Alemanha. Foi assim que o show dos afro-sambas acabou “sambando”. Paciência: encaixamos em seu lugar Luiz Melodia e Jards Macalé – pois é: só mesmo uma dupla, e que dupla!, pra ocupar o lugar de Baden, que valia por dois, ou mais – enquanto “o violão epiceno” voava pras Oropas.

Em 1997, esbarrei com Carlos Lyra na Feira de Ipanema e Carlinhos me convidou para um show que iria fazer no Metropolitan, um tributo ao Vinicius, com Baden, Toquinho e Leila Pinheiro. Foi então, naquela temporada em homenagem ao seu parceiro Vinicius de Moraes que encontrei-me, no camarim do Metropolitan e pela última vez, com Baden Powell. 



Coincidência: como na semana passada aqui em Cataguases, o Afonsinho também estava comigo naquela noite no Metropolitan, e sentimos a mesma coisa: estava ali um Baden de fala mansa e extremamente baixa, um Baden como sempre de branco e muito magrinho que parecia montar em seu violão para seguir ao encontro de Vinicius. Foi essa lembrança que nos emocionou tanto, quando os meninos do chorinho Patápio Silva o homenagearam com aquele maravilhoso Berimbau que ouvimos semana passada.

Nos últimos tempos, voltado para as coisas do astral, um hiper religioso Baden não mais cantava o Samba da Bênção, pois, ao contrário de Vinicius, evitava pedir a própria. Mas, como Vinicius (e os dois devem estar fazendo – perdão, Baden! – o diabo nas alturas) eu não resisto e peço “A bênção, a bênção, Baden Powell/ Amigo novo, parceiro novo/ Que fizeste este samba comigo/ A bênção, amigo!”. A bênção, a bênção, Baden Powell, que fizeste com sua lembrança nascer este texto que em mim se entranhara, e que agora surge sem pesar, mas pleno de canto e alegria, pois “É melhor ser alegre que ser triste/ Alegria é a melhor coisa que existe/ É assim como a luz no coração”. Este texto que nasce de mim para ir por aí – e contigo. A bênção, amigo!

 

Baden-Baden 



De quebra, e somando-se a essa homenagem, um poema que escrevi quando dos 10 anos de sua morte.

 

BADEN-BADEN

a Baden Powell

 

só restam rastros de paixões que explodem

baden baden baden

pólvora

violão-de-outono

intento

violão-verlaine

longo-lento-lamento

 

violão veloz assim jamais

jamais assim violão-devir

nunca

nunca mais ao vivo

ver

ouvir

ou/ver

 

tudo tão íntimo assim

baden-violão

um os dois

irmanados

insanidade

complacência

 

e logo

em pecado

enroscados

 

e pecado

não havia

dois amantes

a se integrarem

a se entregarem

em sons só poesia

 

nunca

nunca mais

acordes alucinados

alucinantes

inesperados

nunca

nunca mais

 

baden de branco

e fala magra e mansa e magro

e tão mago e leve

como se no fim por vício

levitasse

como se pelas veredas de vinicius

seu violão voasse

 

Ronaldo Werneck

Cataguases, 2010

 

 

 

 

8 de set. de 2020

Lina Tâmega Peixoto: palavra & perenidade


       A morte de Lina Tâmega Peixoto no último 1º de setembro não passou em branco: logo chegavam textos homenageando a poeta, vindos de vários lugares: Brasília, Rio, Ouro Preto, Cataguases, Lisboa. Vários e afetuosos os saudares e louvações de seus muitos amigos.

De Brasília, publicava ainda no dia seguinte a poeta Angélica Torres Lima (que me disse ter passado a noite escrevendo, ainda chocada com a morte de sua amiga):  “Tão significativo quanto deixar como último legado um livro intitulado Prefácio de Vida é partir dela, a vida, no primeiro dia de setembro, quando o Cerrado se derrama em flores... É como dar um toque mágico ao momento, para todos tão difícil e sofrido. É como fazer um truque com imagens, que só poetas de primeira grandeza, como Lina Tâmega Peixoto, são capazes de fazer sem ter planejado. Lina pôs ontem de luto a poesia brasileira”.

De Ouro Preto, o ex-Secretário de Cultura de Minas, Angelo Oswaldo, me enviava email: “Minha solidariedade. Os Peixoto parece que vieram de Portugal (os Botelho, dos Açores). Tâmega é o rio que passa em Amarante e junto à velha ponte postava-se São Gonçalo. Mas Lina não era portuguesa, senão mineira de Cataguases tocada pela poesia verde banhada nas águas do Pomba espraiadas no lago Paranoá. Vamos saudá-la na perenidade de sua palavra poética”.

 

Do Rio, um totem ontológico


Do Rio, o poeta Tanussi Cardoso me mandava pelo zap: “Lina era uma das nossas maiores poetas, cuja discrição silenciosa impediu que seu nome e sua poesia tivessem o reconhecimento merecido. (...) O uso  inteligente das metáforas, inversões, metonímias; das palavras como um totem ontológico radical; desta íntima “respiração” entre elas; desse silêncio loquaz que capta  a memória e o vazio das coisas, e, ao mesmo tempo, o seu barulho – são de uma sensibilidade rara em nossa poesia”.

 

Joaquim Branco, Lina e RW: lançamento de
Alinhavos do tempo (Cataguases, 2019)

De Cataguases, o poeta e crítico  Joaquim Branco: “Ontem (01-09-2020) recebi a notícia da morte de Lina Tâmega Peixoto (1931-2020), num hospital de Brasília. Fiquei muito consternado, e mais ainda, pois já havia tomado conhecimento do que acontecera ao poeta Sebastião Carvalho. E com o Pedro (seu irmão, o poeta P.J. Ribeiro), que falecera no final de março, os fatos somados tomaram vulto a ponto de Zeca Junqueira comentar que a cidade de Cataguases se despoetizava... Não encontrei melhor expressão para o momento. Entre as possíveis damas da poesia cataguasense há uma prima dona: Lina Tâmega Peixoto.

“Ler um livro de Lina – escreveu ainda Joaquim – requer tempo. Não o tempo normal que se gasta para leituras cotidianas, mas um tempo para se concentrar mais, pois ele exige do leitor mais do que a fruição de palavras que vão puxando palavras. Seu discurso requer um silêncio dentre desse tempo para se buscar. (...) Fui dirigindo meu voo por penetráveis porém surpreendentes vias – que é assim o caminho dos bons livros – deparando ora com o recurso da metalinguagem, ora com a difícil música de alguns versos ou com a ligeireza do pensamento”.

O mesmo Joaquim Branco – meu grande amigo e companheiro de aventuras literárias que já vão para mais de meio século – citado por Lina num dos e-mails que ela me enviou, com a poesia de sua imensa delicadeza, coisa de eterna lady, de primeiríssima dama da literatura:

“Caríssimo amigo: acabei de ver o que se maravilha da vida. E estive aí no Centro Cultural Humberto Mauro para os 90 anos da Verde e escutei você narrando Humberto Mauro e falando no Mac. Voltarei depois para ouvir mais coisas de seu gesto de coração de poeta e mais, pedaços de sonhos que modificaram seu acordar em Cataguases. A cidade precisa de pessoas como você e o Joaquim, capazes de por à superfície a memória definindo o Rio Pomba e cheia de estrelas refazendo a luminosidade do pensamento. Não pude deixar de registrar aqui as emoções da inteligência que tive. Esta a mais perfeita e profunda que vive no espírito. Peço que receba meu abraço de afeto por suas palavras e que o coloque na jarra como uma flor. Lina”.

 

De Lisboa, um sopro de humanismo


De Lisboa, o também poeta e crítico cataguasense Ronaldo Cagiano, que vive atualmente na capital portuguesa e que lá esteve presente ao lançamento de Alinhavos do tempo em janeiro de 2019, enviou a meu pedido o seu depoimento:

 “Caro Ronaldo, foi uma ótima noite o lançamento da Lina na Casa do Brasil aqui em Lisboa: bom público, apresentação da escritora Vania Chaves, um belo ensaio lido por uma professora da Universidade de Lisboa e depois as palavras da Lina. (...) Foi um evento marcante, principalmente porque reuniu amigos, colegas, leitores e conterrâneos de Lina e todos tiveram oportunidade de percorrer esse panorama sobre sua vida e obra, buscando a gênese de seu processo criativo, desde os primórdios da estudante que criou com Francisco Marcelo Cabral a revista Meia-Pataca; do estímulo do tio-poeta Francisco Inácio Peixoto; do sopro literário de Hernâni Cidade, um primo materno e um dos reconhecidos críticos literários de Portugal que, do outro lado do Atlântico, trouxe-lhe informações, conselhos e dicas técnicas sobre o fazer poético; das influências e amizade de Cecília Meireles, da presença de Cataguases e Brasília na sua trajetória existencial e criativa, dos tantos tempos, entretempos & alinhavos que constituem sua tessitura e culminam no polimento estético de sua arte”.

 

Lina, RW e Ronaldo Cagiano no lançamento de 
meu livro Momento Vivo: Lisboa, 24.10.2019

“A poesia de Lina – continua Ronaldo Cagiano em seu depoimento – chegou a Lisboa  como um prefácio de vida, abriu-se aos leitores, como as asas da cidade que escolheu para seu escreviver. Sua poesia – que tem uma profunda inflexão imagética e sensorial, carregada de símbolos e metáforas, cristalina e diáfana na forma e na linguagem –,  sem dúvida a coloca entre as melhores vozes da poesia que se faz em todo o mundo lusófono, uma palavra carregada de simbologias e afetos, que é fruto de um esmerado senso de observação do mundo, das coisas; de captura da memória e da geografia ancestral; que, entre o rigor e a sofisticada elaboração, faz uma ponte dialética entre o lírico e o metafísico, entre o passado e o presente, com um sopro de inegável humanismo”.

 

Lina lê-se em ardósia


Antes de nossa recente troca de e-mails que vem a seguir, fecho com um poema que dediquei à minha agora saudosa amiga, publicado em meu livro minerar O branco, de 2008.

 

Lina lê-se em ardósia

A memória vai buscar uma menina de treze anos,

improvisando uns versos que teimavam em ser música.

De súbito, ela descobre que tocava a poesia.

Lina Tâmega Peixoto


tâmara lina

pomar de minas

turmalina

o fio tâmega

o xis de peixoto

seixo

ao sol

do pomba

                                  

lina-horizonte

peixoto

do tâmega

feixe-facho

de delicados dáctilos

ânfora de anapestos

                

lina lê-se em ardósia

proeza-poesia

proesia toda-prosa

fina escrita e valia

 

Ronaldo Werneck

Cataguases/agosto/2008

 

  

LINA: OS ÚLTIMOS E-MAILS
 

RW, Lina e Francisco Marcelo Cabral: Brasília, 2008


Sobre um texto meu que não consigo identificar – 17.03. 2016

Querido amigo: li, colocando na língua, cada palavra de seu longo texto, já que não aprecio bebida, de modo geral. Pois seu texto foi um vinho do Porto, bebido aos goles lentos. Me emocionei com sua admirável memória afetiva, onde agrega os amigos e as experiências que viveram, de forma intensa,  e que me parece, ajudaram a  formar sua identidade humana e poética,  seu jeito de contemplar as coisas das coisas, e que explodiram,  anos mais tarde, com uma força e balbucios de beleza e ternura, em expressiva e sensível  criação literária, tanto em prosa como em poesia. Vou ler tudo de tudinho com muita atenção, sofrimento, alegria e redenção. Abraços, Lina.

 

EMAILS DE 2019

Sobre meu post quando do prêmio Camões para Chico Buarque – 31.05.19

Como sempre, sua crônica, ou melhor, seu testemunho no mundo, é um espaço de prazer. Aquele prazer que Roland  Barthes nos ensina. Poucas vozes se levantaram para saudar o prêmio Camões, concedido ao Chico Buarque. Do Governo não se esperava mesmo nenhum gesto, mas da intelectualidade, até da fatia da música, não li quase nada. Penso que sou eu que não desvelo notícias, de tão absurdo este fato. Enfim, Ronaldo, seu texto é preciso, cheio de nervos de encantamento. Uma leitura feita de horizontes de percepção e ordenança de significações. Abraços diversos, Lina.

Sobre meu texto “Catawood”, publicado na letra “C” da revista portuguesa “Linguará”, e a palestra que faria (e fiz) no lançamento em Belo Horizonte06.07.19

Boa noite, querido amigo: li, com gostosura, seu texto de C, com tantos substantivos que mais parecem atributos. Há uma leveza na linguagem que é um tom constante em  sua escritura. Outros textos que me manda trazem esta margem que contorna os significados de uma nuvem que esvoaça, lenta, macia, mansa. Que sua apresentação em BH seja uma alegria enorme e que a noite seja um sol de sucesso. Muitos e inexplicáveis abraços, Lina.

 

Quando do meu post sobre o livro Essa gente de Chico Buarque – 07.12.19

Querido amigo: seu texto coça a inteligência do leitor e faz cócegas na emoção. Li suas palavras como se fizesse uma descoberta de mim mesma  por meio do Chico Buarque/Duarte. Sempre me impressiona seu discurso narrativo seco e úmido ao mesmo tempo, as imagens revelando um fino e sutil humor de quem vê o mundo mordendo o rabo. Parece que endoideci. A realidade parece. Tudo parece sem ser igual. Com uma alegria gorda e macia, meu abraço exaustivamente grande para vc. e Patrícia. 

Lina: palestra sobre Cecília Meireles - Cataguases,
abril de 2017


EMAILS DE 2020

Ao chegar de Lisboa – 18.01.20

Já estou em Brasília, enforcada de calor. Vim enrolada em peles extras para isolar o frio e aos poucos me desnudei de mim. E, com calma e horizontes, li o texto do Angelo Oswaldo sobre seus poemas em Momento Vivo. Bem penetrante e explicativo, ressaltando as simbologias-chaves que permitem, a nós leitores, abrir as palavras. Fico feliz em conhecer a repercussão  de seu fazer poético, da amplidão geográfica que eles habitam. Muitos e fidalgos abraços.  

Quando de uma postagem sobre a exposição Fellini no MAM28.01.20

Suspiro, Ronaldo!!! Quisera ter estado no Rio, no mesmo dia em que foi ao Museu, e acompanhar sua visita ao Fellini. Abraços diversos e urgentes, Lina.

 

23.04.20

Soube da morte do P. J. Ribeiro pelo seu texto. Estou atônita e confusa. Liguei para o Joaquim e consegui falar. Depois, mais tarde, entro em contato com vc. Com meu coração, Lina 

 

Sobre o  poema “A peste pede passagem” postado em meu blog – 30.04.20

Meu amigo: fiz um comentário, mas não sei resolver colocações exigidas. Assim, coloquei anônimo. Se você recebeu, me avise. O comentário começa: "O poema interroga... e termina:  pela consciência do prazer". Eis o comentário que Lina postou no meu blog: “O poema interroga a continuidade, a importância, a impotência, o horizonte do homem na vida. De repente, o poema desfolha-se. O ritmo, que torce a camada fônica, fragmenta, com encadeamento sedutor, a tensão dos múltiplos significados. O tema da peste configura, pela estrutura da substância poética, um aturdimento e uma vertigem apreendidas pela consciência do prazer”.

Quando postei textos sobre Elisete e Nelson Cavaquinho – 21.06.20

Querido amigo: também estive numa apresentação da Elisete e do Nelson Cavaquinho nos por aí dos 80. Lembro da sensação de euforia e prazer que senti. Um passado sem "rugas". Uma delícia rever tudo isso no seu excelente texto. Inumeráveis abraços, Lina.

 

Sobre a morte do Pedro Branco, o P.J. Ribeiro – 24.06.20

Querido Ronaldo: teu texto foi uma pancada  que atingiu uma pálida e triste alma, a que me veste, até hoje. Foi nela que li o avesso da mentira, a da morte do P.J. Ribeiro. Seu texto foi armando palavras e nelas  deitou nosso amigo, com doçura e sussurro de dor e saudade. Consegui falar com o Joaquim e lhe dar meu abraço feito com muitas palavras. Muitos abraços, Lina.

Sobre o envio da Revista Chicos, que publicara seus poemas  27.06.20

Querido amigo: foi um respirar profundo a surpresa de ver a revista Chico's com eu lá dentro. Foi a primeira vez que li a revista, mas sabia que ela existia. Como nunca entraram em contato comigo, ficava, burramente, atrás da porta, na quina da esquina. Conheço o Emerson há tempos, parece, inclusive, não sei, ou sei, talvez, penso que, esteve no lançamento de meu livro aí. Verdade? E veja, sou um gomo da revista, que vou saborear depois. Ainda não olhei, com nitidez, as palavras que falam de minha poesia, (conheço bem o ritual bibliográfico) porque vim, primeiro, lhe agradecer o  envio do texto, de tudo. Anotei o email de Chico's e vou, ainda hoje, escrever para o Emerson e José Antônio. Às vezes viro um arquipélago, ilha que sou. Lanço ponte e barco para ir à sua ilha e religar, ou relumar ou relumbrar as fronteiras da poesia de nossas vidas. Com um gordo e solar abraço, Lina.

 

 Quando da postagem dos 50 anos do Festival de Música de Cataguases05.07.20

Sabe, meu amigo, que já havia lido esta memória do Festival em Cataguases. Não me lembro quando. Nesta época, estava em Lisboa estudando as origens do lirismo peninsular, mas soube lá desta grande aventura de vc e Joaquim. Que tempos maravilhosos aqueles! A leitura do texto redobrou a fartura de lembranças que são asas leves do encantamento. E como vc escreve bem e firme o que são sensações e friúmes do sentir. Uma jardineira de abraços. Estou olhando para as miudinhas cores roxas do canteiro que estão com olhos arregalados. 

Quando respondi, dizendo que “friúmes” me lembrava Mário de Andrade07.07.20

Curioso, Ronaldo, lembrar Mário de Andrade pelo nome "friúmes " Me veio à memoria (sei de cor) o poema “Conversa piedosa” do tio Francisco (o escritor Francisco Inácio Peixoto) em referência a Cristo: 

Madalena quando enxugou os seus pés

Com os cabelos dela, você não sentiu

Uma espécie de friúme no seu corpo?

Considero este poema belíssimo. Saudades de todos e de todas as memórias. 

Ao lhe enviar a introdução de meu novo livro, “Cataguases Século XX – antes & depois” e dizer que iria colocar um texto dela sobre Francisco Inácio Peixoto08.07.20

Acabei de ler sua introdução e lendária, novamente, minha  observação sobre seu poder de escrever uma linguagem firme, lúcida, objetiva, voltada para a inteligência especulativa, e a do bem-querer saber. Acho que melhor do que o texto sobre o Aprendizado (sobre Francisco Inácio Peixoto, que eu sugerira) ... seria este que lhe mando. Resultado de uma longa pesquisa na Fundação Casa de Rui Barbosa (cartas do Guilhermino) e de conseguir, em Porto Alegre, as cartas do tio Francisco. Consegui todas e guardo este acervo, com feroz carinho. Veja o que acha de minha sugestão. Se quiser, revejo o texto, para perceber algum cisco. Com abraços diversos, Lina.

Lina e a poeta Fabíola Fabyz na Feira do Livro de 
Brasília (15.06.2019)

Quando lhe enviei um texto que havia escrito sobre Francisco Inácio Peixoto – 11.07.20

Obrigada, amigo, por levantar minha memória do chão. As pegadas do que faço vão se apagando aos poucos, porque não sei, como você, guardar as palavras numa gaveta de ar. E lhe conto sobre o conto "Bapo". Ele foi inspirado num fato que aconteceu com os peixinhos vermelhos de  minha mãe. Numa manhã, um dos peixes do tanque amanheceu torto. Como era costume, chamamos tia Eponina que sabia consertar tudo, asa quebrada, osso partido, mau-olhado, enfim, mazelas, defeitos e virtudes de bichos e de gente. O resultado da consulta resultou em envolver o peixe com ataduras e prensar o corpinho do peixe, com dois palitos de picolé para que voltasse à forma. Evidente que o peixe afundou e morreu. Vou reler seu artigo sobre tio Francisco. Tudo que é sombra dele, em mim e nos outros, se incendeia.

Com o melhor e mais azul das lembranças, Lina.

Ao ler uma postagem que fiz sobre os 110 anos de Rosário Fusco ­– 18.07.20

Já li este interessante e instigante texto sobre o Fusco, inclusive a entrevista no Pasquim. Há muito vc me mandou, mas de qualquer jeito reli com prazer e sabor. Abraços para vc e Patrícia.

 

Ainda sobre a postagem dos 110 anos do Fusco – 23.07.20

Pois então, Ronaldo, o texto estava à superfície dos olhos e reli, porque já havia lido nem sei há quantos meses passados. Penso que lhe escrevi na ocasião, se a memória sobrevoa as palavras. Considero este texto sobre o Fusco uma excelente  página de uma narrativa memorista que lhe pertence, mais do que a história sobre  o Fusco. Dele, tenho recortes de papos longos, na casa da mãe, com uma garrafa de pinga na mesa. E em outros encontros com ele debruçado na janela conversando comigo, eu em pé na calçada, levantando os pés para alcançá-lo. E as cartas que me escreveu e que mandei para o Joaquim. Estão publicadas  no livro Meia-Pataca: a terceira margem. A minha convivência maior foi com o Marques (Rebelo), a quem devo o apoio (junto ao apoio maior de meu tio Francisco) para o que fiz, na juventude, de lances e embrulhos, na arte e na poesia. Com o mais fidalgo abraço de admiração, Lina.


Francisco Marcelo Cabral olha para a jovem
Lina na capa do livro (by Natália Tinoco),
que acabei encontrando em minha estante.


Em 31.07.20 eu lhe escrevia em resposta:

Lina querida, passando pra dar um rápido (mas afetuoso) abraço: só agora vejo esse seu email de quase uma semana. As recordações do Fusco são muitas: escrevo este email em Bodoni, para homenageá-lo: era a tipologia de que mais gostava. Exato agora não estou me lembrando do livro Meia-Pataca: a terceira margem. Que livro é esse? Acabei de reler nesta manhã “Dia do Juízo”, um dos grandes romances do Fusco. Marquei várias e várias passagens do livro (como sempre faço com as leituras que me chamam a atenção), passagens de que não mais me lembrava. Lá pelo final tem um monólogo da personagem Primavera que me remeteu ao monólogo de Molly Bloom, no Ulisses de Joyce (será “viagem” minha?). Você fala no Marques, que conheci ligeiramente numa noite na casa do Chico Peixoto, ele me falando (numa chaise-longue, do alto de sua piteira) do filho, Zé Maria (de quem fiquei amigo mais tarde), que estava “necessitado”: a pintura não dava pra ele viver. E aproveitou pra meter o pau nos concretos, que, segundo ele, só faziam aqueles poemas porque não precisavam de dinheiro: “Veja só, um deles é até Pignatari”. Coitado do Décio, eu pensei, apenas um mero professor universitário: nada a ver com a fortuna dos Pignatari. Mas, falar no Marques, por acaso você tem cópia (ou sabe onde eu possa encontrar) daquela crônica dele intitulada “Cataguases 1937”? Acho que é esse o nome: penso em colocá-la nesse meu novo, em homenagem aos “rapazes da Verde”. Você recebeu o link de uma live minha falando poemas? Abracíssimos, Ronaldo.

Resposta da Lina  – 31.07.20

Oi, Ronaldo. Trocamos de amigos quando adolescentes em Cataguases. Eu, com Marques, você com Fusco. O livro Meia-Pataca: a terceira margem é obra do Joaquim com a colaboração de dois alunos. Mandei para ele, na época, todas as cartas escritas e recebidas – para e do – Marques e do Fusco. Deu um excelente panorama e visão cultural do que foi aquela febre de literatura, aquele grito de poesia. Esqueceu? Com certeza tem aí caído em qualquer prateleira, este precioso livrinho. Quanto à crônica que mencionou "Cataguases -1937" está em Cenas da Vida Brasileira, uma gostosura de fina ironia. Lembro quando fala de Sete Lagoas. São oito lagoas, mas só se vê uma. O livro é uma soma de olhares para muitas cidades, buscando em cada uma a ponta burlesca ou crítica que lhe dá a fisionomia. Penso também que a crônica vestiria bem as páginas de seu livro-documento. Ainda não abri sua participação literária com a Noélia (uma live da poeta de Brasília Noélia Ribeiro, onde fui entrevistado e falei alguns poemas). Apareceram, domesticamente, muitos problemas para resolver, inclusive com a televisão que desmancha as imagens com jeito de Miró. Exclusivos abraços para Patrícia e você, Lina.

 

Seu último email – 17.08.2020

Meu caro amigo: peço desculpas por não ter respondido ao envio das crônicas, mas só agora estou saindo de uma brava pneumonia e meu tempo, lento e gradual, se volta todo para minha recuperação. Não sei onde apanhei a bactéria que derruba a gente além do chão, subsolo, abismo, qualquer palavra que signifique angústia serve para definir a situação. Fica tudo para mais tarde. Com o melhor dos abraços, Lina.