8 de set. de 2020

Lina Tâmega Peixoto: palavra & perenidade


       A morte de Lina Tâmega Peixoto no último 1º de setembro não passou em branco: logo chegavam textos homenageando a poeta, vindos de vários lugares: Brasília, Rio, Ouro Preto, Cataguases, Lisboa. Vários e afetuosos os saudares e louvações de seus muitos amigos.

De Brasília, publicava ainda no dia seguinte a poeta Angélica Torres Lima (que me disse ter passado a noite escrevendo, ainda chocada com a morte de sua amiga):  “Tão significativo quanto deixar como último legado um livro intitulado Prefácio de Vida é partir dela, a vida, no primeiro dia de setembro, quando o Cerrado se derrama em flores... É como dar um toque mágico ao momento, para todos tão difícil e sofrido. É como fazer um truque com imagens, que só poetas de primeira grandeza, como Lina Tâmega Peixoto, são capazes de fazer sem ter planejado. Lina pôs ontem de luto a poesia brasileira”.

De Ouro Preto, o ex-Secretário de Cultura de Minas, Angelo Oswaldo, me enviava email: “Minha solidariedade. Os Peixoto parece que vieram de Portugal (os Botelho, dos Açores). Tâmega é o rio que passa em Amarante e junto à velha ponte postava-se São Gonçalo. Mas Lina não era portuguesa, senão mineira de Cataguases tocada pela poesia verde banhada nas águas do Pomba espraiadas no lago Paranoá. Vamos saudá-la na perenidade de sua palavra poética”.

 

Do Rio, um totem ontológico


Do Rio, o poeta Tanussi Cardoso me mandava pelo zap: “Lina era uma das nossas maiores poetas, cuja discrição silenciosa impediu que seu nome e sua poesia tivessem o reconhecimento merecido. (...) O uso  inteligente das metáforas, inversões, metonímias; das palavras como um totem ontológico radical; desta íntima “respiração” entre elas; desse silêncio loquaz que capta  a memória e o vazio das coisas, e, ao mesmo tempo, o seu barulho – são de uma sensibilidade rara em nossa poesia”.

 

Joaquim Branco, Lina e RW: lançamento de
Alinhavos do tempo (Cataguases, 2019)

De Cataguases, o poeta e crítico  Joaquim Branco: “Ontem (01-09-2020) recebi a notícia da morte de Lina Tâmega Peixoto (1931-2020), num hospital de Brasília. Fiquei muito consternado, e mais ainda, pois já havia tomado conhecimento do que acontecera ao poeta Sebastião Carvalho. E com o Pedro (seu irmão, o poeta P.J. Ribeiro), que falecera no final de março, os fatos somados tomaram vulto a ponto de Zeca Junqueira comentar que a cidade de Cataguases se despoetizava... Não encontrei melhor expressão para o momento. Entre as possíveis damas da poesia cataguasense há uma prima dona: Lina Tâmega Peixoto.

“Ler um livro de Lina – escreveu ainda Joaquim – requer tempo. Não o tempo normal que se gasta para leituras cotidianas, mas um tempo para se concentrar mais, pois ele exige do leitor mais do que a fruição de palavras que vão puxando palavras. Seu discurso requer um silêncio dentre desse tempo para se buscar. (...) Fui dirigindo meu voo por penetráveis porém surpreendentes vias – que é assim o caminho dos bons livros – deparando ora com o recurso da metalinguagem, ora com a difícil música de alguns versos ou com a ligeireza do pensamento”.

O mesmo Joaquim Branco – meu grande amigo e companheiro de aventuras literárias que já vão para mais de meio século – citado por Lina num dos e-mails que ela me enviou, com a poesia de sua imensa delicadeza, coisa de eterna lady, de primeiríssima dama da literatura:

“Caríssimo amigo: acabei de ver o que se maravilha da vida. E estive aí no Centro Cultural Humberto Mauro para os 90 anos da Verde e escutei você narrando Humberto Mauro e falando no Mac. Voltarei depois para ouvir mais coisas de seu gesto de coração de poeta e mais, pedaços de sonhos que modificaram seu acordar em Cataguases. A cidade precisa de pessoas como você e o Joaquim, capazes de por à superfície a memória definindo o Rio Pomba e cheia de estrelas refazendo a luminosidade do pensamento. Não pude deixar de registrar aqui as emoções da inteligência que tive. Esta a mais perfeita e profunda que vive no espírito. Peço que receba meu abraço de afeto por suas palavras e que o coloque na jarra como uma flor. Lina”.

 

De Lisboa, um sopro de humanismo


De Lisboa, o também poeta e crítico cataguasense Ronaldo Cagiano, que vive atualmente na capital portuguesa e que lá esteve presente ao lançamento de Alinhavos do tempo em janeiro de 2019, enviou a meu pedido o seu depoimento:

 “Caro Ronaldo, foi uma ótima noite o lançamento da Lina na Casa do Brasil aqui em Lisboa: bom público, apresentação da escritora Vania Chaves, um belo ensaio lido por uma professora da Universidade de Lisboa e depois as palavras da Lina. (...) Foi um evento marcante, principalmente porque reuniu amigos, colegas, leitores e conterrâneos de Lina e todos tiveram oportunidade de percorrer esse panorama sobre sua vida e obra, buscando a gênese de seu processo criativo, desde os primórdios da estudante que criou com Francisco Marcelo Cabral a revista Meia-Pataca; do estímulo do tio-poeta Francisco Inácio Peixoto; do sopro literário de Hernâni Cidade, um primo materno e um dos reconhecidos críticos literários de Portugal que, do outro lado do Atlântico, trouxe-lhe informações, conselhos e dicas técnicas sobre o fazer poético; das influências e amizade de Cecília Meireles, da presença de Cataguases e Brasília na sua trajetória existencial e criativa, dos tantos tempos, entretempos & alinhavos que constituem sua tessitura e culminam no polimento estético de sua arte”.

 

Lina, RW e Ronaldo Cagiano no lançamento de 
meu livro Momento Vivo: Lisboa, 24.10.2019

“A poesia de Lina – continua Ronaldo Cagiano em seu depoimento – chegou a Lisboa  como um prefácio de vida, abriu-se aos leitores, como as asas da cidade que escolheu para seu escreviver. Sua poesia – que tem uma profunda inflexão imagética e sensorial, carregada de símbolos e metáforas, cristalina e diáfana na forma e na linguagem –,  sem dúvida a coloca entre as melhores vozes da poesia que se faz em todo o mundo lusófono, uma palavra carregada de simbologias e afetos, que é fruto de um esmerado senso de observação do mundo, das coisas; de captura da memória e da geografia ancestral; que, entre o rigor e a sofisticada elaboração, faz uma ponte dialética entre o lírico e o metafísico, entre o passado e o presente, com um sopro de inegável humanismo”.

 

Lina lê-se em ardósia


Antes de nossa recente troca de e-mails que vem a seguir, fecho com um poema que dediquei à minha agora saudosa amiga, publicado em meu livro minerar O branco, de 2008.

 

Lina lê-se em ardósia

A memória vai buscar uma menina de treze anos,

improvisando uns versos que teimavam em ser música.

De súbito, ela descobre que tocava a poesia.

Lina Tâmega Peixoto


tâmara lina

pomar de minas

turmalina

o fio tâmega

o xis de peixoto

seixo

ao sol

do pomba

                                  

lina-horizonte

peixoto

do tâmega

feixe-facho

de delicados dáctilos

ânfora de anapestos

                

lina lê-se em ardósia

proeza-poesia

proesia toda-prosa

fina escrita e valia

 

Ronaldo Werneck

Cataguases/agosto/2008

 

  

LINA: OS ÚLTIMOS E-MAILS
 

RW, Lina e Francisco Marcelo Cabral: Brasília, 2008


Sobre um texto meu que não consigo identificar – 17.03. 2016

Querido amigo: li, colocando na língua, cada palavra de seu longo texto, já que não aprecio bebida, de modo geral. Pois seu texto foi um vinho do Porto, bebido aos goles lentos. Me emocionei com sua admirável memória afetiva, onde agrega os amigos e as experiências que viveram, de forma intensa,  e que me parece, ajudaram a  formar sua identidade humana e poética,  seu jeito de contemplar as coisas das coisas, e que explodiram,  anos mais tarde, com uma força e balbucios de beleza e ternura, em expressiva e sensível  criação literária, tanto em prosa como em poesia. Vou ler tudo de tudinho com muita atenção, sofrimento, alegria e redenção. Abraços, Lina.

 

EMAILS DE 2019

Sobre meu post quando do prêmio Camões para Chico Buarque – 31.05.19

Como sempre, sua crônica, ou melhor, seu testemunho no mundo, é um espaço de prazer. Aquele prazer que Roland  Barthes nos ensina. Poucas vozes se levantaram para saudar o prêmio Camões, concedido ao Chico Buarque. Do Governo não se esperava mesmo nenhum gesto, mas da intelectualidade, até da fatia da música, não li quase nada. Penso que sou eu que não desvelo notícias, de tão absurdo este fato. Enfim, Ronaldo, seu texto é preciso, cheio de nervos de encantamento. Uma leitura feita de horizontes de percepção e ordenança de significações. Abraços diversos, Lina.

Sobre meu texto “Catawood”, publicado na letra “C” da revista portuguesa “Linguará”, e a palestra que faria (e fiz) no lançamento em Belo Horizonte06.07.19

Boa noite, querido amigo: li, com gostosura, seu texto de C, com tantos substantivos que mais parecem atributos. Há uma leveza na linguagem que é um tom constante em  sua escritura. Outros textos que me manda trazem esta margem que contorna os significados de uma nuvem que esvoaça, lenta, macia, mansa. Que sua apresentação em BH seja uma alegria enorme e que a noite seja um sol de sucesso. Muitos e inexplicáveis abraços, Lina.

 

Quando do meu post sobre o livro Essa gente de Chico Buarque – 07.12.19

Querido amigo: seu texto coça a inteligência do leitor e faz cócegas na emoção. Li suas palavras como se fizesse uma descoberta de mim mesma  por meio do Chico Buarque/Duarte. Sempre me impressiona seu discurso narrativo seco e úmido ao mesmo tempo, as imagens revelando um fino e sutil humor de quem vê o mundo mordendo o rabo. Parece que endoideci. A realidade parece. Tudo parece sem ser igual. Com uma alegria gorda e macia, meu abraço exaustivamente grande para vc. e Patrícia. 

Lina: palestra sobre Cecília Meireles - Cataguases,
abril de 2017


EMAILS DE 2020

Ao chegar de Lisboa – 18.01.20

Já estou em Brasília, enforcada de calor. Vim enrolada em peles extras para isolar o frio e aos poucos me desnudei de mim. E, com calma e horizontes, li o texto do Angelo Oswaldo sobre seus poemas em Momento Vivo. Bem penetrante e explicativo, ressaltando as simbologias-chaves que permitem, a nós leitores, abrir as palavras. Fico feliz em conhecer a repercussão  de seu fazer poético, da amplidão geográfica que eles habitam. Muitos e fidalgos abraços.  

Quando de uma postagem sobre a exposição Fellini no MAM28.01.20

Suspiro, Ronaldo!!! Quisera ter estado no Rio, no mesmo dia em que foi ao Museu, e acompanhar sua visita ao Fellini. Abraços diversos e urgentes, Lina.

 

23.04.20

Soube da morte do P. J. Ribeiro pelo seu texto. Estou atônita e confusa. Liguei para o Joaquim e consegui falar. Depois, mais tarde, entro em contato com vc. Com meu coração, Lina 

 

Sobre o  poema “A peste pede passagem” postado em meu blog – 30.04.20

Meu amigo: fiz um comentário, mas não sei resolver colocações exigidas. Assim, coloquei anônimo. Se você recebeu, me avise. O comentário começa: "O poema interroga... e termina:  pela consciência do prazer". Eis o comentário que Lina postou no meu blog: “O poema interroga a continuidade, a importância, a impotência, o horizonte do homem na vida. De repente, o poema desfolha-se. O ritmo, que torce a camada fônica, fragmenta, com encadeamento sedutor, a tensão dos múltiplos significados. O tema da peste configura, pela estrutura da substância poética, um aturdimento e uma vertigem apreendidas pela consciência do prazer”.

Quando postei textos sobre Elisete e Nelson Cavaquinho – 21.06.20

Querido amigo: também estive numa apresentação da Elisete e do Nelson Cavaquinho nos por aí dos 80. Lembro da sensação de euforia e prazer que senti. Um passado sem "rugas". Uma delícia rever tudo isso no seu excelente texto. Inumeráveis abraços, Lina.

 

Sobre a morte do Pedro Branco, o P.J. Ribeiro – 24.06.20

Querido Ronaldo: teu texto foi uma pancada  que atingiu uma pálida e triste alma, a que me veste, até hoje. Foi nela que li o avesso da mentira, a da morte do P.J. Ribeiro. Seu texto foi armando palavras e nelas  deitou nosso amigo, com doçura e sussurro de dor e saudade. Consegui falar com o Joaquim e lhe dar meu abraço feito com muitas palavras. Muitos abraços, Lina.

Sobre o envio da Revista Chicos, que publicara seus poemas  27.06.20

Querido amigo: foi um respirar profundo a surpresa de ver a revista Chico's com eu lá dentro. Foi a primeira vez que li a revista, mas sabia que ela existia. Como nunca entraram em contato comigo, ficava, burramente, atrás da porta, na quina da esquina. Conheço o Emerson há tempos, parece, inclusive, não sei, ou sei, talvez, penso que, esteve no lançamento de meu livro aí. Verdade? E veja, sou um gomo da revista, que vou saborear depois. Ainda não olhei, com nitidez, as palavras que falam de minha poesia, (conheço bem o ritual bibliográfico) porque vim, primeiro, lhe agradecer o  envio do texto, de tudo. Anotei o email de Chico's e vou, ainda hoje, escrever para o Emerson e José Antônio. Às vezes viro um arquipélago, ilha que sou. Lanço ponte e barco para ir à sua ilha e religar, ou relumar ou relumbrar as fronteiras da poesia de nossas vidas. Com um gordo e solar abraço, Lina.

 

 Quando da postagem dos 50 anos do Festival de Música de Cataguases05.07.20

Sabe, meu amigo, que já havia lido esta memória do Festival em Cataguases. Não me lembro quando. Nesta época, estava em Lisboa estudando as origens do lirismo peninsular, mas soube lá desta grande aventura de vc e Joaquim. Que tempos maravilhosos aqueles! A leitura do texto redobrou a fartura de lembranças que são asas leves do encantamento. E como vc escreve bem e firme o que são sensações e friúmes do sentir. Uma jardineira de abraços. Estou olhando para as miudinhas cores roxas do canteiro que estão com olhos arregalados. 

Quando respondi, dizendo que “friúmes” me lembrava Mário de Andrade07.07.20

Curioso, Ronaldo, lembrar Mário de Andrade pelo nome "friúmes " Me veio à memoria (sei de cor) o poema “Conversa piedosa” do tio Francisco (o escritor Francisco Inácio Peixoto) em referência a Cristo: 

Madalena quando enxugou os seus pés

Com os cabelos dela, você não sentiu

Uma espécie de friúme no seu corpo?

Considero este poema belíssimo. Saudades de todos e de todas as memórias. 

Ao lhe enviar a introdução de meu novo livro, “Cataguases Século XX – antes & depois” e dizer que iria colocar um texto dela sobre Francisco Inácio Peixoto08.07.20

Acabei de ler sua introdução e lendária, novamente, minha  observação sobre seu poder de escrever uma linguagem firme, lúcida, objetiva, voltada para a inteligência especulativa, e a do bem-querer saber. Acho que melhor do que o texto sobre o Aprendizado (sobre Francisco Inácio Peixoto, que eu sugerira) ... seria este que lhe mando. Resultado de uma longa pesquisa na Fundação Casa de Rui Barbosa (cartas do Guilhermino) e de conseguir, em Porto Alegre, as cartas do tio Francisco. Consegui todas e guardo este acervo, com feroz carinho. Veja o que acha de minha sugestão. Se quiser, revejo o texto, para perceber algum cisco. Com abraços diversos, Lina.

Lina e a poeta Fabíola Fabyz na Feira do Livro de 
Brasília (15.06.2019)

Quando lhe enviei um texto que havia escrito sobre Francisco Inácio Peixoto – 11.07.20

Obrigada, amigo, por levantar minha memória do chão. As pegadas do que faço vão se apagando aos poucos, porque não sei, como você, guardar as palavras numa gaveta de ar. E lhe conto sobre o conto "Bapo". Ele foi inspirado num fato que aconteceu com os peixinhos vermelhos de  minha mãe. Numa manhã, um dos peixes do tanque amanheceu torto. Como era costume, chamamos tia Eponina que sabia consertar tudo, asa quebrada, osso partido, mau-olhado, enfim, mazelas, defeitos e virtudes de bichos e de gente. O resultado da consulta resultou em envolver o peixe com ataduras e prensar o corpinho do peixe, com dois palitos de picolé para que voltasse à forma. Evidente que o peixe afundou e morreu. Vou reler seu artigo sobre tio Francisco. Tudo que é sombra dele, em mim e nos outros, se incendeia.

Com o melhor e mais azul das lembranças, Lina.

Ao ler uma postagem que fiz sobre os 110 anos de Rosário Fusco ­– 18.07.20

Já li este interessante e instigante texto sobre o Fusco, inclusive a entrevista no Pasquim. Há muito vc me mandou, mas de qualquer jeito reli com prazer e sabor. Abraços para vc e Patrícia.

 

Ainda sobre a postagem dos 110 anos do Fusco – 23.07.20

Pois então, Ronaldo, o texto estava à superfície dos olhos e reli, porque já havia lido nem sei há quantos meses passados. Penso que lhe escrevi na ocasião, se a memória sobrevoa as palavras. Considero este texto sobre o Fusco uma excelente  página de uma narrativa memorista que lhe pertence, mais do que a história sobre  o Fusco. Dele, tenho recortes de papos longos, na casa da mãe, com uma garrafa de pinga na mesa. E em outros encontros com ele debruçado na janela conversando comigo, eu em pé na calçada, levantando os pés para alcançá-lo. E as cartas que me escreveu e que mandei para o Joaquim. Estão publicadas  no livro Meia-Pataca: a terceira margem. A minha convivência maior foi com o Marques (Rebelo), a quem devo o apoio (junto ao apoio maior de meu tio Francisco) para o que fiz, na juventude, de lances e embrulhos, na arte e na poesia. Com o mais fidalgo abraço de admiração, Lina.


Francisco Marcelo Cabral olha para a jovem
Lina na capa do livro (by Natália Tinoco),
que acabei encontrando em minha estante.


Em 31.07.20 eu lhe escrevia em resposta:

Lina querida, passando pra dar um rápido (mas afetuoso) abraço: só agora vejo esse seu email de quase uma semana. As recordações do Fusco são muitas: escrevo este email em Bodoni, para homenageá-lo: era a tipologia de que mais gostava. Exato agora não estou me lembrando do livro Meia-Pataca: a terceira margem. Que livro é esse? Acabei de reler nesta manhã “Dia do Juízo”, um dos grandes romances do Fusco. Marquei várias e várias passagens do livro (como sempre faço com as leituras que me chamam a atenção), passagens de que não mais me lembrava. Lá pelo final tem um monólogo da personagem Primavera que me remeteu ao monólogo de Molly Bloom, no Ulisses de Joyce (será “viagem” minha?). Você fala no Marques, que conheci ligeiramente numa noite na casa do Chico Peixoto, ele me falando (numa chaise-longue, do alto de sua piteira) do filho, Zé Maria (de quem fiquei amigo mais tarde), que estava “necessitado”: a pintura não dava pra ele viver. E aproveitou pra meter o pau nos concretos, que, segundo ele, só faziam aqueles poemas porque não precisavam de dinheiro: “Veja só, um deles é até Pignatari”. Coitado do Décio, eu pensei, apenas um mero professor universitário: nada a ver com a fortuna dos Pignatari. Mas, falar no Marques, por acaso você tem cópia (ou sabe onde eu possa encontrar) daquela crônica dele intitulada “Cataguases 1937”? Acho que é esse o nome: penso em colocá-la nesse meu novo, em homenagem aos “rapazes da Verde”. Você recebeu o link de uma live minha falando poemas? Abracíssimos, Ronaldo.

Resposta da Lina  – 31.07.20

Oi, Ronaldo. Trocamos de amigos quando adolescentes em Cataguases. Eu, com Marques, você com Fusco. O livro Meia-Pataca: a terceira margem é obra do Joaquim com a colaboração de dois alunos. Mandei para ele, na época, todas as cartas escritas e recebidas – para e do – Marques e do Fusco. Deu um excelente panorama e visão cultural do que foi aquela febre de literatura, aquele grito de poesia. Esqueceu? Com certeza tem aí caído em qualquer prateleira, este precioso livrinho. Quanto à crônica que mencionou "Cataguases -1937" está em Cenas da Vida Brasileira, uma gostosura de fina ironia. Lembro quando fala de Sete Lagoas. São oito lagoas, mas só se vê uma. O livro é uma soma de olhares para muitas cidades, buscando em cada uma a ponta burlesca ou crítica que lhe dá a fisionomia. Penso também que a crônica vestiria bem as páginas de seu livro-documento. Ainda não abri sua participação literária com a Noélia (uma live da poeta de Brasília Noélia Ribeiro, onde fui entrevistado e falei alguns poemas). Apareceram, domesticamente, muitos problemas para resolver, inclusive com a televisão que desmancha as imagens com jeito de Miró. Exclusivos abraços para Patrícia e você, Lina.

 

Seu último email – 17.08.2020

Meu caro amigo: peço desculpas por não ter respondido ao envio das crônicas, mas só agora estou saindo de uma brava pneumonia e meu tempo, lento e gradual, se volta todo para minha recuperação. Não sei onde apanhei a bactéria que derruba a gente além do chão, subsolo, abismo, qualquer palavra que signifique angústia serve para definir a situação. Fica tudo para mais tarde. Com o melhor dos abraços, Lina.



 

 

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