Anotações de Pound para Eliot e minhas para Amador Perez (Clique na foto para ampliar) |
O
texto, qualquer texto, não surge no papel como mágica. É antes obra que
necessita sempre de várias modificações ao tempo de sua feitura. Interessante
notar o às vezes árduo processo de montagem de um texto – os cortes, as
colagens, as várias anotações a mão num papel qualquer e até mesmo nas laterais
das páginas datilografadas, muitas vezes já na revisão final, antes que ele seja
dado como pronto. Quando temos a oportunidade de examinar um texto em seu
processo de feitura é que podemos ter a noção de todo o trabalho de seu autor
até se decidir pela sua publicação.
Epa!
Eu falei em páginas datilografadas? É isso mesmo: a era digital (como se a
datilografia também não fosse “feita a dedo”) acabou por acabar com isso tudo.
A facilidade do “corte e costura”, dos “deletes”, dos “Control C/ Control V, do
“mágico apagar de todos os erros” oferecida pelo computador, terminou com a
fruição dos exegetas ao se aprofundarem em determinado texto. Pena que não se
saiba mais como foi o processo de sua construção, o que ficou para trás, o que
se aproveitou ou não.
Exemplo
por excelência disso são os originais a mão e datilografados do célebre poema
“The Waste Land”, de Eliot (St. Louis, 1888 – Londres, 1965), com inúmeras correções
do próprio poeta e anotações de pé de página feitas pelo grande poeta-crítico Ezra
Pound, o maior entusiasta da obra desde que conheceu os originais em 1921. Ainda
agora, tenho aqui em minhas mãos este belo livro, editado por Valerie Eliot, sua
segunda esposa, e publicada pela Faber & Faber em 1971: “T.S.Eliot – The
Waste Land – a facsimile & transcript
of the original drafts including the annotations of Ezra Pound”.
(Clique na foto para ampliar) |
Ganhei
o livro de presente ainda nos anos 1970 de meu grande amigo, o poeta Francisco
Marcelo Cabral (Cataguases, 1930 – Rio, 2014). Aliás, também ele, Chico Cabral,
possuía uma preciosidade em sua casa: os originais datilografados de seu livro
“Pedra de Sal” com anotações de pé de página do poeta-crítico Mário Faustino e
de ninguém menos que João Guimarães Rosa, de quem fora amigo. Não sei aonde essa
preciosidade foi parar após sua morte.
Mas
por que estou falando disso agora? É que reencontrei entre a multidão de meus
guardados algumas pastas com os inúmeros textos (sobre artes plásticas, música,
teatro, cinema etc) que escrevi para o CCBB/Rio entre 1990 e 1995. Numa delas,
o texto datilografado em 1992 (num tempo pré-computador) para a exposição do
artista Amador Perez. Junto, algumas páginas com anotações esparsas – e a mão:
“Não há margem. O desenho está solto. Dinâmica/movimento. O que são essas
imagens senão (afirmar sempre) manchas sem margem soltas pela imaginação?”.
(Clique na foto para ampliar) |
Revendo
agora o texto pronto, percebo como essas anotações meio aleatórias foram na
verdade o embrião de meu texto. O ponto de partida para sua efetiva construção.
Essas anotações que se encontram espalhadas acima – junto com o texto pronto, que vai a seguir e
algumas de suas ilustrações.
REFLEXOS PARA REFLEXÃO
O voo de Nijinski e o Retrato do Artista Quando Jovem. (Clique na foto para ampliar) |
Nijinski paira pelo papel como quem voa. No
proscênio, a bailarina de Degas ensaio o salto sob a ribalta de foco esparso.
Patéticos, Orfei & a fera marcam a folha num afago feroz de cumplicidade.
Sombra e luz, Madame Récamier surge e some sobre o soumier como se levitasse. Minúsculo, o barqueiro de Bucklin navega
no vazio, oprimido por pesados blocos de uma arquitetura volumosa,
fantasmagórica. A postura clássica do cavaleiro inglês de Stubbs é desmontada,
realçando outros planos da paisagem, o cinza e o negro, nuvem de significados.
O isolamento das cores no feixe de minúsculos quadrados, malhas superpostas às
composições de grandes mestres iluministas: as musas de Vermeer, Rembrandt, de
Caravaggio, re-tratadas sob a ótica de novo enquadramento. Os eus que são um só
mergulho do inconsciente do artista, multifacetado. Arquétipos, mimese. Ame
d’or/Amador.
Mescladas ao branco, essas imagens estão dentro de
nós, manchas sem margem, tênues contornos demarcados pela imaginação. Postais
sem dono, elas sempre nos pertenceram sem que soubéssemos. Ao decodificar sua
estrutura, o artista nos envolve numa re-visão de preciosidades perdidas. O
grafite clean de Amador Perez nos faz parceiros desses ícones dispersos na
memória, totens atuais em toda plenitude de sua pureza recuperada. Mestre do
desenho, Amador é um profissional. Um virtuose do detalhe, um perfeccionista
capaz de re-criar miniaturas com a grandiosidade impressa nos postais que toma
como modelos. Pois não lhe interessa o formato da obra de arte em si, mas o
impacto de sua reprodutibilidade transformada em paradigma.
A bailarina de Degas e o cavaleiro de Stubbs. (Clique na foto para ampliar) |
Princípio e fim, são pinturas esses desenhos. E
representam um olhar inesperado sobre o processo “imaginário-desenho-pintura”.
Amador reverte essa trajetória e salta da pintura para o desenho, inaugurando a
autonomia de um novo código. Fotografias de cortes inesperados, com dinâmica
própria, quando editados esses desenhos ganham ritmo de fotogramas, um
movimento quase cinematográfico, com enquadramentos e sequências cadenciadas.
Malabarista, Amador usa o lápis como pincel – e compõe com o branco esses
reflexos de rara delicadeza. O papel é seu prisma, fusão de grafite & cor,
luz e reflexão.