24 de jul. de 2019

O TEXTO E SUA CONSTRUÇÃO


Anotações de Pound para Eliot e minhas para Amador Perez
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O texto, qualquer texto, não surge no papel como mágica. É antes obra que necessita sempre de várias modificações ao tempo de sua feitura. Interessante notar o às vezes árduo processo de montagem de um texto – os cortes, as colagens, as várias anotações a mão num papel qualquer e até mesmo nas laterais das páginas datilografadas, muitas vezes já na revisão final, antes que ele seja dado como pronto. Quando temos a oportunidade de examinar um texto em seu processo de feitura é que podemos ter a noção de todo o trabalho de seu autor até se decidir pela sua publicação.
Epa! Eu falei em páginas datilografadas? É isso mesmo: a era digital (como se a datilografia também não fosse “feita a dedo”) acabou por acabar com isso tudo. A facilidade do “corte e costura”, dos “deletes”, dos “Control C/ Control V, do “mágico apagar de todos os erros” oferecida pelo computador, terminou com a fruição dos exegetas ao se aprofundarem em determinado texto. Pena que não se saiba mais como foi o processo de sua construção, o que ficou para trás, o que se aproveitou ou não.
Exemplo por excelência disso são os originais a mão e datilografados do célebre poema “The Waste Land”, de Eliot (St. Louis, 1888 – Londres, 1965), com inúmeras correções do próprio poeta e anotações de pé de página feitas pelo grande poeta-crítico Ezra Pound, o maior entusiasta da obra desde que conheceu os originais em 1921. Ainda agora, tenho aqui em minhas mãos este belo livro, editado por Valerie Eliot, sua segunda esposa, e publicada pela Faber & Faber em 1971: “T.S.Eliot ­– The Waste Land – a facsimile & transcript of the original drafts including the annotations of Ezra Pound”.

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Ganhei o livro de presente ainda nos anos 1970 de meu grande amigo, o poeta Francisco Marcelo Cabral (Cataguases, 1930 – Rio, 2014). Aliás, também ele, Chico Cabral, possuía uma preciosidade em sua casa: os originais datilografados de seu livro “Pedra de Sal” com anotações de pé de página do poeta-crítico Mário Faustino e de ninguém menos que João Guimarães Rosa, de quem fora amigo. Não sei aonde essa preciosidade foi parar após sua morte.
Mas por que estou falando disso agora? É que reencontrei entre a multidão de meus guardados algumas pastas com os inúmeros textos (sobre artes plásticas, música, teatro, cinema etc) que escrevi para o CCBB/Rio entre 1990 e 1995. Numa delas, o texto datilografado em 1992 (num tempo pré-computador) para a exposição do artista Amador Perez. Junto, algumas páginas com anotações esparsas – e a mão: “Não há margem. O desenho está solto. Dinâmica/movimento. O que são essas imagens senão (afirmar sempre) manchas sem margem soltas pela imaginação?”.  

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Revendo agora o texto pronto, percebo como essas anotações meio aleatórias foram na verdade o embrião de meu texto. O ponto de partida para sua efetiva construção. Essas anotações que se encontram espalhadas acima –  junto com o texto pronto, que vai a seguir e algumas de suas ilustrações.

REFLEXOS PARA REFLEXÃO


O voo de Nijinski e o Retrato do Artista Quando Jovem.
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     Nijinski paira pelo papel como quem voa. No proscênio, a bailarina de Degas ensaio o salto sob a ribalta de foco esparso. Patéticos, Orfei & a fera marcam a folha num afago feroz de cumplicidade. Sombra e luz, Madame Récamier surge e some sobre o soumier como se levitasse. Minúsculo, o barqueiro de Bucklin navega no vazio, oprimido por pesados blocos de uma arquitetura volumosa, fantasmagórica. A postura clássica do cavaleiro inglês de Stubbs é desmontada, realçando outros planos da paisagem, o cinza e o negro, nuvem de significados. O isolamento das cores no feixe de minúsculos quadrados, malhas superpostas às composições de grandes mestres iluministas: as musas de Vermeer, Rembrandt, de Caravaggio, re-tratadas sob a ótica de novo enquadramento. Os eus que são um só mergulho do inconsciente do artista, multifacetado. Arquétipos, mimese. Ame d’or/Amador.
     Mescladas ao branco, essas imagens estão dentro de nós, manchas sem margem, tênues contornos demarcados pela imaginação. Postais sem dono, elas sempre nos pertenceram sem que soubéssemos. Ao decodificar sua estrutura, o artista nos envolve numa re-visão de preciosidades perdidas. O grafite clean de Amador Perez nos faz parceiros desses ícones dispersos na memória, totens atuais em toda plenitude de sua pureza recuperada. Mestre do desenho, Amador é um profissional. Um virtuose do detalhe, um perfeccionista capaz de re-criar miniaturas com a grandiosidade impressa nos postais que toma como modelos. Pois não lhe interessa o formato da obra de arte em si, mas o impacto de sua reprodutibilidade transformada em paradigma.

A bailarina de Degas e o cavaleiro de Stubbs.
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     Princípio e fim, são pinturas esses desenhos. E representam um olhar inesperado sobre o processo “imaginário-desenho-pintura”. Amador reverte essa trajetória e salta da pintura para o desenho, inaugurando a autonomia de um novo código. Fotografias de cortes inesperados, com dinâmica própria, quando editados esses desenhos ganham ritmo de fotogramas, um movimento quase cinematográfico, com enquadramentos e sequências cadenciadas. Malabarista, Amador usa o lápis como pincel – e compõe com o branco esses reflexos de rara delicadeza. O papel é seu prisma, fusão de grafite & cor, luz e reflexão.

 Ronaldo Werneck
CCBB/Rio, 1992


15 de jul. de 2019

LEGENDA


                   


                     em sépia e sempre
                        tanto tempo
                                    e essa ausência
                   na curva cataguáis
                                          chico peixoto
                                                             não mais
        nem linhares
                                           nem giudice
                             enfim
   indesculpáveis acrobatas
fausto wolff
                        trapézio que não veio
                                                 nem chico cabral
             nem jair ferreira
                                                               nem plínio filho
                                                       nem
                                                       nem p.j.ribeiro
                                     mas nós
            esses sós desatados
                                  que, sus!, saltam do pomba
                      e da foto e da ponte
             onde
márcia
           lina
           mais eu
                       e sylvio lanna
                                             e quincas
                                             e um  branco  
                                            sorriso                                            
                                             e gradim
                                                   e cairu
                                                                                     – sus!
sós no rio
                      indesculpáveis acrobatas
                                                                            caímos
                                 e sobre as águas da mata
                      andamos
  sol que cega e arrebata.


Ronaldo Werneck

Cataguases, dez/2002


6 de jul. de 2019

C DE CATAWOOD

     


     C de Cinema, de Cataguases. No início era a imagem que do verbo se fazia. No Brasil dos anos 1920 o cinema surgia mudo nas telas do Cine-Theatro Recreio: fronteira-limite do mundo-Cataguases, pequena cidade do estado de Minas Gerais. A língua era projeção, cenas que surgiam e se apagavam, e se fixavam na retina – encadeamento, gramática visual, linguagem. Glauber Rocha, o grande cineasta do Cinema Novo brasileiro afirmou um dia: “Em Cataguases – quando o cinema era mudo e o Brasil era ainda mais selvagem – Humberto Mauro realizou um ciclo cinematográfico, revelando a existência de uma das mais sólidas tradições específicas de nossa cultura. Seu mundo é a paisagem mineira, e Mauro seria o único cineasta capaz de filmar Guimarães Rosa e dar no cinema a mesma dimensão do grande romancista. Humberto Mauro é um cineasta de ontem e de hoje: é o mais novo dos cineastas do Brasil”.


     C do Ciclo de Cinema de Cataguases naqueles anos 20, que projetou o pioneirismo de Humberto Mauro (1897-1983). Na aurora do cinema brasileiro, o cineasta realizou na Zona da Mata de Minas a façanha de rodar cinco filmes em sequência, um a cada ano: o curta-metragem Valadião, o Cratera (1925), filmado com uma Pathé-Baby 9,5mm; e quatro longas, já com uma câmera Enerman 35mm – Na Primavera da Vida (1926), Thesouro Perdido (1927), Braza Dormida (1928) e Sangue Mineiro (1929). Autodidata, um curioso por excelência, dotado de grande talento, Humberto Mauro foi um “faz-tudo” nessas fitas e nas demais de sua carreira: roteirista, fotógrafo, iluminador, ator, montador, diretor.
     C de Catawood, como Adhemar Gonzaga, o criador da produtora carioca Cinédia, denominou um dia Cataguases em carta para Mauro. Na época, com cerca de 16.000 habitantes, a petulante cidadezinha do interior possuía nada menos que duas “fábricas” de cinema: a Phebo Brasil Film, comandada por Mauro, e a Atlas-Film, do fotógrafo Pedro Comello. A aventura do cinematógrafo em Cataguases começara com Mauro e Comello, mas um desentendimento os separou logo após a estreia de Thesouro Perdido, levando Comello a fundar a outra produtora.


    C de Carmen Santos, a atriz e produtora portuguesa, que trabalhou com Mauro em Sangue Mineiro, o último longa do Ciclo de Cataguases – e que teve grande importância em sua trajetória no Rio de Janeiro. Ao chegar ao Rio no início dos anos 1930, para trabalhar na Cinédia a convite de Gonzaga, Humberto Mauro – com pouco mais de 30 anos – era a pessoa que mais entendia de cinema no Brasil: ator, autor, arauto da sétima arte. No Rio, ele realizou várias fitas para a Cinédia, outras tantas para a Brazil Vita Film, de Carmen Santos, e inúmeros documentários para o Instituto Nacional do Cinema Educativo, onde trabalhou por mais de 30 anos.
     


     C de contra-plongée e contraluz, como Humberto Mauro gostava de posicionar sua câmera. C de Cantos do Trabalho (1955), um dos grandes curtas-metragens entre os mais de 300 por ele realizados. C também de Canto da Saudade (1952), seu último longa-metragem, minha fita preferida do cineasta, sobre quem já escrevi um longo ensaio-biográfico, publicado em 2009. C de “Cinema é cachoeira”, como disse um dia Humberto Mauro em frase-emblema que lhe deu fama. Cinema é cachoeira: plasticidade e movimento, imagem colada para sempre à figura de Humberto Mauro.
      C de Cineport, o Festival de Cinema dos Países de Língua Portuguesa, que teve sua primeira edição em Cataguases, 2005: verbimagem na mesma língua-pátrias. A cidade novamente em tempo de cinema. Em 2006, o Cineport partiu para Lagos, no Algarve, onde foi realizada com grande sucesso sua segunda edição. Hoje o Cineport acontece em João Pessoa, no estado da Paraíba e já são várias as edições realizadas. O Festival congrega os oito países falantes do português que formam a CPLP-Comunidade dos Países de Língua Portuguesa : Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.


     C de cinema, ainda e sempre, vocação dessa Cataguases hoje cidade-locação, set de filmagens onde vêm sendo realizadas nos anos recentes inúmeras produções do moderno cinema brasileiro: não por acaso, Cataguases é agora sede do Polo Audiovisual da Zona da Mata. Centro de Cultura, tendo hoje o cinema como bandeira, Cataguases é carisma, criação. Catarte: Cataguarte.

2 de jul. de 2019

Leila Livre? Leila Vive? Viva La Diniz



“Meteoro de curso breve, estrela de rápida cintilação, ela voou veloz nessa vida, estopim de amor, verbo solto e alegria. Um nome – o que diz? Leila. Leila Diniz. Plena de plumas & palavrões ela incendiou com sua coragem os incendiários anos 60. Foram muitas as leilas sem medo forjadas por essa Leila múltipla que explodiu em pleno voo. A vida que se partiu, estilhaços que se espalham e nos chegam até hoje, os dentes de coelha num cicio que se solta, a boca, o riso aberto. Leila. Leila Diniz.”
Assim começava um texto que fiz a pedido do “Bigode”, o meu amigo e cineasta Luiz Carlos Lacerda, para apresentar um evento que ele iria coordenar no Centro Cultural Banco do Brasil. “Leila Diniz 50 Anos” era uma homenagem à eterna musa de Ipanema, que estaria fazendo 50 anos naquele 25 de março de 1995. Se viva fosse. Mas viva ela era e ainda é. Leila morreu? Há controvérsias.
Por que me lembro disso agora? Acho que por ter falado da Leila inda outra dia com sua filha Janaína – que esteve aqui em Cataguases, trabalhando na produção do novo filme de seu pai, Ruy Guerra – e me deu uma saudade dos diabos! Porque em março agora aquele voo às avessas completou 47 anos. “Morre Leila Diniz na explosão de um jato sobre a Índia”: a manchete de primeira página do Jornal do Brasil de 14 de junho de 1972 nos pegou no contrapé, assim totalmente de surpresa – e deixou todos os brasileiros chocados. Não era só a “Musa de Ipanema”, mas agora era a do Brasil, musa que emudecia.
Chocado mesmo ficou o Bigode, que só soube da notícia um mês depois, em Londres, ao chegar de Katmandu. Mais terrível ainda para ele, o último brasileiro a ver Leila viva, no aeroporto de Bangcoc, antes dela embarcar para Roma e para a morte sobre a Índia. Bigode faria mais tarde, em 1987, um filme definitivo sobre a nossa musa, o longa-metragem Leila Diniz, com a Louise Cardoso fazendo o papel de Leila, igualzinha, impressionantemente igualzinha.


Leila livre, Leila vive. Pois é, foi só eu me encontrar com a Janaína aqui em Cataguases e Leila entrou de novo porta adentro, plena de vida, palavrões e rebeldia. Ainda em janeiro daquele 1972, meses antes de sua morte, estivemos juntos algumas vezes, eu ainda meio traumatizado, recém-saído dos porões do DOI-Codi. Ver Leila era uma forma de aliviar a tensão, de ir ao encontro da alegria, um desbunde geral. Eu estava de férias – merecidíssimas, após a prisão – e aparecia sempre nos ensaios do espetáculo que ela iria fazer, o rebolado Vem de ré que eu estou de primeira.
Sua filha havia nascido há pouco e, nos intervalos dos ensaios, eu andei levando algumas vezes a Leila para dar de mamar a Janaína, que ficava com a babá no apartamento emprestado pelo Tarso de Castro, na Lagoa, entrada do Túnel Rebouças. Era sempre uma festa. Um curto trajeto, do Leblon ao Túnel, o suficiente para que todos os motoristas buzinassem assim que a reconheciam, brincando com sua musa. Leila devolvia as brincadeiras sempre bem-humorada, sacana que nem ela.


Lembro que o porteiro do prédio do Tarso era flamenguista, e o nosso time já naquela época andava mal: Leila sempre caía de gozação em cima dele, como se fosse ela própria um outro porteiro. Carioca autêntica: simples, simpática, moleca safa & safada. Até hoje, sempre que entro no Rebouças pela Lagoa, tiro a cartola e... bate outra vez com esperança o meu coração. Mas Leila não mais aparece. Nunca mais o seu riso claro. Nunca mais o charme daquelas covinhas realçando seu rosto. Nunquinha.
Engraçado como são as coisas: foi exatamente naquela área do Rio, ali ao lado da Lagoa, na Igreja de Santa Margarida Maria, que a vi pela primeira vez, num casamento de algum amigo(a?) comum, anos antes daquele 1972. Leila acabara de filmar Todas as Mulheres do Mundo e estava com um mini-vestido rosa e simples, nada de estrela, apenas mais uma entre as muitas meninas daquele casamento. Qual o quê! Ela era uma estrela de luz intensa – e brilhava mesmo sem querer. Da noiva, não me lembro, nem mesmo seu nome. Dela, Leila, não mais me esqueci: está aqui ainda agora, o mini-vestido e o maxi-riso, rosa e claro e para sempre. A partir daquela época, passei a denominar aquele lado do Túnel Rebouças de “Entrada Leila Diniz". E até hoje é assim que falo, com saudade da Leila para sempre Diniz, como a chamou um dia o Carlos. Qual Carlos? O Carlos, ora, o nosso poeta maior, o Carlos Drummond de Andrade. Mas vocês também, hein?!! Puxa, não conhecem ninguém, sô!
Por mais estranho que isso possa parecer, Leila me lembra igreja – Deus a tenha. Pois foram em igrejas os nossos dois primeiros encontros. Aquele do casamento na Lagoa e, dois anos depois o outro, em 1968, quando nós nos trombamos na Igreja de Congonhas do Campo. Eu voltava para o Rio, vindo de um Festival de Poesia em Divinópolis, e parei para visitar pela primeira vez os profetas do Aleijadinho.


Para minha surpresa, dou de cara com a Leila, sozinha, vendo os ex-votos no Largo da Igreja, como qualquer turista. Que diabos fazia Leila Diniz em frente ao meu nariz? Leila perdida em Minas, entre Daniel, Habacuc e demais profetas de menor fama e porte?  Madona de Cedro! – disse a musa sorrindo, os dentinhos de coelho à mostra, como sempre. Pois é, para meu espanto Leila estava filmando a Madona de Antônio Callado. E no papel da própria, of course.
A história da mulher brasileira deveria ser dividida em antes e depois de Leila Diniz. Melhor, antes e depois da explosiva entrevista que Leila deu ao Pasquim no início dos anos 70. Foi a partir dali que Leila mostrou-se absolutamente revolucionária, corajosa, desbravadora. Um divisor de águas, vulcão jorrando seu magma de vida e lições de vida. Com Leila, não havia nunca controvérsias. Ela era solar e saudavelmente sincera. Solar, aliás, era como eu a chamava no texto do CCBB, que agora me serve de despedida. À bênção, Leila.

Um mito o que diz? Leila. Leila Diniz


Nunca ninguém tão garota de Ipanema, mulher-oceano, solar: “Brigam Espanha e Holanda/ Pelos direitos do mar/ Brigam Espanha e Holanda/ Porque não sabem que o mar/ É de quem o sabe amar”. Nunca ninguém tão Leila Diniz: “Acho que eu sou um ponto fixo dentro de mim e um círculo ao redor. Esse ponto fixo é muito sério e as pessoas não manjam muito. Tem um negócio dentro de mim que é muito importante: a minha força, a minha verdade, a minha autopreservação”.
Leila de todos os verbos e verdades, Leila que diz: “Acho que cada um deve fazer o que lhe faz bem. O importante é amar as pessoas e sentir uma certa felicidade, apesar da zona ao redor. Não tá vendo que eu sou desafinada, de canela fina, e sou vedete? É só querer, ter coragem. Acho o palavrão gostoso e é uma coisa normal. O palavrão virou verdade em mim, e quando as coisas são verdade, as pessoas aceitam. Só me arrependo do que deixei de fazer por preconceito, problema e neurose. No fundo, sou uma mulher meiga: queria mesmo é fazer amor sem parar”.


 Para Bigode, seu maior amigo, Leila era uma festa do interior: andava descalça todos os dias, nadava, bebia, parecia que nunca ia parar de comemorar a vida. Um mito, o que diz? Leila. Leila Diniz. Leila que tudo transou sem pecado. O riso claro, cristalino, o biquíni, o mar, a barriga ao sol. Janaína dentro e já liberta, como se pronta para a vida, no palco. Janaína já mamando, mamãe-vedete que amamenta sua cria em meio aos spots & paetês.
Leila é uma e são todas, todas as mulheres do mundo que nela se encontram e com ela aprenderam a lutar contra todos os preconceitos, como na frase que ela registrou no verso de uma foto, sua cara marota, moleca, amarelada pelo tempo: ‘Como eu gostaria de poder andar descalça sempre’. A Leila cinquentona, o que diz? Talvez o que escreveu para Janaína, em seu último cartão-postal enviado da Austrália, com direito a canguru com filhote na bolsa e tudo o mais: ‘Amor, volto logo, e acho que mais bonita e feliz’.