12 de nov. de 2022

POESIA PARA ENSINAR, COMOVER, DELEITAR

 


Reprodução de minha fala na roda de conversa “Os desafios da palavra escrita em Cataguases”, realizada no Centro Cultural Siccob em 10 de novembro de 2022, dentro das atividades da primeira edição da FLICA–Festa Literária de Cataguases.


Sobre o tema em pauta,  “Os desafios da palavra escrita em Cataguases”, começo nomeando alguns escritores “novos” lembrados por Ronaldo Cagiano em texto publicado em meu livro “Cataguases Século XX/ antes & depois”. Texto possivelmente defasado, já que escrito há alguns anos. Isso para me situar, ou para nos situarmos diante dos escritores surgidos em Cataguases depois da revista Verde nos anos 20 e do jornal Totem, nas décadas de 60/70, i.e, nos anos da minha geração e do poeta Joaquim Branco.

Luiz Ruffato, naturalmente, romancista já consagrado; o próprio Cagiano, excelente poeta, contista e crítico, hoje vivendo em Lisboa. Fernando Cesário (“Os olhos vesgos de Maquiavel”), Marcos Vinícius Ferreira de Oliveira (“Uma e outra forma de tirania” e “E se estivesse escuro?”), Leonardo de Paula Campos (“Alma de brinquedo”), Emerson Teixeira Cardoso (“Símiles”) e Eltânia André (“Meu nome agora é Jaque” e “Manhãs adiadas”) exemplos de uma geração cuja preocupação e valores transcendem meramente o fazer literário.

Marcelo Benini, poeta e ficcionista, com as narrativas de “O homem duplicado”, José Antonio Pereira, que já vem de uma intensa participação como colaborador de jornais e revistas (“Trem azul” e “Chicos Cataletras”), com seu début no caprichado volume de crônicas “Fantasias de Meia-Pataca”. A narrativa diáfana e igualmente expressiva de Antônio Jaime Soares (“Pedra que não quebra”), Flausina Márcia da Silva (“Sua casa, minha cruz” e “Vaga lume”) e Sônia Bonzi (“Bordando memórias”), ao lado da prosa de Fernando Abritta, Tadeu Costa, José Santos, Mauro Sérgio Fernandes da Silva, Luiz Lopez, Laly Cataguases e Renatta Barbosa, autores que vêm projetando seus nomes e obras no cenário disputado e competitivo da literatura infanto-juvenil, com títulos criativos e de grande apelo imagético e sensorial. E aproveito para citar também escritores aqui presentes, como Carolina Valverde, Emanuel Messias e Washington Magalhães.





O que é isso, poesia?


Pois bem. Prosadores e poetas. Deixo os prosadores, os ficcionistas, com o Marcos Vinícius, que está aqui ao meu lado: é a praia dele. Eu fico com o que me cabe, o que me coube desde sempre, a “fricção”, o entrechoque de palavras que às vezes resulta em poesia.

Mas, o que é isso, poesia? Passo a palavra para a polonesa Wislawa Szymborska, Nobel de Literatura e uma poeta de minha grande admiração:

 

Alguns gostam de poesia.
Alguns –
ou seja nem todos.
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola onde é obrigatório
e os próprios poetas
seriam talvez uns dois em mil.

Gostam –
mas também se gosta de canja de galinha,
gosta-se de galanteios e da cor azul,

gosta-se de um xale velho,
gosta-se de fazer o que se tem vontade
gosta-se de afagar um cão.

De poesia –
mas o que é isso, poesia.
Muita resposta vaga
já foi dada a essa pergunta.
Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso
como a uma tábua de salvação.

 

           Então, vamos lá pessoal, um pouco de reflexos/reflexões sobre a poesia para esquentar o papo e a noite.


Provocações/reflexões

João Cabral de Melo Neto na conferência “Poesia e Composição” realizada na  Biblioteca de São Paulo, 1952:

“A composição, que para uns é o ato de aprisionar a poesia no poema e para outros o de elaborar a poesia em poema; que para uns é o momento inexplicável de um achado e para outros as horas enormes de uma procura.

“O ato do poema é um ato íntimo, solitário, que se passa sem testemunhas. Nos poetas para quem a composição é procura, existe como que o pudor de se referir aos momentos em que, diante do papel em branco, exercitam sua força. Porque eles sabem de que é feita essa força – é feita de mil fracassos, de truques de que ninguém deve saber, de concessões ao fácil, de soluções insatisfatórias, de aceitação resignada do pouco que se é capaz de conseguir e de renúncia ao que, de partida, se desejou conseguir”.

Aqui João Cabral faz menção à velha dicotomia inspiração/transpiração. Olhar para a lua ou sentar-se e “meter bronca”, trabalhar, encarar a folha em branco. Ato de produzir poesia. João sentava-se toda a manhã frente à máquina de escrever, mesmo que não tivesse ideia alguma do que ia sair.

Sentar ou assentar-se para escrever me leva a meu grande amigo, o saudoso poeta cataguasense Francisco Marcelo Cabral:

O leitor se assenta.

O poeta puxa a cadeira

a poesia é o tombo.

O leitor se enleva

o poeta o empurra no abismo

a poesia é o voo.

 

     Já Jayme Ovalle, carioca de Belém do Pará, como se definia, era um poeta que não escrevia. Não escrevia porque não precisava. O poema era ele. Também músico, parceiro de Manuel Bandeira em “Azulão”, um dos grandes momentos de nosso cancioneiro, Ovalle foi grande amigo de Vinicius de Moraes, que o adorava.       Diz Jayme Ovalle:Todo mundo é criado com o dom da poesia, e só deixa de ser poeta porque perde a inocência. No fundo, esse pessoal que se tornou banqueiro, senador ou presidente da Republica só fez isso porque deixou de ser poeta”.

Com a palavra o poeta francês Benjamin Péret,  ligado a André Breton e aos surrealistas: “O poeta moderno é revolucionário – ou não será poeta. Ele deve jogar constantemente no desconhecido. Só assim poderá se dizer poeta e participar de um processo onde não o esperam nem glórias nem elogios”.

 


No centro do desconhecido

Um dizer autenticado pela máxima de Maiakovski, o grande poeta da revolução russa:

“A poesia – toda – é um salto no centro do desconhecido”.

Ainda Maiakovski e seu vermelho estandarte:

“Sem forma revolucionária não há arte revolucionária”.

Em sua classificação das finalidades do escrever, Rodolphus Agricola — o erudito renascentista citado por Ezra Pound no ABC of reading – dizia que nós escrevemos para “ut doceat, ut moveat, ut delected”. Para ensinar, comover, deleitar. Em seus Diálogos de Oficina, um dos poetas criados pelo grande poeta Mário Faustino re-citava o quinhentista Agricola: “Poesia: meio de comover os homens; meio de os alegrar, meio de ensiná-los”.

Para o poeta simbolista Mallarmé, um dos nomes mais importantes da poesia moderna, a função da poesia era: Donner uns sens plus pur au mots de la tribu. Dar um sentido mais puro às palavras da tribo. Ou, na transcriação de Ezra Pound: To purify the dialect of tribe.

Ezra Pound (in Soirée): “Ao ser informado de que a mãe escrevia versos,/ E que o pai escrevia versos,/ E de que o filho mais novo trabalhava numa editora,/ E que o amigo da filha segunda estava escrevendo um romance,/ O jovem peregrino americano/ Exclamou: Êta penca de gente sabida”.

Eu amarro todo esse busílis da seguinte maneira:

Forma+ideia = poema. Insight+poema = poesia.

 

Fazer isso que a gente não sabe

Então, resumindo: “poesia” é isso que a gente não sabe e “poema” é aquilo que tenta fazer isso que a gente não sabe – e que nos emociona. Oswald de Andrade: “Aprendi com meu filho de dez anos/ que a poesia é a descoberta/ das coisas que nunca vi”.

Oswald me leva a Mário de Andrade, ao seu Prefácio Interessantíssmo para A Escrava que não é Isaura, escrito em dezembro de 1920, portanto dois anos antes da Semana de Arte Moderna:

“É preciso justificar todos os poetas contemporâneos, poetas sinceros que, sem mentiras nem métricas, refletem a eloquência vertiginosa da nossa vida. Como os verdadeiros poetas de todos os tempos o que cantam é a época em que vivem. E é por seguirem os velhos poetas que os poetas modernistas são tão novos”.

“É o leitor que deve se elevar à sensibilidade do poeta, não é o poeta que se deve baixar à sensibilidade do leitor. Pois este que traduza o telegrama”.  

Oswald de Andrade deve ter se lembrado dessa observação de Mário de Andrade ao sacar de sua máxima em 1954, já no final da vida: “A massa ainda comerá do biscoito fino que fabrico”.

Sempre bom relembrar algumas tiradas de Oswald como aquelas de 1924,  no Manifesto da Poesia Pau-Brasil: 

     “A síntese. O equilíbrio. O acabamento da carroceria. A invenção. Uma nova perspectiva. Uma nova escala. Qualquer esforço nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil”.

“O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa”.

Fecho com dois grandes poetas, Rilke e Verlaine, para em seguida trocarmos ideias sobre essas minhas anotações/provocações:

Rainer Maria Rilke: “Os versos são experiências e é preciso ter vivido muito para escrever um verso”.

Paul Verlaine: “Tudo é belo e bom quando belo e bom; venha de onde vier e tenha sido obtido pelo processo que for. Clássicos, românticos, decadentes, símbolos, associantes, ou como direi? Incompreensíveis desde que eles me comovam ou simplesmente me encantem, mesmo que eu não saiba bem por que, todos eles me são caros. Vamos, poetas que somos, amemo-nos uns aos outros, esta máxima é tão bela em arte como na moral, e eu creio que a ela devemos no ater”.

O que não deixa de autenticar a definição do quinhentista Agricola: “Poesia: meio de comover os homens; meio de os alegrar, meio de ensiná-los”.

Passo a palavra ao Marcos Vinicius: tudo é ficção. Ou fricção?

Ronaldo Werneck

Cataguases, 10.11.22


11 de nov. de 2022

GAL HÁ 50 ANOS: A MORTE É DA VIDA

 







GAL COSTA: SEM DOR

NA CONSCIÊNCIA

Chamada de capa/ 1º Caderno

Correio Manhã (22.03.72)

– Sabe, Eu me considero uma boa pessoa e seria incapaz de matar alguém. Tenho absoluta consciência de que não tive culpa. – A cantora Gal Costa, mais calma, embora abatida, chegou ontem ao Rio, e explicou como foi o acidente em Governador Valadares, onde atropelou uma mulher. Traumatizada, ela afirma que está fazendo o que pode pela família da vítima – um velho e duas crianças – e vai comprar uma casa nova para eles (Pág. 6).

 

Gal diz que acidente foi fatalidade

Ainda um pouco abatida, porém mais tranquila, e dizendo a todo instante que está com a consciência limpa e não teve culpa no acidente ocorrido quinta-feira última em Governador Valadares, Gal Costa chegou ontem ao Rio, vinda de Petrópolis.

– Estou providenciando a compra de uma casa para as crianças e o velho, que eram toda a família da vítima. Eles são muito pobres, vivem de pedir esmolas e estavam morando debaixo de uma ponte em Governador Valadares. Dei-lhes dinheiro para voltarem a Teófilo Otoni, sua terra. Fiz o que pude – diz Gal.

 

O acidente

          A Rio-Bahia é uma estrada muito movimentada, muito perigosa, um canal por onde é escoado todo o tráfego para o Norte/Nordeste do País. Estava anoitecendo quando ocorreu o acidente, numa reta a cerca de 200 metros de Valadares. Embora não estivesse correndo (“sabe, eu dirijo bem, dirijo há muito tempo. Mas dificilmente corro: raras vezes passo de 100, o que é uma velocidade normal em uma auto estrada”), Gal não conseguiu evitar o atropelamento.

          – Tudo aconteceu assim muito rápido, como um relâmpago. Era uma reta e eu estava a uns 90 km. Anoitecia e eu acabara de ligar os faroletes. Vinham dois caminhões em sentido contrário e eu cheguei a vislumbrar a mulher e as crianças, uns 10 metros à minha frente.  Quando me aproximava, ela entrou na pista olhando para o outro lado, como se tivesse percebido somente os caminhões. Eu já estava quase em cima e não podia frear devido à velocidade. Reduzi meu carro.

     – Mas foi tudo em vão. Ela parecia meio zonza e acabou caminhando exatamente para cima de meu carro. O choque foi bastante violento. Perdi completamente a direção e minha “Variant” começou a rodopiar, quase capotando no meio da pista. A sorte foi que Wilma, uma amiga que estava do meu lado, segurou o volante, controlando o carro: eu estava tonta, sem saber o que fazer. Os dois caminhões tinham acabado de passar e se viesse outro carro em sentido contrário poderia ter acontecido um desastre ainda mais terrível.

           Gal continua a contar: “prestamos os primeiros socorros à vitima (eu, Wilma, Giselda, mulher do Macalé, e David, um músico americano que viajava conosco) e fomos a Valadares providenciar uma ambulância, enquanto uma família da cidade, que vinha atrás de nós, continuava atendendo a mulher. Quando voltamos com a ambulância, ela já estava sendo tratada por essa família. Infelizmente não foi possível fazer mais nada: ela morreu logo depois.

        – Em Valadares, fui à delegacia explicar o ocorrido e depois entrei em contato com as crianças. Eu estava muito nervosa, chorando muito, e já vim para o Rio no dia seguinte. Felizmente, tudo já passou e agora já estou um pouco mais tranquila. Que fazer? É a vida.

Ronaldo Werneck

Rio, 22.03.72


GAL VENCEU A DOR:

– EU SOU INOCENTE

Chamada de capa/ 1º Caderno

Última Hora  (22.03.72)


UH foi ao encontro, ontem, ao mesmo tempo de Gal Costa e de Tim Maia. Ela voltava de Petrópolis sem mais aquela dor imensa que lhe deu a morte de uma mulher sob as rodas de seu carro: “A morte é da vida”. Ele estava na polícia com a mulher Janete que o acusara de agressão e agora garante: "Foi acidente o meu tapa-olho” (Pág 2).

(A matéria escrita por mim para a página 2 de Última Hora transcrevia meu texto acima, publicado no mesmo dia 22 de março de 1972 no Correio da Manhã. Naquela época os dois jornais tinham uma só redação.)

 

Ronaldo Werneck

Rio, 22.03.72








17 de out. de 2022

NA ROTA DO FRADE & DE CONSTANTINO

     Invenção & reinvenção: termos que rimam e são característicos de Henrique Frade, que também rima com criatividade. Fotógrafo por excelência, ele tem imensa capacidade de nos surpreender a cada trabalho. Rotas Constantinas é uma exposição que traz o complexo e sempre inesperado pensar desse multiartista ao congregar fotografias, desenhos, instalações. E por meio dessas multiformas enfocar – 200 anos passados do acontecimento – os caminhos de Constantino José Pinto ao adentrar, em 1817, a então aldeia de São Paulo Manoel Burgo, atual município de Muriaé.

     Natural de Barbacena (1874), após sua nomeação como Vice-Diretor de Índios por Guido Thomaz Marlière, Constantino estabeleceu-se em 1819 no quartel onde é hoje a Igreja do Rosário. Foi quando promoveu o crescimento da aldeia e ampliou por vários caminhos o comércio da poaia com os indígenas da região. Conhecida hoje como raíz do Brasil, a poia é uma planta com propriedades medicinais utilizada desde o século XVII e que era muito popular entre os índios tupis e os jesuítas. Constantino procurou dar instrução e introduzir os indígenas na religião católica. Seu nome chega inclusive a ser aproveitado por eles para batizar seus filhos.

     Pois são esses caminhos por ele ampliados – as muitas rotas desbravadas por Constantino – o escopo principal dessa exposição, por onde perpassam dois séculos da ocupação regional, com seu foco voltado particularmente para as contribuições populares, muitas vezes esquecidas pela História. Encontram-se também nesses caminhares o fausto das fazendas, das grandes propriedades e suas muitas vezes requintadas construções. Mas Rotas Constantinas debruça-se mais amiúde na história com “h” minúsculo, nas muitas histórias – mineiras, maneiras – que se ouvem ainda agora nos cantões mais distantes do município. Causos do interior mais profundo, contados entre pitadas de fumo de rolo, feijão de tropeiro & quejandos. Toda essa mineiridade que subitamente, e com toda a força, marca presença nessa mostra.

     No início do século XX, havia no rio Muriaé enorme manancial de peixes, hoje quase inexistentes: acarás, dourados, lambaris, piaus, robalos surubins, entre muitos outros. Contava ainda a região com grande quantidade de árvores de várias estirpes, como angicos, cedros, jacarandás, quinos, sassafrás, sucupiras, vinháticos – e de frutas silvestres: araçá, goiaba, ingá, jabuticaba, sapucaia – hoje também praticamente inexistentes. E nessas árvores encontravam-se inhambus, jacus, lontras, macacos, onças e outros e outros animais, até mesmo o bicho-preguiça na característica lentidão de seu movimentar-se. Nada, ou muito pouco disso, se vê hoje.

     Mas essa não é propriamente uma exposição nostálgica. É, antes, mostra em ritmo e tempos de modernidade – interativa, lúdica, induzindo o visitante à intensa participação no embalo dos jogos, em atuações na internet. A proposta é “conheça sua terra”, teste seus saberes sobre Muriaé e cercanias. Para tanto, a exposição – totalmente up-to-date – disponibiliza aparelhos de tv, mobiliza instagram, facebook, youtube, congrega escolas e escolares para ativa participação. A história de Muriaé vai sendo reconstruída ao vivo, atual e atuante, motivada pela participação dos visitantes, que se espera intensa.

O prefeito de Muriaé, Marcos Guarino de Oliveira, fala na abertura da mostra.

     É com grande prazer que a Fundação de Cultura e Artes de Muriaé-FUNDARTE disponibiliza na Galeria Mônica Botelho do Grande Hotel a mostra Rotas Constantinas. Está aqui em cada uma dessas salas a marca do artista Henrique Frade, sua inquietação absoluta, sua intensa capacidade de nos surpreender, seu olhar diferenciado sobre um mundo que achávamos conhecer no cotidiano – mas que ressurge inteiramente novo por meio de seus apanhados fotográficos, de suas criativas reinstalações. Frade é um multiartista como poucos. E com sua acuidade visual nos ensina, como poucos, a rever o que pensávamos saber desde sempre, mas que na verdade desconhecíamos. Rotas Constantinas é por excelência um fascinante jogo de redescobrimentos.


Ronaldo Werneck

Outubro de 2022

15 de out. de 2022

TRICÔ MINEIRO

     


     Com licença que continuamos aqui nesta infindável tricotagem com o imponderável auxílio destas teclinhas acionadas num ritmo que a agulha centenária da Vovó Cota jamais conseguiria acompanhar. Tão rápido que nem dá tempo pra perder o próprio com vírgulas né mesmo? Pois bem: adentramos impávidos o restaurante Canto Mineiro na última sexta & by night como sempre. Eis que, cheia a casa, nos vimos subitamente membros do TSM: leia-se Tô Sem Mesa.

     Chove lá fora. Cá dentro, a simpatia das meninas Ednéa Peixoto e Licínia Cardoso nos convida a sentar. Meninas sim, meninas as duas sempre serão. Não mais TSM. Agora sim, TCM: Tamos Com Mesa. E nem vocês precisam pedir licença – também estão convidados para esta noite de tricô mineiro. Para esta mesa de (l)argamassa (Penne! Penne com molho branco & milho, para horror de todos os italianos, inclusive meu amigo Afonsim) & drinques finos. Beba-se, i.e., leia-se súbito e num só oxítono: tonicacumguaraná. Então, vamos lá. Ou venham cá, como preferirem.

    Ednéa-Licínia: como me lembro eu-meninim da beleza dessas menininhas!  Ednéa, a mais bela Rainha do Tiro de Guerra, logo depois da própria: ali, meio que na virada dos anos 40.  Ednéa & seus blue-eyes-oh-yes: azuis-mais-que-azuis. Que nem a Maysa Matarazzo da década seguinte: os olhos de Ednéa são dois não sei quê dois não sei como diga dois Oceanos Não-Pacíficos (gracias, seu grandessíssimo zé-mané Bandeira!).

     E a Licínia, então, aquela Licínia que inundou de irrecuperável amor o não menos Antônio-Clark-Gable-Cardoso e sua bigodal figura. A mais bela Licínia como a vi numa foto de mocinha na Fazenda Sinimbu, a Licínia que está aqui à nossa frente e que lá está na parede, flagrada para sempre, muito da smart, com seu it, seu requinte, sua placidez pós-guerra, Rita Hayworth refulgindo-re-full-Gilda com seu charm evolando fumaça Cataguases afora.

     E Cataguases afora, noite adentro, falamos. E como falamos! E quanto tricô, sô! Os de antanho, aqueles tricôs de nossas velhas comadres, são meras costurinhas perto de nossa sofisticada tricotagem sobre as gentes, os dementes, os indigentes, os frementes & seus repentes, os amantes ardentes (nem tanto, nem tanto!). Aquele fulano da rua tal, você se lembra? E aquela que foi casada com aquele que descasou daqueloutra? Pois é, quem diria!

     E tome de tricô catuauá, de tricô cotidiano. Perdão, “catadiano”. E “tricodiamos”, bocas geladas por providenciais sorvetes. De que falávamos mesmo? De tudo e de nada, que é uma forma de empurrar a madrugada da província rumo à manhã de domingo. Falávamos de quem mesmo? Da gente catuauá. No fundo, do nosso amor por todos, por essa coisa toda que nos esquenta como o cafezinho de agora. Epa! Vamos embora que já são duas da matina, meninas!



Cataguases, 20.07.2003

in Há Controvérsias 2

São Paulo, 2011

21 de set. de 2022

14 de set. de 2022

Godard/Rimbaud: mar de eternidade

     


     Enquanto Jean-Luc Godard (Paris, 03.12.1930 – Rolle, 13.09.2022) acaba de cometer suicídio assistido na Suíça, lá dos anos 60, em Pierrot le fou, Anna Karina/ “Marianne”, repete à exaustão sua ladainha: Qu´est-ce que j’ peux faire? J’ sais pas quoi faire! Ela segue num lento caminhar em plano-sequência pela praia, ao passo que o peripatético Belmondo/ Ferdinand-Pierrot fala e anda, anda e fala comme un fou – para ele e para nós – fragmentos de leituras aleatórias (em vários momentos, os protagonistas desse filme viram-se para a câmera e “conversam” com o espectador). Mais tarde, dirá Godard: “Era uma época estranha, onde eu me dizia: mas o que se pode fazer? Tínhamos feito tudo. Foi preciso que viesse 68, um pouco para varrer a poeira”.

     Rodado no verão europeu de 1965, Pierrot le fou é o Godard de minha predileção. Numa das sequências, o cineasta americano Samuel Fuller define o cinema: “(é) o amor, o ódio, a ação, a violência, a morte; em uma palavra, a emoção”. Como outros filmes de Godard, esse é também um thriller, un polar como dizem os franceses, uma fita de ação – o casal se envolve em escaramuças, tiroteios, mortes, pequenos assaltos, tráfico de armas, e a partir de Paris deambula sem cessar França afora, rumo ao mar. “Vamos”, diz Marianne. “Mas para fazer o quê?”. Pierrot: “Para existir”. M: “Não soa muito interessante”. P: “É a vida”. M: ”O que faço? Não sei o que fazer... Você fala comigo com palavras e eu olho para você só sentimentos” P: “Não dá pra conversar. Você não tem ideias, só sentimentos”. M: “Não é verdade. Há ideias nos sentimentos”.

    A cena final – com Belmondo/Pierrot tentando apagar os bastões de dinamite que colocara sobre o próprio rosto, e logo a explosão e uma longa panorâmica sobre o mar mediterrâneo, a morte à deriva, banhada por estilhaços de sol e Rimbaud – é uma sequência que se fez eterna. Considerado um dos quatro maiores filmes de toda história do cinema francês, Pierrot le fou (dizia à época o texto publicitário) “é um pequeno soldado que descobre com desprezo que é preciso viver sua vida, que uma mulher é uma mulher, e que num mundo novo, há que estar ao largo para não se ver acossado”. Um texto-montagem com títulos de filmes anteriores do diretor: Le petit soldat (1960), Le Mépris (1963), Vivre sa Vie (1962), Une Femme est une Femme (1964), Le Noveau Monde (Episódio de Rogopag, 1963), Bande à part (1964) e À bout de souffle (1960).


Máquina de citações


     Num dos muitos diálogos-citações do filme, diz Pierrot: “Tenho uma máquina de ver chamada ‘olhos’; de escutar chamadas ‘ouvidos’; de falar, chamada ‘boca’. Mas parecem máquinas não integradas. Não funcionam em conjunto. Uma pessoa deveria sentir-se uma unidade. Sinto-me dividido, falo sozinho, sim. Os homens solitários falam sozinhos”. Marianne: “Isso me deixa triste. A vida é diferente dos livros. Queria que fosse igual: clara, lógica, organizada. Mas não é”. Pierrot: “É sim, mais do que as pessoas pensam. A vida é triste, mas é bela. Vejo o mar, as ondas, o céu”. Na verdade, quem parece ter uma “máquina de citações” é o próprio Godard.

     A exemplo de seus filmes anteriores, Pierrot le fou é um filme que gira em torno de citações, principalmente literárias, mas nunca atribuindo o nome do autor. Como se fossem “apropriações”. Prática, aliás, que Godard adotara mais explicitamente a partir de Alphaville (seu filme anterior, rodado no mesmo ano, inverno de 1965), onde, fora outros autores, Jorge Luis Borges é citado muitas vezes (Godard chega a dizer numa entrevista que “Lemmy – seu personagem principal – erra pelo futuro como num labirinto de Borges”); a capa do livro Capitale de la douleur, de Paul Éluard, aparece em diferentes momentos; uma longa sequência, já no final do filme, cita uma série de títulos de poemas desse livro.

     A chave do enigma de Alphaville é uma citação de Jean Cocteau, que traduzo/adapto em redondilha: “O que faz a noite/ transformar-se em dia? /É a poesia”. Mas Godard, leitor compulsivo, cita a torto e a direito sem dar a ninguém o devido crédito – pois ele se apossa desses fragmentos “alheios” para elaborar sua montagem, para extrair da interconexão de imagens & ideias, aparentemente descasadas, um terceiro elemento – que é a sua linguagem: singular & plural.


Escrever com a câmera


     Em 1949, o jovem “pintor” Jean-Luc Godard expunha na Suíça, em mostra organizada por sua mãe – mas falava que iria ser um grande romancista. Como diz Mário Alves Coutinho em seu (ótimo) livro “Escrever com a Câmera/a literatura cinematográfica de Jean-Luc Godard”: “Em 1997, ao se lembrar daquela época, Godard confirmava: “Escrever, eu sonhava no começo. Era uma ideia, mas não era séria. Queria publicar um romance na Gallimard. Tentei: ‘anoitece...’ Nem sequer terminei a primeira frase. Então, quis ser pintor. Terminei por fazer cinema”. Um cinema em constante diálogo com a literatura e a arte em geral, uma obra que se faz através da montagem e a partir de múltiplas apropriações e colagens.

     Há em Pierrot le fou citações as mais diversas de escritores e poetas (“os nomes são legião”, lembra Coutinho) [...] Joyce, Balzac, Baudelaire, Proust, Bataille, Faulkner, Conrad, Stevenson, Jack London, Lorca, Chandler, Elie Faure [...] “mas não são meros nomes burocraticamente citados e listados: ressoam poeticamente na estrutura do filme”. Entretanto, o nome “Rimbaud” não aparece sequer uma vez. O próprio nome do personagem, Ferdinand, surge numa passagem do livro de Rimbaud Une saison en enfer, que se chama Nuit de I’enfer: “Satã, Ferdinand, corre com as mentes selvagens”. Pierrot, como Marianne o chama, é “uma alusão ao personagem do amante malsucedido da commedia dell’arte”.


Pierrot/Vélazquez


    Pierrot le fou é um filme de intricada tessitura cromática, que (literalmente) explode em cores. Basta ver a morte de Pierrot, o rosto pintado de azul, a cabeça, enlaçada por bastões de dinamite, vermelhos e amarelos. Mas Godard, como bem afirma François Nemer in Godard le cinéma (Gallimard. Paris, 2006), "não opõe o cinema à pintura (nem a ação à reflexão!). Ele os confronta, dialeticamente".

  Pierrot-personagem se identifica com aquele Velázquez cinquentão, como nas palavras precisas do ensaísta francês Élie Faure (1873-1937), citadas literalmente no início do filme: "... Ele (Velázquez) não pintava mais nada definido. Ele vagava em torno dos objetos como o ar – e o crepúsculo, ele surpreendia na sombra e na transparência dos fundos das palpitações coloridas, que transformava no centro de sua sinfonia silenciosa".

     Mas, e o derradeiro plano, aquele que tanto amo? A câmera deixa o rosto em close de Pierrot (que explode com a dinamite) e segue a linha do mar e do céu em panorâmica, até encontrar a imagem de um sol que cega. Em off, ouve-se o sussurro das vozes de Pierrot e Marianne, já mortos:

Elle est retrouvée.

Quoi? - L' Éternité.

C' est la mer allée

Avec le soleil.


Pierrot/Rimbaud

     No Rio do anos 60 – na rodinha de chope pós-sessão do antigo cinema Paissandu –, eu reclamava com meus cinemaníacos pares: "Sim, é bonito o filme, mas como é que o Godard termina citando Rimbaud e não dá crédito para ele, nem nada?". Mais tarde, revendo & revendo Pierrot – comme un fou – , acabei constatando o óbvio. Rimbaud não carecia de citação, pois Godard imprimira na tela, eternidade afora – mar que arde-eterno-mar-sol-mar-tarde-mar-que-se-evade – todo o impacto visual suscitado pelas palavras do poeta, toda a força imantada de sua imagem. O “look Godard”, le fou bavard – como eu diria num poema anos depois.

     "O que é arte? - escrevia em setembro de 1965 no Les Letres Françaises o poeta Louis Aragon. "Foi a pergunta que me fiz após ver Pierrot le Fou, de Jean-Luc Godard, quando Jean-Paul Belmondo questiona um produtor americano: ´o que é cinema?´. No momento, estou certo de uma coisa: Arte hoje é Jean-Luc Godard. A princípio, o cinema para mim já foi Carlitos, depois Renoir, Buñuel, e hoje Godard. Vocês vão dizer que me esqueci de Eisenstein e Antonioni. Mas se enganam: não me esqueci deles, ou qualquer outro. Não falo mais de cinema, mas de arte. [...] O que no momento me interessa é o tempo dos pioneiros, quando se pode comparar o jovem cinema à pintura. Aquilo de dizer que é Renoir, que é Buñuel, não mais me agrada. Mas Godard é Delacroix”.

     “De certa forma, nós somos todos Pierrot le Fou – continua Aragon –, os Pierrot que se sentam na via férrea, esperando o trem que nos vai estraçalhar, mas que pulamos fora antes que ele chegue, pois queremos continuar vivos.

    Nada termina, outros vão retomar a mesma estrada, que parece ser outra muito lá na frente, mas só parece. Eu queria falar de arte. E não falei mais que da vida”.

     Da vida e da eternidade – e volto ao mar, ao final de Pierrot/ poema de Rimbaud. No final do filme Satyricon, de Fellini, quando a história a que assistimos se transforma em arte – uma sequência de afrescos – Encolpio foge da cidade na direção do litoral, onde a luz do sol une céu e mar, e podemos ouvir as palavras do poema de Rimbaud: Elle est retrouvée./ Quoi? I´ éternité/ C´est la mer melée/ Au soleil. Quer dizer, então, que, segundo Fellini, “a eternidade” é “o mar mesclado ao sol?” Pois é, ele tinha sua cota de razão. O fecho do poema “L ‘ Éternité”, como consta de Une saison en enfer, é C´est la mer melée/ Au soleil.


O mar mesclado/ ao sol

     O que faço eu então – Qu´est-ce que j´peux faire? J´sais pas quoi faire! –, como fechar todos esses flashes, todo esse cipoal de citações Godard-Pierrot-Rimbaud? Só mesmo um poema – este “soneto à la RW”, que queria só meu: mar-tarde-eternidade. Mas que, há mais de um século – como um vidente, um farol, um ladrão,

Rimbaud me roubou

mar que rimbaud retomou

ao largo bateau à toa

poita prumo proa

ouro-diss-eu seda à tona


mar de bruços na janela

aonde divaga meu asco

arco vela casco

farol barco sentinela


mesclado de eternidade

molhado de tarde

mar mar melado de sol


onde nada só sobrou

mar d´or-feu anzol

mar que rimbaud me roubou

Ronaldo Werneck

in Há Controvérsias 2, 2011

Collage de fragmentos

4 de ago. de 2022

MARILYN MONROE: O INTENSO FRESCOR

 (Los Angeles, 01.06.26 – 04.08.62)


Mesmo agora, exatos 60 anos de sua morte, minha primeira recordação é de um intenso frescor. Pra mim, Marilyn Monroe é frescor. Ao lembrar-me dela, o ar refrigerado vem refrescar os verões de minha mente. Não propriamente aquele verão intenso da Nova York de The Seven Years Itch/ O Pecado Mora ao Lado (1955), de Billy Wilder, daquela cena famosa do vento vindo do metrô e levantando seu vestido para profunda irritação do então marido, o astro do beisebol Joe  DiMaggio, que assistia às filmagens.

Mas sim de Bus Stop, o filme realizado em 1956 por Joshua Logan. Recordo que – ainda adolescente no Rio –, após o tradicional sorvete no Cirandinha, passava pela calçada do Cine Metro Copacabana e recebia aquela lufada de refrigério vinda lá de dentro. No alto, em letras garrafais, “Marilyn Monroe em Nunca Fui Santa”, filme proibido para os meus 13 anos. Sim, MM pra mim era fruto proibido – e também refrigério, intenso ar refrigerado, um frescor de nunca mais.

“Meu querido Ronaldo, com a Marilyn você terá tudo o que um homem precisa, sem os problemas que normalmente as mulheres te trazem”. Quem escrevia assim – na bem-humorada dedicatória do livro que me presenteou no meu aniversário em 2007 – era minha grande amiga, a cantora Neti Szpilman. Não sei ao certo o que a Neti queria dizer com aqueles “problemas que as mulheres te trazem”. Na época, eu estava mais uma vez “momentaneamente descasado” e, quem sabe?, talvez ela pensasse no samba de Martinho, aquele do “Já tive mulheres de todas as cores/ De várias idades, de muitos amores/  Com umas até certo tempo fiquei/ Pra outras apenas um pouco me dei”.

 

O Mito Marilyn


Mulheres, pois é. Deixa pra lá. Fico mesmo com a Marilyn, fascinado que sou. O livro que ganhei da Neti – “Marilyn Monroe/ O Mito” – é na verdade o catálogo de uma exposição realizada no Museu de Arte Moderna do Rio em 2007. Uma caprichada edição com capa dura (textos traduzidos por minha amiga, a saudosa poeta Olga Savary) da última sessão de fotos de MM realizada pelo fotojornalista Bert Stern. Fotografias feitas numa suíte de hotel em Los Angeles, em julho de 1962, poucas semanas antes de sua morte, em 4 de agosto daquele ano – com uma sensualíssima Marilyn exibindo aos quatro ventos a cicatriz da cirurgia de vesícula feita no ano anterior.  

Escreve Stern: “Toca o telefone. Dou um salto. A voz do outro lado anuncia: ´Miss Monroe está aqui´. Já? Não consigo acreditar. São sete horas. Ela só está cinco horas atrasada. Eu imaginava... temia... muita coisa me passava pela cabeça. Mas não. Aquela moça existe de verdade. – Bom dia. Eu sou Bert Stern – digo estendendo-lhe a mão. Ela tem os olhos azul-esverdeados. Esqueço minha mulher, meu bebê, minha vida apaixonante em Nova York. Nada mais existe naquele instante. Estou apaixonado. – Você é uma beleza. Ela me olha, abre a boca e diz: – É mesmo? Como você é gentil”. 

“O que você quer?” – alguém perguntou certa vez a MM. “Só quero ser maravilhosa” – respondeu como quem não quer nada, a não ser o que ela realmente era. Marilyn é minha companheira da vida inteira, digo eu agora e sempre. Musa de meio mundo é bem verdade. Mas principalmente minha, desde a adolescência de seus/meus filmes. Desde The Asphalt Jungle/ O Segredo das Joias, de John Huston (1949), o primeiro filme dela que vi ainda em Cataguases, até seu último lançamento, The Misfits/ Os Desajustados, do mesmo Huston (1961). Como todo mundo, fiquei chocado com sua morte naquele agosto de 1962.


 

Marilyn no Muro


   Pois foi justo em agosto de 1962 que O Muro – o primeiro jornalzinho literário e devidamente mimeografado que Joaquim Branco e eu editávamos aqui em Cataguases – estampou em sua capa, em cima da notícia, um texto do poeta Aquiles Branco sobre a morte de Marilyn, com direito a um bico de pena do futuro cineasta Paulo Bastos Martins. Transcrevo:

“O deitar na cama branca da noite branca apavorava qualquer um. Gesto involuntário das pessoas. Foi quando um esvoaçar, longo e palpitante, cortou a veneziana lado a lado. O aparecimento de coisas já não provocaria conclusões nem maiores nem menores de tamanho. O azul da fumaça aparecia, desligado, só. A solidão a havia matado, o corpo já ninguém importava.

“Aconteceu um dia longo, quem afirma?, dizendo ao homem que precisava dele, muito, e ele achou que era brincadeira; a angústia de atravessar mais uma etapa, por mais curta que fosse, tão vazia como se apresentavam suas vestes, o tubo agiu. O colorido cor-de-rosa de uma futura camisola provocante morreu, morreu porque sentiu que a dona não poderia usá-la, nunca mais. A alma se bipartiu por si mesma e vagou”.

Aquiles Branco, in O Muro, agosto de 1962.

 

O cantar da eternidade

    “Durante muitos anos houve rumores a respeito de Marilyn ter telefonado à Casa Branca nessa sua última noite” – escreve Norman Mailer em sua biografia da atriz. “Se meditarmos o suficiente sobre a tragédia de um tal fim em vertigem e frustação, não poderemos deixar de acreditar que ela partiu com uma maldição e que ainda vive perto de nós – a primeira dama dos fantasmas americanos”.

    “Em todo esse debate sobre os pormenores de sua morte – continua Mailer –, esquecemos a dor de sua perda. Marilyn desapareceu. Abandonou-nos, deslizando para além da linha do horizonte do último comprimido. Nenhuma força exterior, nenhuma dor, provou ser mais forte, afinal, que seu poder de pesar sobre si mesma. Se tentaram estrangulá-la uma vez e, depois, sendo mais tarde amarrada pelo estúdio e asfixiada pelas iras do casamento, a verdade é que conseguiu reagir com total controle sobre sua vida.

    “Isso talvez signifique que decidiu ter também um controle sobre sua morte e que, atraída pela eternidade que escutou cantar nos seus ouvidos desde a infância, deu o salto para a morte, abandonando a dor de uma alma sem vida pela esperança de vida em outra. Despediu-se do mundo que conquistara, mas não podia usar. Nunca saberemos se foi em tais termos que ela partiu. Pode ser que tenha cambaleado, passando a fronteira sem o saber, lamentando-se no último recanto de seu coração, sem que uma só voz conhecida lhe pudesse acudir. Ela veio a nós cercada pelas dúvidas e abandonou-nos envolta em mistério.

 

 

O Mito Marilyn


Marilyn, sim, é o Mito. Não esse planaltino “ser cavernoso” (segundo escreveu recentemente a sempre certeira jornalista Dorrit Harazim) que nos atormenta a cada dia com suas inacreditáveis diatribes.  Fora o livro com que a Neti me presenteou, são muitas as publicações sobre MM que tenho aqui em casa.

Entre esses livros, o de Norman Mailer (Marilyn – A biography) é claro, em sua primeira edição, lançada em 1973. Também a alentada biografia de Donald Spoto, com título semelhante ao de Mailer, Marilyn Monroe – A biography, lançada vinte anos depois, em 1993. E vários outros, a exemplo do belíssimo Marilyn - March 1955, com fotos realizadas por Ed Feingersh num hotel de Nova York logo após a separação de Joe DiMaggio. O Monroe, primorosa edição em couchê lançada pela Taschen em 2006. E até o Marilyn Monroe – A Postcard Book, de 1989, da Running Press Books, da Philadelphia, que traz na contracapa uma frase enigmática de MM: "I´m always runningin to people unconscious”– qualquer coisa como, numa apressada (ou corrida”) tradução: “Estou sempre correndo rumo às pessoas sem consciência".

Então, para mim Marilyn Monroe é uma obsession – como quem ousa: com bilíngue rima e coisa & lousa. Uma enigmática obsessão, como no noturno poema que ela escreveu (sim, MM também escrevia poemas e era leitora voraz, até mesmo, dizem, de James Joyce), dedicado a seu amigo, o poeta Norman Rosten (tradução de Olga Savary): “Noite da noite – relaxante/ Trevas – refrescantes – o ar/ Parece diferente – a noite não tem/ Nem olhar nem nada – Silêncio/ Exceto para a própria noite”.

E observo agora que a palavra “refrescante” aparece aí no poema, como se a confirmar a impressão que sempre tive de MM: “refresco para os olhos”, em batida metáfora, que também me dou ao direito dessas derrapadas. Na verdade, Marilyn concentrou – com ou sem poemas – o que torna excitantes as mulheres mais excitantes (“refrescantes?”) do mundo.

 


MARILYN/MAILER


“Assim, pensamos em Marilyn, que era o caso de amor que todos os homens tinham com a América. Marilyn Monroe, que era loira e bela, que tinha uma voz doce, toda ternura, e que tinha, também, toda a inocência de todos os mais inocentes jardins americanos. Era o nosso anjo, o carinhoso anjo do sexo – e o açúcar do sexo vinha dela como a ressonância do mais puro acorde de violino”.

Era assim que o consagrado romancista norte-americano Norman Mailer abria a biografia que escreveu sobre Marilyn. A seguir, reproduzo alguns highligths do livro de Mailer. Já no capítulo inicial, o romancista registrava:

“Sua morte foi coberta de incertezas, da mesma forma como a de Hemingway explodiu em horror; e como as mortes e os desastres espirituais dos anos sessenta assaltaram, um a um, os reis e as rainhas da América; como Jack Kennedy foi morto; e Bobby, e Martin Luther King; como Jackie Kennedy se casou com Aristóteles Onassis; e Teddy Kennedy caiu da ponte em Chappaquiddick.

“De modo que a década começou com Hemingway como o monarca das artes americanas terminou com Andy Warhol como seu regente e, enfim, o fantasma da morte de Marilyn deu uma aura de lavanda aos dramáticos desígnios americanos dos anos sessenta, que parecem, em retrospecto, nada terem feito além de levarem Richard Nixon ao limiar do poder imperial”.



Como se cada homem fosse o máximo

    Mailer escreve que esperava um convite de Arthur Miller, então casado com Marilyn, para visitá-los, convite que não veio – e se confessa “inexperiente para reconhecer o fundamento da arte de Marilyn”:

  “O dramaturgo (Miller) e o romancista (o próprio Mailer) nunca se haviam aproximado muito um do outro. E o romancista também não podia, na verdade, condenar o dramaturgo por evitar o inevitável drama. Sua ambição secreta, afinal, fora de roubar Marilyn; em toda a sua vaidade, pensava que não havia outro homem tão capaz de trazer à superfície tudo o que de melhor havia nela quanto ele próprio, uma vaidade que outros cinquenta milhões de homens também tinham. O romancista ainda era demasiado inexperiente para reconhecer que o fundamento da arte de Marilyn talvez fosse falar a cada homem como se este fosse o máximo da existência masculina que havia à sua disposição”.

    “O sentido fundamental da loucura americana, essa violência que vive como um zumbido eletrônico para além do silêncio da mais adormecida tarde de domingo, está sendo incubada nas loucas e límpidas noites subtropicais de Hollywood: a visão da fronteira americana entrou num projetor, se transformou em bárbaros de três metros de altura nas telas dos cinemas”.

   “Ela era uma boneca estupida e sexy” – dirá alguma voz de amargura ultrajada –, “uma gata tonta com faro e infância miseráveis, com muita sorte e muito azar, que conseguiu levar longe um pequeno talento”. Na verdade, porém, essas vozes de desdém nada conseguiram explicar sobre ela. Há um milhão de bonecas estúpidas e tontas, com sorte e beleza, mas o fato é que nenhuma chegou perto de Monroe. Não, não chegou. Para explicar Marilyn totalmente, conservemos aquela noção cármica como uma ideia a mais, a defender em nosso espírito, enquanto tentamos seguir os intrincados caminhos de sua vida”.



Com Brando na cama: picos & planaltos

  “A sexualidade de Marilyn permanece um enigma” – diz Mailer.  “Já se tornou moda agora (pois a lenda, desde a sua morte, foi formada assim), vê-la como não se interessando tanto pelo sexo quanto a antiga publicidade declarava. O testemunho daqueles que fizeram o amor com ela, mais tarde, sugere que Marilyn era capaz de dormir com o sutiã (por medo de que seus seios decaíssem) do que se abandonar num leito orgíaco, havendo também muitas histórias sobre sua inocência a respeito do sexo.

   "Certa vez, depois de ter dormido com Marlon Brando, ela disse a uma amiga na manhã seguinte: “Não sei se o faço da maneira certa”. Mas, afinal, qual de nós sabe? Qualquer certeza a respeito do sexo é seguida pelo reconhecimento de que se trata de um planalto e de que existem picos acima dele. Mais cedo ou mais tarde, todos nós revelamos nossa inocência sobre o sexo com um comentário ingênuo.   

   “Após o casamento com Joe DiMaggio, Marilyn tornou-se a principal figura feminina do grande filme americano que é apresentado em seriado cotidianamente nos jornais do mundo. Só depois do funeral de Jack Kennedy e da ascensão de Jackie Kennedy é que uma mulher voltaria a ocupar um lugar de destaque na vida americana.  

     “Ela tinha um talento, embora não uma identidade, e, se alguma lógica havia na sua vida, essa lógica dizia-lhe que cortasse as raízes – Comece Tudo de Novo! – e seguisse seu talento até New York, onde iria fundar sua própria companhia cinematográfica, a Marilyn Monroe Productions. Numa artista, isso é o exercício da santidade, pois o que existe de mais sagrado é seguir a melhor coisa que se descobre na própria vida, custe o que custar, e não temos outra forma de compreender Marilyn, se não admitirmos que a sua mais profunda experiência na vida era o ato de representar um extraordinário papel.



A morte entre os mistérios

    A morte marcou presença naquele 4 de agosto de 1962, em sua casa de estilo rural em Helena Drive, Los Angeles, aquela casa meio-mobiliada, pobre em armários e rica em discos, misturados pelos cantos com pilhas de revistas e pacotes de livro, toda a coleção de sua vida em prateleiras, jogada pelo chão.

    Termino este meu texto com as palavras de Norman Mailer ao fechar o seu livro, registrando o sofrimento de Joe DiMaggio no funeral de Marilyn:

   “Se todo ser humano é um mistério, então, talvez possamos obter o nosso único vislumbre da verdade nas relações que encontramos entre os mistérios. Façamos, assim, o nosso cálculo do valor de Marilyn pelo sofrimento estampado no rosto de Joe DiMaggio no dia daquele terrível funeral em Westwood, a oeste de Hollywood.” 


 

Ronaldo Werneck

04 de agosto de 2022