Enquanto Jean-Luc Godard (Paris, 03.12.1930 – Rolle, 13.09.2022) acaba de cometer suicídio assistido na Suíça, lá dos anos 60, em Pierrot le fou, Anna Karina/ “Marianne”, repete à exaustão sua ladainha: Qu´est-ce que j’ peux faire? J’ sais pas quoi faire! Ela segue num lento caminhar em plano-sequência pela praia, ao passo que o peripatético Belmondo/ Ferdinand-Pierrot fala e anda, anda e fala comme un fou – para ele e para nós – fragmentos de leituras aleatórias (em vários momentos, os protagonistas desse filme viram-se para a câmera e “conversam” com o espectador). Mais tarde, dirá Godard: “Era uma época estranha, onde eu me dizia: mas o que se pode fazer? Tínhamos feito tudo. Foi preciso que viesse 68, um pouco para varrer a poeira”.
Rodado no verão europeu de 1965, Pierrot le fou é o Godard de minha predileção. Numa das sequências, o cineasta americano Samuel Fuller define o cinema: “(é) o amor, o ódio, a ação, a violência, a morte; em uma palavra, a emoção”. Como outros filmes de Godard, esse é também um thriller, un polar como dizem os franceses, uma fita de ação – o casal se envolve em escaramuças, tiroteios, mortes, pequenos assaltos, tráfico de armas, e a partir de Paris deambula sem cessar França afora, rumo ao mar. “Vamos”, diz Marianne. “Mas para fazer o quê?”. Pierrot: “Para existir”. M: “Não soa muito interessante”. P: “É a vida”. M: ”O que faço? Não sei o que fazer... Você fala comigo com palavras e eu olho para você só sentimentos” P: “Não dá pra conversar. Você não tem ideias, só sentimentos”. M: “Não é verdade. Há ideias nos sentimentos”.
A cena final – com Belmondo/Pierrot tentando apagar os bastões de dinamite que colocara sobre o próprio rosto, e logo a explosão e uma longa panorâmica sobre o mar mediterrâneo, a morte à deriva, banhada por estilhaços de sol e Rimbaud – é uma sequência que se fez eterna. Considerado um dos quatro maiores filmes de toda história do cinema francês, Pierrot le fou (dizia à época o texto publicitário) “é um pequeno soldado que descobre com desprezo que é preciso viver sua vida, que uma mulher é uma mulher, e que num mundo novo, há que estar ao largo para não se ver acossado”. Um texto-montagem com títulos de filmes anteriores do diretor: Le petit soldat (1960), Le Mépris (1963), Vivre sa Vie (1962), Une Femme est une Femme (1964), Le Noveau Monde (Episódio de Rogopag, 1963), Bande à part (1964) e À bout de souffle (1960).
Máquina de citações
Num dos muitos diálogos-citações do filme, diz Pierrot: “Tenho uma máquina de ver chamada ‘olhos’; de escutar chamadas ‘ouvidos’; de falar, chamada ‘boca’. Mas parecem máquinas não integradas. Não funcionam em conjunto. Uma pessoa deveria sentir-se uma unidade. Sinto-me dividido, falo sozinho, sim. Os homens solitários falam sozinhos”. Marianne: “Isso me deixa triste. A vida é diferente dos livros. Queria que fosse igual: clara, lógica, organizada. Mas não é”. Pierrot: “É sim, mais do que as pessoas pensam. A vida é triste, mas é bela. Vejo o mar, as ondas, o céu”. Na verdade, quem parece ter uma “máquina de citações” é o próprio Godard.
A exemplo de seus filmes anteriores, Pierrot le fou é um filme que gira em torno de citações, principalmente literárias, mas nunca atribuindo o nome do autor. Como se fossem “apropriações”. Prática, aliás, que Godard adotara mais explicitamente a partir de Alphaville (seu filme anterior, rodado no mesmo ano, inverno de 1965), onde, fora outros autores, Jorge Luis Borges é citado muitas vezes (Godard chega a dizer numa entrevista que “Lemmy – seu personagem principal – erra pelo futuro como num labirinto de Borges”); a capa do livro Capitale de la douleur, de Paul Éluard, aparece em diferentes momentos; uma longa sequência, já no final do filme, cita uma série de títulos de poemas desse livro.
A chave do enigma de Alphaville é uma citação de Jean Cocteau, que traduzo/adapto em redondilha: “O que faz a noite/ transformar-se em dia? /É a poesia”. Mas Godard, leitor compulsivo, cita a torto e a direito sem dar a ninguém o devido crédito – pois ele se apossa desses fragmentos “alheios” para elaborar sua montagem, para extrair da interconexão de imagens & ideias, aparentemente descasadas, um terceiro elemento – que é a sua linguagem: singular & plural.
Escrever com a câmera
Em 1949, o jovem “pintor” Jean-Luc Godard expunha na Suíça, em mostra organizada por sua mãe – mas falava que iria ser um grande romancista. Como diz Mário Alves Coutinho em seu (ótimo) livro “Escrever com a Câmera/a literatura cinematográfica de Jean-Luc Godard”: “Em 1997, ao se lembrar daquela época, Godard confirmava: “Escrever, eu sonhava no começo. Era uma ideia, mas não era séria. Queria publicar um romance na Gallimard. Tentei: ‘anoitece...’ Nem sequer terminei a primeira frase. Então, quis ser pintor. Terminei por fazer cinema”. Um cinema em constante diálogo com a literatura e a arte em geral, uma obra que se faz através da montagem e a partir de múltiplas apropriações e colagens.
Há em Pierrot le fou citações as mais diversas de escritores e poetas (“os nomes são legião”, lembra Coutinho) [...] Joyce, Balzac, Baudelaire, Proust, Bataille, Faulkner, Conrad, Stevenson, Jack London, Lorca, Chandler, Elie Faure [...] “mas não são meros nomes burocraticamente citados e listados: ressoam poeticamente na estrutura do filme”. Entretanto, o nome “Rimbaud” não aparece sequer uma vez. O próprio nome do personagem, Ferdinand, surge numa passagem do livro de Rimbaud Une saison en enfer, que se chama Nuit de I’enfer: “Satã, Ferdinand, corre com as mentes selvagens”. Pierrot, como Marianne o chama, é “uma alusão ao personagem do amante malsucedido da commedia dell’arte”.
Pierrot/Vélazquez
Pierrot le fou é um filme de intricada tessitura cromática, que (literalmente) explode em cores. Basta ver a morte de Pierrot, o rosto pintado de azul, a cabeça, enlaçada por bastões de dinamite, vermelhos e amarelos. Mas Godard, como bem afirma François Nemer in Godard le cinéma (Gallimard. Paris, 2006), "não opõe o cinema à pintura (nem a ação à reflexão!). Ele os confronta, dialeticamente".
Pierrot-personagem se identifica com aquele Velázquez cinquentão, como nas palavras precisas do ensaísta francês Élie Faure (1873-1937), citadas literalmente no início do filme: "... Ele (Velázquez) não pintava mais nada definido. Ele vagava em torno dos objetos como o ar – e o crepúsculo, ele surpreendia na sombra e na transparência dos fundos das palpitações coloridas, que transformava no centro de sua sinfonia silenciosa".
Mas, e o derradeiro plano, aquele que tanto amo? A câmera deixa o rosto em close de Pierrot (que explode com a dinamite) e segue a linha do mar e do céu em panorâmica, até encontrar a imagem de um sol que cega. Em off, ouve-se o sussurro das vozes de Pierrot e Marianne, já mortos:
Elle est retrouvée.
Quoi? - L' Éternité.
C' est la mer allée
Avec le soleil.
Pierrot/Rimbaud
No Rio do anos 60 – na rodinha de chope pós-sessão do antigo cinema Paissandu –, eu reclamava com meus cinemaníacos pares: "Sim, é bonito o filme, mas como é que o Godard termina citando Rimbaud e não dá crédito para ele, nem nada?". Mais tarde, revendo & revendo Pierrot – comme un fou – , acabei constatando o óbvio. Rimbaud não carecia de citação, pois Godard imprimira na tela, eternidade afora – mar que arde-eterno-mar-sol-mar-tarde-mar-que-se-evade – todo o impacto visual suscitado pelas palavras do poeta, toda a força imantada de sua imagem. O “look Godard”, le fou bavard – como eu diria num poema anos depois.
"O que é arte? - escrevia em setembro de 1965 no Les Letres Françaises o poeta Louis Aragon. "Foi a pergunta que me fiz após ver Pierrot le Fou, de Jean-Luc Godard, quando Jean-Paul Belmondo questiona um produtor americano: ´o que é cinema?´. No momento, estou certo de uma coisa: Arte hoje é Jean-Luc Godard. A princípio, o cinema para mim já foi Carlitos, depois Renoir, Buñuel, e hoje Godard. Vocês vão dizer que me esqueci de Eisenstein e Antonioni. Mas se enganam: não me esqueci deles, ou qualquer outro. Não falo mais de cinema, mas de arte. [...] O que no momento me interessa é o tempo dos pioneiros, quando se pode comparar o jovem cinema à pintura. Aquilo de dizer que é Renoir, que é Buñuel, não mais me agrada. Mas Godard é Delacroix”.
“De certa forma, nós somos todos Pierrot le Fou – continua Aragon –, os Pierrot que se sentam na via férrea, esperando o trem que nos vai estraçalhar, mas que pulamos fora antes que ele chegue, pois queremos continuar vivos.
Nada termina, outros vão retomar a mesma estrada, que parece ser outra muito lá na frente, mas só parece. Eu queria falar de arte. E não falei mais que da vida”.
Da vida e da eternidade – e volto ao mar, ao final de Pierrot/ poema de Rimbaud. No final do filme Satyricon, de Fellini, quando a história a que assistimos se transforma em arte – uma sequência de afrescos – Encolpio foge da cidade na direção do litoral, onde a luz do sol une céu e mar, e podemos ouvir as palavras do poema de Rimbaud: Elle est retrouvée./ Quoi? I´ éternité/ C´est la mer melée/ Au soleil. Quer dizer, então, que, segundo Fellini, “a eternidade” é “o mar mesclado ao sol?” Pois é, ele tinha sua cota de razão. O fecho do poema “L ‘ Éternité”, como consta de Une saison en enfer, é C´est la mer melée/ Au soleil.
O mar mesclado/ ao sol
O que faço eu então – Qu´est-ce que j´peux faire? J´sais pas quoi faire! –, como fechar todos esses flashes, todo esse cipoal de citações Godard-Pierrot-Rimbaud? Só mesmo um poema – este “soneto à la RW”, que queria só meu: mar-tarde-eternidade. Mas que, há mais de um século – como um vidente, um farol, um ladrão,
Rimbaud me roubou
mar que rimbaud retomou
ao largo bateau à toa
poita prumo proa
ouro-diss-eu seda à tona
mar de bruços na janela
aonde divaga meu asco
arco vela casco
farol barco sentinela
mesclado de eternidade
molhado de tarde
mar mar melado de sol
onde nada só sobrou
mar d´or-feu anzol
mar que rimbaud me roubou
Ronaldo Werneck
in Há Controvérsias 2, 2011
Collage de fragmentos
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