Ele captou a luz de Minas em grandes
e poéticos planos, e fez os melhores filmes da fase pioneira de
nosso cinema
Além Paraíba, Minas Gerais, outubro de 1983. O velho cineasta acorda num
hospital, a família em volta: “Ué, eu já morri?”. Como todos
os iluminados pela inteligência, o cineasta mineiro Humberto Mauro ( Volta
Grande, 1897-1983) era muitíssimo bem-humorado, um eterno curioso, atento ao
mundo à sua volta. Foi o que o levou a fazer cinema. Primeiro, atraído pela
técnica; logo, senhor dela, criando com seu grande talento uma linguagem
própria e sempre inovadora. Um rio, uma ponte, uma praça, uma igreja. Seis mil
habitantes, se tanto. Essa a
Cataguases do início do século XX, na Zona da Mata de Minas
Gerais, aonde a família do imigrante italiano Caetano Mauro chega em
1910. É ali que seu filho, o jovem Humberto Mauro, vai viver até o início da década de
1930. Viver e iniciar o universo de inquietações que o faria sucessivamente
goleiro de futebol, remador, jogador de xadrez, de sinuca, fotógrafo,
eletricista, radioamador, músico, dramaturgo, ator, autor, roteirista, montador,
diretor e arauto do cinema.
A coleção de selos foi o princípio de tudo, a
causa do meu começo no cinema lá em Cataguases”. Esse
“Seu Pedro Comello” era um imigrante italiano (Novara, 1874-Cataguases, 1954), “pintor
talentoso, retratista por excelência, dotado de grande habilidade artesanal”, como
descreve Paulo Emílio Salles Gomes in Humberto Mauro,
Cataguases, Cinearte. Mauro junta-se então a Comello e – com uma Pathé-Baby
9,5 mm ,
pequena câmera utilizada à época para registro dos chamados “ABCs” (Aniversários, Batizados, Casamentos)
– já se inicia no cinema como autor. Ao
invés de filmarem as famílias, eles partem logo para uma fita de ficção.
Foi essa curiosidade que o levou
a fazer cinema, criando com seu grande talento uma linguagem
própria e sempre inovadora
Valadião, o Cratera,
curta-metragem de 1925, foi um filme-piloto que atraiu o comerciante Homero
Cortes para “esse negócio de fazer cinema”. Conquistado, Homero vai ao Rio com
Mauro e voltam de lá com uma Ernemann 35 mm , câmera profissional. Logo, junta-se a
eles outro comerciante, Agenor de Barros, e fundam uma produtora, a Phebo Sul
America Film. Com Pedro Comello na câmera, o cineasta inicia ainda em 1925 seu
primeiro longa-metragem, “Na Primavera da Vida”, que estreia em Cataguases em
1926. Como protagonistas, Francisco Mauro, irmão
de Humberto (que atua com o nome de Bruno Mauro) e Eva Comello (a heroína do filme
anterior, que adota o nome de Eva Nil). Mocinha dessas duas fitas, Eva fica
mais conhecida pelas fotos estampadas em várias revistas da época, que a
transformaram na “estrelinha de Cataguases” – perenizada pela câmera do pai,
Pedro Comello.
Cataguases, anos 1920: a atriz Eva Nil em três tempos (fotos de Pedro Comello) |
“Humberto? ele era dernier-cri”
– disse um dia Maria Vilela
de Almeida, moça de uma ‘beleza extremamente fina’, a dona Bêbe, que nunca se
esqueceu da primeira vez que o viu, “passeando a cavalo, a camisa de lã grossa
com bolsos pregueados”. Moço da moda, popular, querido, Humberto Mauro se
destacava na cidade. O casamento dos dois realizou-se em 1920, e durou a vida
inteira. Aos olhos sentimentais da cidade, Humberto e Bêbe apareciam como o Romeu
e Julieta de Cataguases: era o casal mais belo da região da Mata. Em 1926, com a saída de
Eva Nil, que resolve não mais filmar com a Phebo, Mauro tem que providenciar às
pressas outra estrela. Com o nome artístico de Lola Lys, Bêbe é a mocinha de Thesouro Perdido, sua nova realização.
Mauro e Dona Bêbe em Volta Grande (1975) |
Das
centenas de filmes que iria realizar, este ficou como o seu predileto. Não só por
contar com vários familiares como por ser a fita também uma prova do bom
emprego de algumas técnicas absorvidas do contato no Rio com o cinéfilo Adhemar
Gonzaga, editor de Cinearte, prestigiada revista de cinema. Gonzaga criticara o
excesso de letreiros da fita anterior de Mauro, que a partir daí passa a “falar
por imagens”, essência da linguagem cinematográfica – e como o cinema mudo se
fazia entender. Mauro já demonstrava rara inventividade: na sequência de uma
tempestade, feita com chuva de regador, os raios são riscados na película
virgem. Nas cenas de um galope, o close das patas dos cavalos é feito com uma
lata de farinha pintada de preto por dentro. Duas lentes, uma de foco longo
outra comum. E Mauro inventa assim uma espécie de teleobjetiva. Impulsionado
pelo frescor da iniciação, Thesouro
Perdido já é verdadeiramente uma fita de cinema – e recebe o Troféu
Cinearte como Melhor Filme
Brasileiro de 1927. Humberto Mauro passa
a ficar falado como homem de cinema. Por enquanto, do cinema mudo.
Em meados
de 1927, a
Phebo Sul America abre-se a acionistas, passa a denominar-se Phebo Brasil Filme , e elege seu
presidente Agenor Cortes de Barros, tendo como secretário Homero Cortes
Domingues. O diretor técnico é Humberto Mauro, o único assalariado – e primeiro
cineasta a ter carteira assinada no Brasil. Terceira produção do Ciclo de
Cataguases, Braza Dormida já
representa um princípio de profissionalização.
São contratados no Rio não só o fotógrafo – Edgar Brasil, que logo seria
o melhor iluminador do cinema brasileiro – como o casal protagonista, Nita Ney
e Luiz Soroa. “De qualquer maneira precisas apresentar agora um film mais bilheteria. Não são beijos nem
farras, mas um sensualismo elegante. Todo film
deve ter uma boa dose pelo menos de mocidade”, dizia Adhemar Gonzaga em 1929,
quando Mauro começava a elaborar seu novo roteiro.
Alex Viany (óculos escuros), Dona Bêbe e Paulo Emilio. Ao fundo, David Neves e Humberto Mauro (1975) |
Quarta
e última produção da Phebo, com externas realizadas no Rio e em Belo Horizonte , Sangue Mineiro já mostra um Humberto Mauro senhor
de si – e sua evolução de um filme para outro é precisa, rápida, surpreendente.
A fita foi viabilizada pela participação de Carmen Santos – como
protagonista e principalmente co-produtora. Esta foi a estreia
de Carmen Santos como
estrela: apesar de ter feito outros três filmes no Rio, seus fãs – como os de
Eva Nil – só a conheciam de fotografia. Sua entrada na Phebo significou prestígio e injeção
de capital, mas não o suficiente para a produtora continuar em atividade. A
atriz portuguesa vai ter grande importância na trajetória de Humberto Mauro em sua
fase carioca.
Com o fim da Phebo, Mauro vai para o Rio a convite de Gonzaga, que
acabara de fundar sua produtora, a Cinédia. Com pouco mais de 30 anos, e
revelando-se nas várias funções assumidas dentro e fora do set de filmagens,
Mauro era quem mais entendia de cinema no Brasil dos anos 30. Na Cinédia, realiza
Lábios sem Beijos, Ganga Bruta, Voz do
Carnaval. Trabalha depois na Brazil Vita Filmes, produtora de Carmen Santos, onde
dirige Favella dos Meus Amores, Cidade
Mulher e Argila. Em 1937, realiza
O Descobrimento do Brasil, produção
do Instituto do Cacau da Bahia. No ano anterior, a convite de Edgar
Roquette-Pinto, inicia seus trabalhos no Ince-Instituto Nacional de Cinema
Educativo – onde irá dirigir cerca de 300 documentários (grande parte com fotografia
primorosa de seu filho, Zequinha Mauro) até se aposentar, em 1967. Retornando à
sua cidade natal, Volta Grande, faz seu último longa-metragem, O Canto da Saudade (1952), e uma pequena
obra-prima, o curta A Velha a Fiar
(1964).
1975: em seu “canto de cisne”
Mauro faz o roteiro e dirige o curta Carro
de Bois, uma retomada a cores de seu Manhã
na Roça – O Carro de Bois, da série Brasilianas,
que dirigiu para o INCE em 1956. O filme – vencedor do “Troféu Humberto Mauro” na
Jornada Brasileira de Curta-metragem realizada na Bahia em 1975 – tem
fotografia de Murilo Salles e produção executiva de sua sobrinha-neta, Valéria
Mauro.
1975: Mauro filma "Carro de Bois", seu ultimo curta-metragem, fotografado por Murilo Salles, com produção executiva de Valéria Mauro |
A poesia dos long-shots, sua
marca e assinatura. Câmera contra o sol: o morro, a mata, o carro de bois
– paisagem por ele perenizada.
“A poesia
do cinema está nos long-shots, nos
grandes planos gerais. A roda d’água, por exemplo, é de uma fotogenia
extraordinária. Aquele rodar lento, os musgos, a água batendo contra o sol
(...) Pega um carro de bois no topo de um morro, contra o sol, o candeeiro, o
carroceiro em cima do cabeçalho – é de uma beleza incrível!” Relendo essas
palavras de Humberto
Mauro, extraídas da gravação de uma das muitas conversas que
tivemos em 1975, relembro agora como o cinema – força tamanha – estava entranhado
em sua dicção. Como
se nela fluisse num navegar contínuo, sem cortes, na plenitude de um
plano-sequência. Melhor: revendo essas palavras, suas palavras-imagens, percebo
como o cinema estava nele como se dele nascido, de tal modo que Mauro acabava
sempre falando como se filmasse. E, falando, filmasse como gostava de filmar,
extraindo beleza daqueles long-shots,
daqueles contra-plongés que eram sua marca e assinatura: o carro de bois, o
candeeiro, o carroceiro, a câmera baixa apontada contra o sol no alto do morro
– paisagem por ele perenizada.
Hospital de Volta Grande. Sábado, 05 de novembro de 1983. Noite. Ao
despertar, descobre-se de novo internado. Há uma semana, mas não sabia. A
brincadeira do “já morri” não tem mais graça: agora está sozinho. Levanta-se
ainda tonto: que ir para casa. É só atravessar a rua: mora ali em frente, na
avenida com o seu nome: Cineasta Humberto Mauro. Mas não dá um passo e cai,
fulminado, Ali mesmo, sem ver pela última vez a luz da Mata Mineira em sua plenitude – foco de sua
paixão, paisagem enquadrada a vida inteira. Minas na memória. Exterior. Dia.
Para sempre.
Memorial em Cataguases
No Centro Cultural Humberto Mauro em Cataguases (Rua Coronel Vieira nº 10), a Fundação
Ormeo Junqueira Botelho mantém um Memorial onde se toma contato com o mundo de
Humberto Mauro. Ali – na cidade-ícone do modernismo no interior mineiro, que conta
com grande escultura de Amilcar
de Castro em homenagem a Mauro – encontram-se fotos, textos e troféus
dispostos nos vários painéis, onde são exibidos dez pequenos filmes que
realizei, focalizando a trajetória do cineasta.
Autodidata, e um curioso por
excelência – que dizia ser o cinema “cachoeira”, movimento – Humberto Mauro não
se contentava em saber como esse mundo se movia: queria mesmo era movê-lo. Em sua Histoire
du Cinéma, o crítico francês Georges Sadoul cita Ganga Bruta, de 1933, como um dos melhores filmes do cinema mundial.
Entre suas mais de trezentas realizações, contam-se os preciosos levantamentos
da história e cartografia do Brasil, foco central dos documentários realizados
para o Ince-Instituto Nacional de Cinema Educativo. Seus filmes despertaram nos
cineastas do Cinema Novo uma consciência do país, um voltar de câmeras para um
Brasil profundo que se fez conhecer pelas lentes maurianas.
Segundo Glauber Rocha – que
re/descobrira Humberto Mauro nos anos 1960 –, estava ali “a raiz do
enquadramento brasileiro”, a matriz de um país redescoberto pela autenticidade
e pureza da poética de Mauro. Diz ainda Glauber: “Em Cataguases – quando o
cinema era mudo e o Brasil era ainda mais selvagem – Humberto Mauro realizou um
ciclo cinematográfico, revelando a existência de uma das mais sólidas tradições
específicas de nossa cultura. (...) Seu mundo é a paisagem mineira, e Mauro
seria o único cineasta capaz de filmar Guimarães Rosa e dar no cinema a mesma
dimensão do grande romancista”.