28 de abr. de 2017

Humberto Mauro: plano geral & poesia




Ele captou a luz de Minas em grandes
e poéticos planos, e fez os melhores filmes da fase pioneira de nosso cinema

Além Paraíba, Minas Gerais, outubro de 1983. O velho cineasta acorda num hospital, a família em volta: “Ué, eu já morri?”. Como todos os iluminados pela inteligência, o cineasta mineiro Humberto Mauro (Volta Grande, 1897-1983) era muitíssimo bem-humorado, um eterno curioso, atento ao mundo à sua volta. Foi o que o levou a fazer cinema. Primeiro, atraído pela técnica; logo, senhor dela, criando com seu grande talento uma linguagem própria e sempre inovadora. Um rio, uma ponte, uma praça, uma igreja. Seis mil habitantes, se tanto. Essa a Cataguases do início do século XX, na Zona da Mata de Minas Gerais, aonde a família do imigrante italiano Caetano Mauro chega em 1910. É ali que seu filho, o jovem Humberto Mauro, vai viver até o início da década de 1930. Viver e iniciar o universo de inquietações que o faria sucessivamente goleiro de futebol, remador, jogador de xadrez, de sinuca, fotógrafo, eletricista, radioamador, músico, dramaturgo, ator, autor, roteirista, montador, diretor e arauto do cinema.
     A paixão pelo cinematógrafo surgiu da fotografia. Nos tempos de sua mocidade, Humberto Mauro trocou sua valiosa coleção de selos por uma máquina fotográfica, como ele mesmo narra: “Dona Lucília Taveira tinha uma Kodak que já me emprestara e eu fiquei doido por aquela máquina. Perguntei-lhe se não queria trocar por minha coleção de selos e ela aceitou. Foi assim que consegui minha primeira máquina fotográfica, que me ligou a vários fotógrafos, um deles o Seu Pedro Comello. 

Humberto Mauro em Volta Grande (1975)

     A coleção de selos foi o princípio de tudo, a causa do meu começo no cinema lá em Cataguases”. Esse “Seu Pedro Comello” era um imigrante italiano (Novara, 1874-Cataguases, 1954), “pintor talentoso, retratista por excelência, dotado de grande habilidade artesanal”, como descreve Paulo Emílio Salles Gomes in Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. Mauro junta-se então a Comello e – com uma Pathé-Baby 9,5 mm, pequena câmera utilizada à época para registro dos chamados  “ABCs” (Aniversários, Batizados, Casamentos) – já se inicia no cinema como autor.  Ao invés de filmarem as famílias, eles partem logo para uma fita de ficção.

Foi essa curiosidade que o levou a fazer cinema, criando com seu grande talento uma linguagem própria e sempre inovadora

Valadião, o Cratera, curta-metragem de 1925, foi um filme-piloto que atraiu o comerciante Homero Cortes para “esse negócio de fazer cinema”. Conquistado, Homero vai ao Rio com Mauro e voltam de lá com uma Ernemann 35 mm, câmera profissional. Logo, junta-se a eles outro comerciante, Agenor de Barros, e fundam uma produtora, a Phebo Sul America Film. Com Pedro Comello na câmera, o cineasta inicia ainda em 1925 seu primeiro longa-metragem, “Na Primavera da Vida”, que estreia em Cataguases em 1926.  Como protagonistas, Francisco Mauro, irmão de Humberto (que atua com o nome de Bruno Mauro) e Eva Comello (a heroína do filme anterior, que adota o nome de Eva Nil). Mocinha dessas duas fitas, Eva fica mais conhecida pelas fotos estampadas em várias revistas da época, que a transformaram na “estrelinha de Cataguases” – perenizada pela câmera do pai, Pedro Comello.


Cataguases, anos 1920: a atriz Eva Nil em três tempos
(fotos de Pedro Comello)
“Humberto? ele era dernier-cri” – disse um dia Maria Vilela de Almeida, moça de uma ‘beleza extremamente fina’, a dona Bêbe, que nunca se esqueceu da primeira vez que o viu, “passeando a cavalo, a camisa de lã grossa com bolsos pregueados”. Moço da moda, popular, querido, Humberto Mauro se destacava na cidade. O casamento dos dois realizou-se em 1920, e durou a vida inteira. Aos olhos sentimentais da cidade, Humberto e Bêbe apareciam como o Romeu e Julieta de Cataguases: era o casal mais belo da região da Mata. Em 1926, com a saída de Eva Nil, que resolve não mais filmar com a Phebo, Mauro tem que providenciar às pressas outra estrela. Com o nome artístico de Lola Lys, Bêbe é a mocinha de Thesouro Perdido, sua nova realização.

Mauro e Dona Bêbe em Volta Grande (1975)

Das centenas de filmes que iria realizar, este ficou como o seu predileto. Não só por contar com vários familiares como por ser a fita também uma prova do bom emprego de algumas técnicas absorvidas do contato no Rio com o cinéfilo Adhemar Gonzaga, editor de Cinearte, prestigiada revista de cinema. Gonzaga criticara o excesso de letreiros da fita anterior de Mauro, que a partir daí passa a “falar por imagens”, essência da linguagem cinematográfica – e como o cinema mudo se fazia entender. Mauro já demonstrava rara inventividade: na sequência de uma tempestade, feita com chuva de regador, os raios são riscados na película virgem. Nas cenas de um galope, o close das patas dos cavalos é feito com uma lata de farinha pintada de preto por dentro. Duas lentes, uma de foco longo outra comum. E Mauro inventa assim uma espécie de teleobjetiva. Impulsionado pelo frescor da iniciação, Thesouro Perdido já é verdadeiramente uma fita de cinema – e recebe o Troféu Cinearte como Melhor Filme Brasileiro de 1927. Humberto Mauro passa a ficar falado como homem de cinema. Por enquanto, do cinema mudo. 
Em meados de 1927, a Phebo Sul America abre-se a acionistas, passa a denominar-se Phebo Brasil Filme, e elege seu presidente Agenor Cortes de Barros, tendo como secretário Homero Cortes Domingues. O diretor técnico é Humberto Mauro, o único assalariado – e primeiro cineasta a ter carteira assinada no Brasil. Terceira produção do Ciclo de Cataguases, Braza Dormida já representa um princípio de profissionalização.  São contratados no Rio não só o fotógrafo – Edgar Brasil, que logo seria o melhor iluminador do cinema brasileiro – como o casal protagonista, Nita Ney e Luiz Soroa. “De qualquer maneira precisas apresentar agora um film mais bilheteria. Não são beijos nem farras, mas um sensualismo elegante. Todo film deve ter uma boa dose pelo menos de mocidade”, dizia Adhemar Gonzaga em 1929, quando Mauro começava a elaborar seu novo roteiro.

Alex Viany (óculos escuros), Dona Bêbe e Paulo Emilio.
Ao fundo, David Neves e Humberto Mauro (1975)

Quarta e última produção da Phebo, com externas realizadas no Rio e em Belo Horizonte, Sangue Mineiro já mostra um Humberto Mauro senhor de si – e sua evolução de um filme para outro é precisa, rápida, surpreendente. A fita foi viabilizada pela participação de Carmen Santos – como protagonista e principalmente co-produtora. Esta foi a estreia de Carmen Santos como estrela: apesar de ter feito outros três filmes no Rio, seus fãs – como os de Eva Nil – só a conheciam de fotografia. Sua entrada na Phebo significou prestígio e injeção de capital, mas não o suficiente para a produtora continuar em atividade. A atriz portuguesa vai ter grande importância na trajetória de Humberto Mauro em sua fase carioca.  
Com o fim da Phebo, Mauro vai para o Rio a convite de Gonzaga, que acabara de fundar sua produtora, a Cinédia. Com pouco mais de 30 anos, e revelando-se nas várias funções assumidas dentro e fora do set de filmagens, Mauro era quem mais entendia de cinema no Brasil dos anos 30. Na Cinédia, realiza Lábios sem Beijos, Ganga Bruta, Voz do Carnaval. Trabalha depois na Brazil Vita Filmes, produtora de Carmen Santos, onde dirige Favella dos Meus Amores, Cidade Mulher e Argila. Em 1937, realiza O Descobrimento do Brasil, produção do Instituto do Cacau da Bahia. No ano anterior, a convite de Edgar Roquette-Pinto, inicia seus trabalhos no Ince-Instituto Nacional de Cinema Educativo – onde irá dirigir cerca de 300 documentários (grande parte com fotografia primorosa de seu filho, Zequinha Mauro) até se aposentar, em 1967. Retornando à sua cidade natal, Volta Grande, faz seu último longa-metragem, O Canto da Saudade (1952), e uma pequena obra-prima, o curta A Velha a Fiar (1964).
1975: em seu “canto de cisne”  Mauro faz o roteiro e dirige o curta Carro de Bois, uma retomada a cores de seu Manhã na Roça – O Carro de Bois, da série Brasilianas, que dirigiu para o INCE em 1956. O filme – vencedor do “Troféu Humberto Mauro” na Jornada Brasileira de Curta-metragem realizada na Bahia em 1975 – tem fotografia de Murilo Salles e produção executiva de sua sobrinha-neta, Valéria Mauro.

1975: Mauro filma "Carro de Bois", seu ultimo curta-metragem,
fotografado por Murilo Salles, com produção executiva de Valéria Mauro 


A poesia dos long-shots, sua marca e assinatura. Câmera contra o sol: o morro, a mata, o carro de bois – paisagem por ele perenizada.

A poesia do cinema está nos long-shots, nos grandes planos gerais. A roda d’água, por exemplo, é de uma fotogenia extraordinária. Aquele rodar lento, os musgos, a água batendo contra o sol (...) Pega um carro de bois no topo de um morro, contra o sol, o candeeiro, o carroceiro em cima do cabeçalho – é de uma beleza incrível!” Relendo essas palavras de Humberto Mauro, extraídas da gravação de uma das muitas conversas que tivemos em 1975, relembro agora como o cinema – força tamanha – estava entranhado em sua dicção. Como se nela fluisse num navegar contínuo, sem cortes, na plenitude de um plano-sequência. Melhor: revendo essas palavras, suas palavras-imagens, percebo como o cinema estava nele como se dele nascido, de tal modo que Mauro acabava sempre falando como se filmasse. E, falando, filmasse como gostava de filmar, extraindo beleza daqueles long-shots, daqueles contra-plongés que eram sua marca e assinatura: o carro de bois, o candeeiro, o carroceiro, a câmera baixa apontada contra o sol no alto do morro – paisagem por ele perenizada.
Hospital de Volta Grande. Sábado, 05 de novembro de 1983. Noite. Ao despertar, descobre-se de novo internado. Há uma semana, mas não sabia. A brincadeira do “já morri” não tem mais graça: agora está sozinho. Levanta-se ainda tonto: que ir para casa. É só atravessar a rua: mora ali em frente, na avenida com o seu nome: Cineasta Humberto Mauro. Mas não dá um passo e cai, fulminado, Ali mesmo, sem ver pela última vez a luz da Mata Mineira em sua plenitude – foco de sua paixão, paisagem enquadrada a vida inteira. Minas na memória. Exterior. Dia. Para sempre.



Memorial em Cataguases


No Centro Cultural Humberto Mauro em Cataguases (Rua Coronel Vieira nº 10), a Fundação Ormeo Junqueira Botelho mantém um Memorial onde se toma contato com o mundo de Humberto Mauro. Ali – na cidade-ícone do modernismo no interior mineiro, que conta com grande escultura de Amilcar de Castro em homenagem a Mauro – encontram-se fotos, textos e troféus dispostos nos vários painéis, onde são exibidos dez pequenos filmes que realizei, focalizando a trajetória do cineasta.


Autodidata, e um curioso por excelência – que dizia ser o cinema “cachoeira”, movimento – Humberto Mauro não se contentava em saber como esse mundo se movia: queria mesmo era movê-lo. Em sua Histoire du Cinéma, o crítico francês Georges Sadoul cita Ganga Bruta, de 1933,  como um dos melhores filmes do cinema mundial. Entre suas mais de trezentas realizações, contam-se os preciosos levantamentos da história e cartografia do Brasil, foco central dos documentários realizados para o Ince-Instituto Nacional de Cinema Educativo. Seus filmes despertaram nos cineastas do Cinema Novo uma consciência do país, um voltar de câmeras para um Brasil profundo que se fez conhecer pelas lentes maurianas.
Segundo Glauber Rocha – que re/descobrira Humberto Mauro nos anos 1960 –, estava ali “a raiz do enquadramento brasileiro”, a matriz de um país redescoberto pela autenticidade e pureza da poética de Mauro. Diz ainda Glauber: “Em Cataguases – quando o cinema era mudo e o Brasil era ainda mais selvagem – Humberto Mauro realizou um ciclo cinematográfico, revelando a existência de uma das mais sólidas tradições específicas de nossa cultura. (...) Seu mundo é a paisagem mineira, e Mauro seria o único cineasta capaz de filmar Guimarães Rosa e dar no cinema a mesma dimensão do grande romancista”.



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