6 de abr. de 2016

Fusco no Pasquim 4: Na realidade, “já morri”

A seguir, a segunda parte da entrevista de Rosário Fusco que eu e Joaquim Branco fizemos pro Pasquim em 1976. 


O ESCRITOR BRASILEIRO É UM SUPERCAMELO 



 PASQUIM – Por que Cataguases? Fora os equívocos, normais, aliás, o que houve realmente? Como explicar uma experiência aparentemente de vanguarda nascida na roça que era a cidade na época, entre esterco, cascos de cavalos, entre as fofocas das comadres, que perduram até hoje, e a vida sem pressa, calma, cotidiana. Onde fica Cataguases nessa chorumela toda? 

    FUSCO – Na inconsciência do verdor de um elenco de rapazes, aspirando à afirmação de seus variados pendores – digamos, artísticos – Cataguases simplesmente cumpriu sua missão didática na época. Como, aliás, inúmeras outras pequenas cidades da província, acionadas por primário espirito de imitação. Premiar Cataguases, a propósito, com dois ou três adjetivos, em mais de uma linha impressa, só pode, a meu ver, “unfanar” sua linha de professoras de grupo aposentadas. Mestras episódicas dos gênios municipais, hoje – quase cinquenta anos depois da aventura – desencantados escribas na faixa do enfarte.


   PASQUIM – Como se explica seu silêncio desde 1961? 

  FUSCO – Na realidade, já “morri”. O que eu gosto mesmo é de ser. Mas ser, como je suis, eu posso ser em Belo Horizonte, Cabobró, Cataguases ou nos cambaus. Ninguém é por estar aí, mas por être en soi. Ninguém sai de si mesmo, ou se aliena de si mesmo, a não ser pelo sexo ou pelo álcool (digo pelo álcool para não ir à droga propriamente dita). Afinal, o que fica na vida de cada um (física ou mental) mais o que o esforço por algo que é a marca ou tara individual? Carga, ônus e pesadelo de nossa passagem (ou estada) no planeta?  

   PASQUIM – Dia do Juízo lhe rendeu quanto? O romancista brasileiro é, antes de tudo, um “duro”? 

   FUSCO – Dia do Juízo me custou três anos de trabalho (com interrupções). De 1954 a 57. Em dinheiro, líquido, o romance me rendeu cinco contos (cruzeiros novos).  O romancista brasileiro não é, antes de tudo, “um duro”: é um supercamelo carente de enzimas digestivas: rumina, mas não digere. Mas há os que digerem até tardes de autógrafos: o meu caro José Condé, p.ex., chegou a “comer” um verão em dezembro; em fevereiro, estará mais gordo do que o Rei Momo. 

    PASQUIM – A gente sabe que você tem, pelo menos, três livros novos, prontos para publicar. O que há, o que houve, o que está havendo? 

    FUSCO – O fato de ter livros prontos, nem chega a “significar”. No Brasil, não há quem não tenha um livro pronto, inclusive vocês. O problema é editar. Nunca tive um livro publicado em “bases comerciais”. Dada a mediocridade consciente do que faço, não ouso mais oferecer a ninguém. Nem oferecer, nem insinuar... etcétera. Duas vezes, cometi tais fraquezas: me mandaram plantar batatas. De fato, rende mais e chateia menos.  

     PASQUIM – O que é o romance, no seu sentido mais forte? 

    FUSCO – No mais forte, não sei. No mais fraco, romance é a vida da gente “dinamizada” pelos outros. Da participação do nascimento ao convite para a missa do sétimo dia (ou a partir desta) você já é fábula, com os ingredientes que cada qual acrescentar ao narrar o que você faz ou deixou de fazer.  

  PASQUIM – O nouveau-roman, segundo seus teóricos, acabou com o romance tradicional. Hoje, já é novidade velha. Novelhíssima. Entretanto Robbe-Grillet, sua peça mais importante, partiu pro cinema, como solução mais válida para suas pesquisas. O cinema vai acabar com o romance? 

   FUSCO – Esse negócio de nouveau-roman. Ou roman du régard é vigarice. Tudo o que é visto – já diziam os escolásticos – tem que passar pela cabeça para ter sentido. A máquina fotográfica não vê: registra. Quem vê sou eu, o fotógrafo. Mas com que autoridade eu posso assegurar que o seu azul, por exemplo, é igual ao meu? O assunto daria para um tratado de estética. O caso é que os franceses são muito sabidos e sua política literária (para exportação) é baseada na conquista de divisas. Pasmem: Gide não é conhecido pelas novas gerações da França. Roger Nimier (morreu, o coitado) confessou em entrevista (1960) que nunca ouvira falar em tal sujeito. Ora, Malraux mandando esses rapazes pra correr mundo (Robbe-Grillet, Butor etc) não fez mais que obedecer ordens de M. Pompidou, que era o Roberto Campos de lá. A Câmara do Livro Francês (saibam) é mais forte que o Pentágono ou do que o homossexualismo (o mais forte ismo do mundo). O chamado novo romance não é um gênero: é uma teoria. Ou um teorema (Pasolini). O assunto é material polêmico. Um cenário cinematográfico não é um romance: é uma agenda de ações plásticas. Na sutil diferença entre a imagem ideada (escrita), a imagem visualizada (lida) e a imagem grafada, montada e projetada (transcrita segundo a interpretação criadora de um sujeito sem o menor compromisso com o autor) é que, a meu ver, reside o busílis. Vejam se entendem. Lido, em termos de leitura dinâmica, Madame Bovary é a redução de vulgar adultério provinciano a dez ou vinte linhas, que poderão dar um filme da duração que o atleta quiser. Por volta de 1929/30, Afrânio Peixoto publicou um romance (Sinhazinha), acompanhado do respectivo roteiro, por ele também assinado. Leiam os dois e me digam com quantos bambus se pode fazer um balaio. Ou com quantos paus se pode fazer uma canoa capaz de romper as correntes barrocas de uma época. Porque do mau romance se pode tirar um filme excelente, a coexistência dos “gêneros” é possível. A debandada do escritor para o cinema é a falta de fôlego, de editor, ou falta de dinheiro. Nunca um script será um best-seller no sentido que dão à expressão – porque best-seller não é o que vende muito, mas o que vende sempre (Adonias filho). Não citarei a Bíblia como exemplo. Escolham outros: à vontade. 

Continua na próxima semana



Nenhum comentário: