27 de abr. de 2016

Fusco no Pasquim 7: Nada vale nada com algemas

Como bônus à série de crônicas sobre a entrevista de Rosário Fusco que eu e Joaquim Branco fizemos pro Pasquim em 1976, encontra-se a seguir o famigerado e “impublicável” (pelo menos na época da entrevista) poema “Edital de Demissão e Ponto”, que pertence ao livro de poemas inédito “Creme de Pérolas”. 



Edital de Demissão e Ponto
Entre suas pernas...
se avança o céu dessa estranha boca,
pálida e rosa, feito a concha marinha
Mallarmé
                                                            ... És como a hóstia consagrada no altar:
                                                 realçada por um corte ritual escarlate
                                                                                                   Saint-John Perse


Meu caro poeta:
meta
a lira no cu
(mesmo que doa)
e vê se te aquieta.

O mundo mudou tanto que
amanhã
a lua será lixeira, à toa,
privada e refúgio da terra
emudecida,
seu Orfeu.

Erra,
quem pensa
que as palavras valem
hoje em dia
— pois a palavra é poesia
e a poesia morreu.

São cibernéticos os contatos
dos homens com os homens
e dos homens com as coisas.
Números.

Mede-se a gestação do feto
pelo reto,
como se mede o tempo da trepada
ou da correspondente dor de corno
oriunda
                                                 de vero pendor
por bunda ou impossibilidades tais:

mula/ cistite/ colicistite/ cálculos renais
brochura/ ou câncer/ou cancro no pau.

Nada vale nada com algemas,
e os filhos das pílulas,
feitos ou desfeitos pelas ditas,
são tão filhos da puta que
dispensam

o pai/ a mãe/ o irmão/ a irmã/a tia
o tio/os avós/ os vizinhos/ amigos
compadres/comadres/parentes
ou conhecidos gerais, mas,
sobretudo

o teu gorgeio inútil,
de inusitados sons concretos,
montagens de ruídos antissemânticos.

Só que
o morcego recebe o ar
dos cosmonautas
...mas sem piar.

Não é possível mais cantar:
o canto entope,
engasga e sufoca.
Radar.

A poesia do cosmo chega em vibrações secretas
do telstar:
                               omite
                               e
                              demite poetas.


Não tens mais,
como ofício ou serviço,
do que captá-la ou emiti-la pelo(a)

suor/ hálito/ saliva/ mijo/ bosta
soluço/ suspiro/ riso/ porra
lágrima/ masturbações/ peido

mau pensamento
ou arroto na escala das afecções
ou de orduras exportáveis:
do corpo
e da alma.

Não sê mais escroto
ó cantor do perecível
e limitado
                 – pelo quadrado
                              sem raiz
                                   do mundo em liquidação.

Nas futuras próximas galáxias
a ser defloradas
e já quase ao alcance de tuas mãos
veremos,
prezado,
se ainda terás vez.

Não havendo mais segredo,
Dona Inês.

Nem mistério,
nem flor de verdade,
és a pura e simples terceira matéria
metida a sebo no planeta formi-plástico
até que a quarta te destrua

no quarto ou no refúgio anti-aéreo
                                       bomba
aguardando a sexta
                          feira aziaga ou a cesta
em que Deus, puto da vida,
no mindinho
                         globo celestial
pra refugá-lo no
                            grenier:
                                          voilá.

               Por inútil
               fútil
               inconsútil
uma vez que és à semelhança dele...
               — de araque,
                    sua besta.

Se cantas empós de boceta,
ou a fim de punheta,
faz um filho na proveta:
                porque, verso,
qualquer robô já faz.

Zipe na boca, rapaz,
— não poetisa mais.

Repito:
— meta a viola no saco,
                se é que inda tens saco
                ou gana de meter
(do verbo enfiar algo em algum lugar).

Pois-pois
meta em ti mesmo o
resto de pica que tiveres,
se tiveres,
na boca,
no cu
ou nos dois.

Depois...
silencia.

                   Passarinho atolado na merda
                   não janta:
                   — nem canta.


Rosário Fusco

De Creme de Pérolas,
1972 (inédito)


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